quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

SENTINDO O MUNDO COMO A NOSSA CASA.

Bendita inquietação de quem acorda em tempo para alertar e administrar as crises! Tanto a ecologia, enquanto ciência, como o ecologismo, enquanto movimento, despontaram para alertar a humanidade das grandes ameaças à nossa própria casa. O nosso planeta Terra está agredido! Quando se inventam técnicas irracionais e incontroladas, não é difícil que o tempo nos coloque diante do caos e da morte.
Faz bem lembrar que os movimentos de nossas mãos sempre se orientam na direção assinalada pelo nosso espírito e pela nossa mente. Por esse motivo, é sempre saudável observar qual é a cultura do espírito e da mente, para conhecer as repercussões na vida real. É o espírito que está sempre por traz dos comportamentos científicos e técnicos. É a esse espírito que precisamos chegar para saber qual é a visão atual que se tem da vida.
São muitos os modos como se interpreta a natureza: como horizonte divino, como objeto de resistência, como um conjunto de utensílios, como campo de pesquisa, como terreno de exploração, como cenário da atividade humana, como fonte de inspiração estética etc... O que se pensa da natureza acompanha o que a pessoa pensa de si mesma e seu lugar no mundo.
Depois das mais diversas visões e formas de relacionamento com o mundo, hoje parece surgir uma nova forma de relação homem-mundo. Diante dos surpreendentes segredos da criação, um novo diálogo dos humanos com a natureza se faz necessário. A natureza tem mil vozes. Faz pouco tempo que se começou ouvir com mais atenção seus clamores.
Hoje, necessitamos superar a tentação humana de nos projetar à imagem de nós mesmos. Não podemos pretender colocar tudo diante de nós, mas precisamos situar a nós mesmos no mundo com respeito e justiça, no risco de nos ver devorados pelas obras de nossas próprias mãos. Em nosso espírito e nossa mente somos chamados a elaborar a imagem do mundo como a nossa morada. Assim nos relacionaremos, partilhando um mesmo destino.
Sentindo o mundo como nossa própria casa, não o trataremos com frieza e hostilidade, mas como um universo acolhedor e fraternal. Assim a racionalidade matemática se transformará em racionalidade estética para um impulso criador. Quando a ciência se humaniza, deixa de ser um instrumento perigoso e manipulador e se converte em escuta poética da natureza. O conceito de vida passa pelas formas mais simples até as mais complexas. Por isso, aproximando natureza e vida, descobriremos um novo posicionamento ajustado às intenções de Deus e ao que mais nos convém.
A cultura da vida vê-se desafiada a superar a cultura da morte que brotou do espírito, da mente e das mãos humanas. Para elaborar um novo relacionamento não se trata de pedir que a ciência renuncie a seus avanços, mas que todos aprendamos a escutar e respeitar a múltipla linguagem da natureza.
Saber cuidar parece ser o sagrado compromisso de todos os humanos que vivemos neste planeta. Sem transformar o mundo como uma casa de acusações, cada um de nós poderá dar a sua contribuição no grande cuidado, partindo dos pequenos cuidados de cada dia, no chão onde nos situamos.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

ALGUNS GOLES A MAIS.



 Feitas as contas, foram muito mais do que dez mil. Éramos amigos e não foi falta de avisar. Nunca ficava num copo ou numa lata. Um dia, fraternalmente, já que ele era pessoa de agradável trato, provei-lhe que tinha ingerido quase dois litros de cerveja no curto espaço de duas horas. Se fosse água, não teria ingerido a mesma quantidade.
A discussão foi boa. Acusou-me de patrulheiro e de catastrofista. Argumentei que os goles a mais saturariam seu cérebro e que antes dos 60 anos ele teria perdido o controle de seus impulsos: seria um alcoólatra. Naquela tarde ele brigou comigo e me brindou com o famoso palavrão que ofende mãe e filho.
Correu o tempo, e nós com ele, um para cada lado. Tornei a ver sua filha, agora casada e perguntei por ele. Com os olhos marejados me disse que eu tinha razão. As cervejinhas que ele sempre diminuía no nome, mas não na quantidade, os golinhos de caipirinha, as tacinhas de vinho juntaram-se em conspiração contra aquele cérebro. O pai estava só. A mãe morrera, e ele bebia todas, a toda hora, por toda e qualquer razão. Mas ainda insistia que não tinha o vício.
Propus-me visitá-lo. Ele deu a entender que estava ocupado e que não poderia me receber. Soube, pela filha, que ele faz isso com todos os amigos de ontem. Cortou os laços e agora acusa os amigos de o haverem abandonado. O único amigo de ontem que ele jamais abandonou foi o copo e a única amiga que ele acolhe com prazer é a cervejinha.
Tenho desenvolvido, com quem me leva a sério, a teoria do copo a mais, da lata a mais e do gole a mais. Sem disciplina hercúlea, como pedrinhas de um dique eles represam o futuro da pessoa, porque se juntam e se compactam. Obstruem qualquer saída e, a depender da quantidade de pequenos goles amontoados, em menos de 30 anos a vida deixa de escoar por aquele coração desmotivado. Terá olhos apenas para o bar ou para a geladeira.
Mas tente dizer isso a quem ultrapassou a quantia. Dirá que só ele sabe se passou dos limites. Mesmo assim não se omita! Fale! Correrá o risco de perder o amigo, mas sua consciência doerá bem menos quando, lá na frente, porventura o encontrar cambaleando e incapaz de construir uma frase!...
Nada do que se ingere além da conta faz bem; nem água. Mas nunca vi alguém propenso ao alcoolismo que admitisse isto! É o tipo de conversão que precisa vir antes e não depois da queda!

