quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O RECUO DE ANTÃO.

No dia 17 de janeiro festeja-se o dia de Santo Antão: Antão. Nasceu no Egito no ano 251. Seus pais eram ricos e o educaram na fé cristã. Órfão na adolescência, reservou à sua irmã parte da herança e doou o restante aos pobres. Foi morar isolado, como eremita, na periferia de uma aldeia. Incomodado pela atração que seu estilo de vida causava nos peregrinos, internou-se no deserto. Mais tarde, atravessou o rio Nilo e passou a habitar o cume de uma montanha, próxima a Fauim, onde viveu até os 105 anos.
A vida de Antão coincide com o momento em que refluía a perseguição aos cristãos. A conversão do imperador Constantino, no início do século IV, marcou uma virada de página na história: os bispos trocaram os cárceres e a clandestinidade por palácios e títulos de nobreza; os perseguidos passaram a perseguir os “hereges” que não rezavam pelo mesmo catecismo; o Estado assumiu a tutela da Igreja em troca da legitimidade sagrada com que se revestia a autoridade civil incensada pelo clero.
Antão, desgostoso com essa nova conjuntura, tomou em mãos, prometeicamente, o fogo da espiritualidade dos mártires, criando paralelos sintonizados com a situação anterior: em lugar do cárcere, refugiou-se na ermida; na falta de perseguidores, resistiu às tentações do demônio; livre de torturas, abraçou jejuns e penitências. Assim, tornou-se pioneiro da vida monástica na tradição cristã.
O recuo de Antão é, ainda hoje, uma lição de sabedoria. Na verdade, Antão trocou tantas vezes de lugar para ir em busca de si mesmo. É como aqueles turistas que viajam à Índia para tentar encontrar, do outro lado do mundo, o que estão buscando no próprio coração. Todos tentando evitar em seus futuros túmulos o epitáfio cunhado por Fernando Pessoa: “Fui o que não sou”.
Recuar é dar um tempo para si mesmo. Hoje, muitos o fazem em função da saúde física. Malham durante horas, preocupados com a aparência frente aos olhos alheios. Mas não são capazes de isolarem-se em sua interioridade, orando, meditando, deixando a subjetividade fluir ao sabor do Espírito.
Às vezes deixamos de orar com medo de que a luz divina nos faça enxergar nossas contradições, carências e faltas, ofensas e omissões. Medo da conversão, que é uma categoria de trânsito - a vida vinha nesta direção e, agora, deve abraçar outra. Ou, então, fazemos da oração uma repetição de fórmulas, sem que se modifique a nossa atitude perante os outros. Continuamos egoístas, mesquinhos e acomodados. Ou buscamos na oração algo “diferente”, qual uma droga que nos excita, sem que o serviço ao próximo, principal exigência evangélica, ocupe preponderância em nossa vida.
Antão é um desafio emblemático nesses tempos de aldeia globalizada, em que nunca estamos inteiramente a sós, ainda que não haja ninguém em casa. À nossa volta, solicitam-nos a TV, o rádio, o telefone. E, sob o pretexto de que não podemos nos desligar - já que informação é poder -, deixamos de nos religar interiormente. Assim, aprofunda-se o nosso vazio espiritual e, como um organismo desprovido de alimento, aos poucos esgarçam-se os nosso valores. Fazemos concessões antonicamente inconcebíveis, vamos sendo comidos pelas bordas, corroídos por uma rotina que nos empurra para a indigência subjetiva.
Como no Universo não há vazios - ensina a física -, nossa subjetividade vai se dilatando para abrigar a vaidade, a prepotência, as ambições desmedidas. Entre o nosso discurso e os nossos impulsos mais interiores cria-se uma defasagem. Inseguros, tornamo-nos agressivos, que é o modo mais pueril de tentar encobrir o mal-estar que sentimos conosco. O problema é que descontamos nos outros, que nada têm a ver com a nossa incapacidade de seguir o exemplo de Antão ao menos uma vez ao dia.
Se ao menos dedicássemos uma hora por dia para, como Antão, ficarmos no “cume da montanha”, provavelmente veríamos a vida com outros olhos e não experimentaríamos essa indigência espiritual que nos faz irritadiços, com sérios riscos de nos arrastar ao cinismo. Não vale o pretexto da falta de tempo. Neste caso, basta trocar uma das três refeições por um tempo de nutrição espiritual: a leitura de um texto bíblico, a música sacra, o silêncio inebriante. Não para mero deleite espiritual, como quem tenta fazer de Deus o seu objeto de consumo. Mas para dilatar o coração na direção do amor.
Antão era uma pessoa feliz. Porque encontrou o seu próprio centro - Aquele que habita o mais íntimo de nós mesmos e nos faz descentrar no outro. Essa é uma experiência mística, que todo amor conhece. E Péguy tinha razão: é também a meta de todo projeto político que merece ser levado a sério.

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