NA MEDIDA QUE PRECISAMOS.


Um santo monge, durante a oração, adormeceu. E sonhou que estava diante do céu e as portas se abriram, deixando-o entrar. Mesmo espantado e cheio de encantamento, o monge deu-se conta de três surpresas. A primeira delas: muitas pessoas que, no seu entender, não estariam no paraíso, lá estavam. Uma segunda surpresa: pessoas que ele imaginava que estivessem no paraíso, efetivamente lá estavam, mas com menos glória e prestígio do que supusera. Por fim, a maior de todas as surpresas: ele também estava no céu.
Uma das recomendações mais repetidas do Evangelho: não julgueis. Não julgar é um ato de sabedoria, pois quase nada sabemos dos outros. Mais: julgamos pelas aparências. Também julgamos a partir de nossos defeitos. Na parábola do trigo e do joio Jesus nos mostra a possibilidade do engano. Trigo e joio são muito parecidos. A diferença só pode ser notada na colheita. Contrariamente ao que acontece na lavoura, a vida pode mudar. O trigo jamais poderá se tornar joio, o joio jamais se tornará trigo. Mas as criaturas, redimidas por Deus, podem mudar a cada instante. Podem mudar até o último instante.
Nós somos salvos pela ação de Deus. O máximo que podemos apresentar a Ele é a nossa boa vontade. E Deus age em nós, também a partir de nossas falhas. Um velho ferreiro, que amava profundamente a Deus, foi atingido por uma doença. À semelhança da história de Jó, apareceu um amigo para observar: como você pode confiar tanto em Deus, que lhe manda tanto sofrimento? O ferreiro explicou: quando quero fazer uma ferramenta, busco no depósito um pedaço de ferro. Ele passa pelo fogo, depois pela bigorna, se amolda e se torna um objeto útil. Se ele não se tornar um objeto útil, jogo-o na sucata das coisas inúteis.
São Paulo afirma: tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deu. Mesmo pequeno, nosso amor encanta a Deus. E Ele tudo faz para nossa felicidade. Muitas vezes, ela brota do sofrimento. De resto, mais do que amar a Deus, devemos deixar que Ele nos ame. E Deus não nos ama na medida que merecemos, mas nos ama na medida que precisamos. Quanto mais longe imaginamos estar, mais perto estamos. É o pastor que busca a ovelha perdida, até encontrá-la.
À semelhança do monge, São Paulo teve uma visão do céu. Depois explicou: os olhos jamais viram, os ouvidos jamais escutaram, o coração jamais sentiu o que Deus prepara aos seus. O céu pode ser definido como as Surpresas de Deus, reservadas para nós.

sábado, 27 de dezembro de 2014

CONSIGUIREMOS ESCAPAR? UM ABISMO FOI CAVADO EM NOSSA FRENTE.

As grandes crises comportam grandes decisões. Há decisões que significam vida ou morte para certas sociedades, para uma instituição ou para uma pessoa. A situação atual é a de um doente ao qual o médico diz: ou você controla suas altas taxas de colesterol e sua pressão ou vai enfrentar o pior. Você escolhe.
A humanidade como um todo está com febre e doente e deve decidir: ou continuar com seu ritmo alucinado de produção e consumo, sempre garantindo a subida do PIB nacional e mundial, ritmo altamente hostil à vida, ou enfrentar dentro de pouco as reações do sistema-Terra, que já deu sinais claros de estresse global. Não tememos um cataclisma nuclear, não impossível, mas improvável, o que significaria o fim da espécie humana. Receamos, isto sim, como muitos cientistas advertem, por uma mudança repentina, abrupta e dramática do clima que, rapidamente, dizimaria muitíssimas espécies e colocaria sob grande risco a nossa civilização.
Isso não é uma fantasia sinistra. Já o relatório do IPPC de 2001 acenava para esta eventualidade. O relatório da U.S. National Academy of Sciences de 2002 afirmava: “Recentes evidências científicas apontam para a presença de uma acelerada e vasta mudança climática; o novo paradigma de uma abrupta mudança no sistema climático está bem estabelecida pela pesquisa já há 10 anos, no entanto, este conhecimento é pouco difundido e parcamente tomado em conta pelos analistas sociais”. Richard Alley, presidente da U.S. National Academy of Sciences Committee on Abrupt Climate Change, com seu grupo comprovou que, ao sair da última idade do gelo, há 11 mil anos, o clima da Terra subiu 9 graus em apenas 10 anos (dados em R.W.Miller, Global Climate Disruption and Social Justice, N.Y 2010). Se isso ocorrer conosco estaremos enfrentando uma hecatombe ambiental e social de consequências dramáticas.
O que está, finalmente, em jogo com a questão climática? Estão em jogo duas práticas em relação à Terra e a seus recursos limitados. Elas fundam duas eras de nossa história: a tecnozoica e a ecozoica.
Na tecnozoica se utiliza um potente instrumental, inventado nos últimos séculos, a tecno-ciência, com a qual se explora de forma sistemática e com cada vez mais rapidez todos os recursos, especialmente em benefício para as minorias mundiais, deixando à margem grande parte da humanidade. Praticamente toda a Terra foi ocupada e explorada. Ela ficou saturada de toxinas, elementos químicos e gases de efeito estufa a ponto de perder sua capacidade de metabolizá-los. O sintoma mais claro desta sua incapacidade é a febre que tomou conta do Planeta.
Na ecozoica se considera a Terra dentro da evolução. Por mais de 13,7 bilhões de anos o universo existe e está em expansão, empurrado pela insondável energia de fundo e pelas quatro interações que sustentam e alimentam cada coisa. Ele constitui um processo unitário, diverso e complexo que produziu as grandes estrelas vermelhas, as galáxias, o nosso Sol, os planetas e nossa Terra. Gerou também as primeiras células vivas, os organismos multicelulares, a proliferação da fauna e da flora, a autoconsciência humana pela qual nos sentimos parte do Todo e responsáveis pelo Planeta. Todo este processo envolve a Terra até o momento atual. Respeitado em sua dinâmica, ele permite a Terra manter sua vitalidade e seu equilíbrio.
O futuro se joga entre aqueles comprometidos com a era tecnozoica com os riscos que encerra e aqueles que assumiram a ecozoica, lutam para manter os ritmos da Terra, produzem e consomem dentro de seus limites e que colocam a perpetuidade e o bem-estar humano e da comunidade terrestre como seu principal interesse.
Se não fizermos esta passagem dificilmente escaparemos do abismo, já cavado lá na frente.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

PARA VER, BASTA CRER.

Fala-se que no universo dos humanos há dois modos de relacionamento com as coisas criadas. Um é o modo da borboleta e do corvo que procuram situar sempre o pior, pousando sobre a decomposição e vivendo das coisas arruinadas. Esse é o jeito de quem percorre o espaço onde vive para pousar o olhar, o pensamento e o coração no lado errado da vida. Para esses nada está bem e nada vai melhorar! Se faz sol, lamenta-se o calor. Se chove, grita-se contra a umidade e o barro. No inverno, se fala mal do frio e seus efeitos prejudiciais à saúde e às plantas. No verão, o suor parece um castigo. Na primavera, se condena as alergias causadas pela floração. No outono, se cultiva o aborrecimento das folhas que caem.
Para a multidão dos pessimistas turvam-se os olhos; embarga-se a voz e amplia-se o coro dos que cantam hinos de lamentações. Esse tipo de doença do desencanto cria contágios tão negativos que parecem apressar o fim do mundo. Evidentemente, não podemos negar os cenários de morte e as ameaças ao planeta terra. Porém, não podemos paralisar os sonhos de que um outro mundo é possível. O mundo que saiu das mãos de Deus continua sendo mais esperança do que saudade.
Mas, felizmente, a maioria adota o modo do beija-flor e da abelha preferindo situar as flores que lhes oferecem a doçura como matéria-prima para o sustento e para a fabricação do mel. Tanto as abelhas quanto o beija-flor não ignoram a existência dos espinhos, nem o cheiro da matéria em decomposição, mas procuram pousada lá onde garantem continuar transformando.
A pessoa que vai aprendendo a contemplar a globalidade da criação com olhar de fé se torna muito realista e esperançosa diante de tudo. Nosso falecido  Wilson João Sperandio compôs uma canção muito sugestiva e condizente com o nosso assunto: “Em meu caminho percebo as belezas que vem da terra, do céu e do mar. Tudo me fala do amor do Criador. Oh, meu irmão, para ver basta querer. Que lindo é sentir a Deus em cada rosto do universo! A criação sempre dirá: ‘Obra de amor tu verás em mim’. Em meu caminho encontro a verdade que Deus semeou quando aqui passou. Tudo é caminho, tudo é janela aberta. Oh, meu irmão, para ver basta querer”.
Todos os bons jardineiros da criação se tornaram assim, firmados na raiz de um constante exercício contemplativo. Nessa raiz está uma certeza básica: o mundo que saiu das mãos de Deus traz as marcas originais da bondade e da beleza. A harmonia da Criação não é apenas uma profecia de Isaias, onde lobo e cordeiro poderiam comer juntos, nem somente argumento para Francisco compor o cântico das criaturas.
“Contemple a criação” é um apelo urgente para todos, especialmente para as novas gerações expostas ao risco de se abstrair do mundo real para o mundo virtual. Continua tão importante aprender a pisar na terra, a tocar nas plantas, atravessar um riacho e ver animais vivos nos campos. Não há como não se encantar com a semente a germinar, com os botões se abrindo e com o milagre da vida nas crianças que nascem. Não há como ficar insensível diante dos pobres que se unem em mutirão para construir suas esperanças. “Para ver basta querer!”

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

FELIZ ANO NOVO.

O Natal passou. Agora:Para ti e para mim, um feliz ano novo. Não mera troca numérica de calendário, de quem mantém seu corpo inerte, preso às raízes da insensatez. Nem a sucessão de dias que se repetem no giro cíclico dos gregos antigos, desprovidos de senso histórico. Nem a multiplicação das rugas que se acumulam em nossos corações, oxidadas pela covardia e a saudade de não ser o que se é.
Anseio por um ano novo capaz de reacender em nós energias generosas, consciência crítica, solidariedade discreta, afetos adormecidos, e a irrefreável vitalidade de quem reinventa o amor a cada dia. Um novo tempo de alegorias, no qual a poesia nos embriague a alma.
Um novo ano despido de soberbas, de evocações ególatras, de rancores asfixiantes e da indizível inveja causada pela felicidade alheia. Ano livre de rumores nefastos, incontinência da língua, indiferença à dor e exacerbação de tudo aquilo que, em nós, esculpe o perfil ácido da desumanidade.
Para ti e para mim desejo um ano novo em que cada manhã ressoe como o cantar de laudes sob o esplendor de uma revoada de pássaros. E que sejamos despertados pelo afago prenhe de alvíssaras. Sejam os nossos gestos expressões litúrgicas de bem-querer e gratidões.
Não desejo um novo ano de velhos vícios arraigados, como não considerar suficiente o necessário, acumular supérfluos nas gavetas da casa e do coração ou a leniência perante as injustiças. Nenhum ano pode ser novo se arrastamos vida afora nossas almas incendiadas pela ira, o humor de mãos dadas com o rancor, o orgulho como escudo frente aos que apontam nossos erros.
Quero, para ti e para mim, um ano novo em que a partilha do pão instaure a paz e no qual toda paixão aflore em duradouro amor. Um ano no qual o tempo se desenlace como um tecido fino e transparente, a enlevar-nos na rota do transcendente. Ano de silente contemplação do milagre da Criação e cuidadosa proteção da mãe natureza.
Faço votos de que em 2015 a cegueira apague nossas fúteis ilusões e que brotos de saudáveis quimeras palmilhem a estrada que conduz ao mais íntimo de nós mesmos. Seja para nós um ano de muita fortuna, inflado de projetos promissores, destituído de mesquinharias e perjúrios.
Ano bom é o que traz efervescência espiritual, o vinho a inebriar-nos do sagrado, a alma tecida de alegrias inefáveis, os passos movidos pela vontade alada, o vigor juvenil de quem não encara a velhice como doença. Ano de reavivar antigas amizades, libertar-se dos apêgos vorazes, trocar a tagarelice pelo aconchego reflexivo dos livros e deixar a música inundar nossos mais recônditos sentimentos.
Ano novo é o que transfigura nossas mais secretas intenções e projeta luz nas veredas escavadas por cada uma de nossas positivas atitudes. Assim, haverão de cair as escamas de nossos olhos, os ouvidos acolherão a melodia sideral, o perfume do otimismo nos inebriará, e de nossos lábios brotarão cânticos de aleluia.
Para ti e para mim seja o ano de 2015 ninho de férteis esperanças e senda primaveril rumo a outros mundos possíveis. À mesa, a gratuidade inconsútil; à porta, nossas resistências desarmadas; à sala, um rumor de anjos. E seja toda a casa reduto de sabores e saberes agradáveis ao paladar e à inteligência.
Seja novo, para ti e para mim, o ano entrante, não por reiniciar a sucessão de meses, semanas e dias, e sim por revitalizar nossos bons propósitos, livrar-nos da letargia frente aos desafios espelhados na utopia e arrancar de nosso âmago toda erva daninha semeada por ambições desmedidas.
Novo por incutir em nós a modéstia translúcida de avós afetuosas, o fervor espiritual dos místicos, a exuberância dos bailarinos a multiplicarem as potencialidades do corpo. Ano de romper barreiras do preconceito, derrubar cercas da ganância, fertilizar com sementes altruístas o chão no qual pisamos.
Para ti e para mim, um feliz ano-novo no qual a vida seja diariamente celebrada como dom de Deus, dádiva amorosa, encantadora aventura.
Ao longo deste ano esteja sempre presente, em nossas mentes e em nosso agir, que viver é muito perigoso.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

FELIZ NATAL

Feliz Natal aos infelizes cativos do desapreço ao próximo, da irremediável preguiça de amar, do zelo excessivo ao próprio ego. E aos semeadores de alvíssaras, aos glutões de premissas estéticas, aos fervorosos discípulos da ética.
Feliz Natal ao Brasil dos deserdados, às mulheres naufragadas em lágrimas, aos escravos do infortúnio condenados à morte precoce. E aos premiados pela loteria biológica, aos desmaquiadores de ilusões, aos inconsoláveis peregrinos da vicissitude.
Feliz Natal aos órfãos do mercado financeiro, pilotos de voos sem asas e sem chão, fiéis devotos da onipotência do mercado, agora encerrados no impiedoso desabrigo de suas fortunas arruinadas. E também aos lavradores da insensatez espelhada na linguagem transmutada em arte.
Feliz Natal a quem escapa dos indomáveis pressupostos da lógica consumista, dessufoca-se em celebrações imantadas de deidade, livre do desconforto da troca compulsória de presentes prenhes de ausências. E aos hospedeiros de prenúncios do leque infinito de possibilidades da vida.
Feliz Natal aos devotos do silêncio recostados em leitos de hortênsias a bordar, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura. E a quem arranca das cordas da dor melódicas esperanças.
Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da rosa-dos-ventos e carregam no peito a saudade do futuro. Também a quem mergulha todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identifica a porta que os sentidos não veem e a razão não alcança.
Feliz Natal aos dançarinos embalados pelos próprios sonhos, ourives sapienciais das artimanhas do desejo. E a quem ignora o alfabeto da vingança e jamais pisa na armadilha do desamor.
Feliz Natal a quem acorda todas as manhãs a criança adormecida em si e, moleque, sai pelas esquinas a quebrar convenções que só obrigam a quem carece de convicções. E aos artífices da alegria que, no calor da dúvida, dão linha à manivela da fé.
Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas para atirá-los no lixo do olvido, e se guarda no recanto da sobriedade. E a quem se resguarda em câmaras secretas para reaprender a gostar de si e, diante do espelho, descobre-se belo na face do próximo.
Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra erre do verbo armar.
Feliz Natal aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores, aos escritores sem palavras. E a quem jamais encontrou a pessoa a quem declarar todo o amor que o fecunda em gravidez inefável.
Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia acobertados de compaixão. E a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala os picos em que os abutres chocam ovos.
Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove despudorada liturgia eucarística, transubstancia o corpo em copo, inunda-se do vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.
Feliz Natal a quem se embebeda de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica e não receia se pronunciar onde a mentira costura bocas e enjaula consciências. E a quem voa inebriado pelo eco de profundas nostalgias e decifra enigmas sem revelar inconfidências; nu, abraça epifanias sob cachoeiras de magnólias.
Feliz Natal a todos que dão ouvidos à sinfonia cósmica e, nos salões da Via Láctea, bailam com os astros ao ritmo de siderais incertezas. Queira Deus que renasçam com o Menino que se aconchega em corações desenhados na forma de presépios.

POR FAVOR: UM NATAL PARA JESUS.

Faz tempo que em muitos lugares e países o Natal não é mais de Jesus. Muitos oram ao Menino Jesus no Natal, outros nem celebram mais o Natal. Preferem Papai Noel. Há os que nem lembram mais de sua história. Há os que confundem Natal com duendes, Papai Noel e Jesus e misturam tudo. A televisão leiga há tempo não faz uma catequese do Natal com Jesus. O personagem é mais o velhinho de barbas brancas. Nossas crianças crescem ouvindo mais de Papai Noel e duendes do que de Jesus.
Estão seguindo mais a religião dos animadores de auditório do que a sua religião. Não pedem mais para Deus lhe dar uma graça. Todo mundo tem o direito de pregar o que quiser num país democrático. Mas aos católicos e evangélicos, cristãos comprometidos com Jesus e com o que a Bíblia ensina, fica proibido, em nome da coerência, de seguir tais ensinamentos.
O Natal vem aí. Muita gente vai lhe falar de Papai Noel, perus, pedras, cores e até feitiços para sua vida dar certo no Natal e no Ano Novo. Você vai fazer o quê? Vai ter um Natal com o aniversariante Jesus ou com o Papai Noel? Quem estará enfeitando as janelas de sua casa? Um presépio com Jesus, Maria e José ou o Papai Noel com suas renas e pinheiros cobertos de neve em pleno verão brasileiro? E as lojas? Colocaram Jesus ou Papai Noel na vitrine? Passe pelo shopping de sua cidade ou pelas ruas e veja quem está sendo lembrado neste Natal.
Quem dos dois morreu na cruz por nós? Quem dos dois existiu e quem é apenas uma lenda? Por que será que a gente faz isso todos os anos? Feliz tempo de Natal para você. Sem neve, sem pinheiro e sem Papai Noel. Você conseguiria fazer um Natal todo enfeitado de Jesus?

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

UMA NOITE QUASE SANTA.

Esta data já foi festa espiritual, mas, para milhões de pessoas, hoje é muito mais festa do Papai Noel do que do Menino Jesus. Lembram-se do encantamento de um velho que desce de trenó de um lugar distante e joga presentes pela chaminé ou pela janela e esquecem-se do casal pobre que teve um filho em circunstâncias difíceis, mas não perdeu o amor nem a classe. Esse menino tornou-se o ponto de referência de bilhões de pessoas. Por causa dele, temos nos hospitais, creches, asilos, orfanatos um exército de voluntários que acredita em viver e até morrer pelos outros. Só isso basta para compreender a dimensão dessa festa de aniversário. É um voltar ao passado para entender o presente de milhões de pais e mães pobres com filhos sem chance nem recurso, exceto as chances da esperança e os recursos da ternura.
Nunca é demais lembrar aos cristãos: que a farta mesa de Natal e os presentes cheios de abraços e obrigados não nos afastem do verdadeiro êxtase e do sentido dessa festa cristã. Alguém esteve aqui. O filho de Deus nos visitou! Que os que não acreditam nele façam a festa sem ele. Mas nós, que apostamos na sua vida e na sua mensagem, precisamos ser diferentes.
Se o Natal não é mais o mesmo, a culpa é nossa. Trocamos o aniversariante pelo supermercado e pelo shopping. Usamos mais o cartão de crédito e os talões de cheque do que os nossos joelhos. Isso só vai mudar se nós mudarmos. Tenho uma ideia meio ousada que pode dar certo: se nós, que cremos no Natal, nos negássemos a comprar em lojas onde se expõe o Papai Noel, e nunca a Bíblia ou a imagem do Jesus menino, no Natal seguinte a mensagem seria outra.
O comércio fez o que fez em favor do penetra Noel porque nós, cristãos, não fizemos o que deveríamos ter feito pelo dono da festa! Como está, virou a festa do velho que veio do polo Norte e não a do menino que veio do céu...

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

ALGUMAS PERGUNTAS SOBRE O NATAL:

O Natal é poesia e tragicidade. É mais fácil vê-lo pelo lado da poesia e da beleza. É mais fácil. Não compromete em nada. As mentalidades burguesas gostam desse tipo de Natal. Adoram ver presépios lindos, presentes maravilhosos, mesas fartas, músicas saudosistas, abraços e beijinhos. Mas o Natal-tragicidade é um fato. É só pensar no fato de uma mãe que está para dar à luz e não tem onde parar. Ver as portas se fechando para esse ato criador. É o pequeno coração humano se fechando para o Criador do universo. A própria gruta pode ser vista como poesia. Mas também pode ser contemplada como o último recurso de busca desesperada de um homem e de uma mulher que precisam de um lugar para uma criança nascer.
O passageiro do universo desembarcou numa estrebaria. Donde veio? Não sei! Onde Ele estava morando antes? Não sei! Donde partiu para desembarcar numa gruta? Não sei! Perguntas gostosas e dolorosas! Sei que tomou a carruagem de uma mulher e de um homem e sentiu-se em casa numa pequena gruta. O universo estava todo ali. Vacas e burros, pássaros e sapos, água escorrendo pelas paredes, grilos e cigarras, flores e folhagens, estrelas e lua, pastores e reis. O universo estava ali aos pés do Senhor, desde a estrela maior até a grandeza de pequeno átomo.
Desembarcou em sua casa. Ele não veio de longe. Ele já estava ali. Estava no pasto e na manjedoura. Estava no verde e nos animais. Estava em Maria e José. Apenas surpreendeu a humanidade tomando um rosto de criança indefesa. Para a decepção dos orgulhosos, que esperavam um rei poderoso, Ele se fez um corpo frágil de criança. Parece que Deus gosta de brincar de se esconder! Não gosta de aparatos e triunfalismos. Deus deve rir muito de nossas igrejas e celebrações litúrgicas cheias de procissões, ritos, vestes pomposas e sermões. Deve rir muito dos aleluias e do engessamento dos ritos e das pessoas. Ele veio para nos ensinar a celebrar a vida e nós nos contentamos em celebrar ritos!
Muitos não o receberam. Hoje se repete o mesmo fenômeno. Todas as casas, na pequena Belém, estavam ocupadas. As pessoas se fecharam em si mesmas: “Não havia lugar para Ele”. A casa do coração humano, as casas onde as pessoas se escondem, os templos religiosos, todos estão ocupados. Todos os lugares estão ocupados pelo egoísmo e orgulho, pelas coisas e pelo dinheiro, pelo compromisso social e familiar, pela ocupação com o próprio corpo e aparência social, com o prazer pessoal e com a auto-imagem. E para caprichar na auto-imagem a criatura humana esquece sua radical condição humana, que é ser imagem do Criador. A pessoa, consciente ou inconscientemente, tornou-se o criador e a imagem de si mesma. Infelizmente continua “não havendo lugar para Ele”.
É preciso celebrar um natal cósmico. Natal não é um fato que atinge somente nossa pequena e grande mãe terra. Não há terra sem o sol, não há sol sem galáxia, não há galáxia sem o universo em expansão. Por isso é preciso celebrar o Natal com o sol e as estrelas, com a água e o vento, com o universo todo. Somos seres cósmicos. O mundo é gruta de Belém. É berço da vida. E a vida é Deus.

domingo, 21 de dezembro de 2014

UM NATAL EM TEMPO DE CRISE.

A palavra “advento” quer dizer “que está por vir”, ou que está “ad-vindo”, chegando, deixando-se pressentir e fazendo-se esperar com amor e alegria. O tempo do Advento é para toda a Igreja a vivência do mistério de espera e preparação da vinda de Cristo. Neste tempo, celebramos nas primeiras semanas a espiritualidade de espera da vinda do Senhor que se aproxima. Decorrem daí as exortações à vigilância e a atitude alerta em direção Àquele que vem marcando os textos da liturgia. Nas semanas mais próximas ao fim do Advento e à chegada da festa natalina, vive-se então a preparação mais imediata para as solenidades de celebração do nascimento do Salvador.
O Advento marca o início do Ano Litúrgico. Celebra a vinda definitiva do Senhor em sua Encarnação que se faz sensível entre nós no Natal. É um tempo de quatro semanas em que a Igreja vive em vigilante, piedosa e esperançosa expectativa. Pela oração, a comunidade  aprende a viver a expectativa vigilante, preparando a vida e o coração para acolher Aquele que vem e cujo mistério não se deixa desvendar pela razão nem pela pressa pós-moderna da sociedade capitalista e da cultura de sensações seduzidas.
Este Advento acontece em meio a uma grande crise econômico-financeira, que deixa os países afluentes e ricos cheios de pavor ante a perspectiva de perderem seu estilo de vida confortável e luxuoso. Enquanto isso, os países pobres se veem ameaçados de que pesem sobre eles - como sempre - as consequências da crise e do terror gerado entre os ricos, que farão de tudo para salvar seu capital e sua riqueza.
Parece que não se aprendeu grande coisa com a crise. O Natal deste ano deveria, pelo menos para nós, que acreditamos em Jesus Cristo e o confessamos como Senhor, Cristo e Filho de Deus, ter uma marca diferente: a da austeridade.
Em lugar do consumo, a partilha com os mais pobres. Em lugar de abundância de comida, sobriedade para que outros possam ter uma vez por ano uma refeição melhor e mais abundante. Em lugar de infinitos embrulhos e presentes, a presença carinhosa que se faz próxima dos tristes, dos sozinhos, dos que não têm motivo nenhum para comemorar e a cujos ouvidos as canções de Natal só trazem tristes recordações de seres queridos perdidos e distantes. Em lugar do frenesi, da louca gincana pelas lojas, a espera: fiel, vigilante, ardente.
Simone Weil, filósofa francesa, ensina que a atitude espiritual fundamental do cristão é a espera. Com a condição, evidentemente, de entendê-la não em sentido passivo, mas como a ardente “vigilância do servidor aberto e voltado para o retorno do mestre”, como o estado provisório de uma busca que prefere ao prazer da caça a escuta da verdade em íntima comunhão. A experiência interior a que o tempo do Advento convida e convoca deveria ter essa ênfase: da intensidade e da não completude. É um diálogo consigo mesmo, com os outros, com Deus, até os níveis mais profundos e mais viscerais da existência, deixando-se interpelar pelo Mistério que, não contente em fazer-se carne, se faz criança, indefesa, frágil e vulnerável.
Que o Advento nos introduza no aprendizado de maior austeridade. E nos torne menos indignos do Senhor que vem com a singeleza de um Menino envolto em faixas e deitado em uma manjedoura.

sábado, 20 de dezembro de 2014

AFINAL: QUANDO E ONDE NASCEU JESUS?

Personagem central da história humana, Jesus dividiu a história ao meio: antes e depois Dele. Mesmo assim restam incertezas sobre a data e o local onde nasceu. O evangelista Mateus afirma que Jesus nasceu em Belém no tempo do rei Herodes. Lucas avança um pouco: no tempo de César Augusto, senhor do mundo, que mandou fazer o recenseamento de toda a terra habitada. Ele confirma seu nascimento na periferia de Belém. O fato dos pastores cuidarem dos rebanhos, em campo aberto, de noite, indica que seu nascimento aconteceu no verão. O monge Dionísio, mais tarde, situou o ano de seu nascimento: 753 da fundação de Roma. Mesmo assim, os historiadores, hoje, admitem que esse cálculo pode estar errado em seis anos. A data de 25 de dezembro nada tem de histórico. A Igreja aproveitou uma data pagã – Sol invicto - como referência do nascimento do Salvador.
Onde e quando Jesus nasceu? A resposta continua em aberto. Para Maria Madalena, Ele nasceu, um dia na Betânia, quando Ele olhou para ela com um olhar luminoso de pureza e lhe falou de uma vida nova. Para Francisco de Assis, Ele nasceu na praça central de sua cidade quando, diante do bispo, entregou ao pai seu dinheiro e suas próprias roupas e declarou: “De hoje em diante tenho um só Pai, que está no céu”.
Para o apóstolo Tomé este nascimento foi no instante que o Mestre, que voltara da morte, pediu que ele pusesse o dedo em suas chagas. Para Paulo de Tarso, o nascimento de Jesus ocorreu na estrada que leva a Damasco. Seu projeto era perseguir e prender os discípulos desse homem. Uma luz o cercou e uma voz perguntou: Paulo, por que me persegues? Pedro, teve certeza do nascimento de Jesus no palácio de Caifás, quando o galo cantou pela terceira vez e Jesus olhou para Ele, com um olhar marcado pelo amor e pelo perdão.
Para Lázaro de Betânia, esse nascimento teve lugar quando Jesus se aproximou do seu túmulo e disse: Lázaro, vem para fora, levante e ande. O nascimento de Jesus, para Agostinho de Hipona, aconteceu quando abriu a Bíblia, obedecendo a uma criança que pediu: toma e lê! Para Teresa de Calcutá, Ele nasceu nas imundas ruas indianas, quando viu pobres, velhos e doentes, abandonados para morrer. Para Maria, Jesus nasceu em Belém, quando tomou o Menino em seus braços e com Ele começou um Tempo Novo, que seu povo sonhara durante séculos.
É inútil procurar na folhinha da parede e no calendário. Jesus nasce individualmente na vida de cada um. É uma experiência inteiramente pessoal e que modifica para sempre uma vida. É uma experiência pessoal que pode levar ao martírio, ao deserto ou à missão. É esta experiência que nos situa: antes ou depois Dele.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O EMPENHO DE CONSTRUIR UM MUNDO MELHOR.

Toda ditadura é megalômana. E a que governou o Brasil sob botas e fuzis, de 1964 a 1985, não foi diferente. A construção da rodovia Transamazônica simboliza a arrogância do regime militar.
Rasgou-se a selva de leste a oeste. Abriu-se a estrada em paralelo a caudalosas vias fluviais. Em vez de aprimorar o sistema de navegação pelo rio Amazonas e seus afluentes, a ditadura preferiu obrigar a floresta a ajoelhar-se a seus pés. Possantes máquinas puseram abaixo árvores milenares encorpadas de madeiras nobres, destruíram ecossistemas preciosos, alteraram o equilíbrio ecológico da região.
Tudo em nome de uma palavra tão propalada e, no entanto, vazia de significado: desenvolvimento. Leia-se: exploração predatória da maior floresta tropical do mundo, aberta à voracidade de mineradoras, madeireiras e, sobretudo, do latifúndio predador, quase sempre movido a trabalho escravo.
“No meio do caminho havia uma pedra”, repetiria Drummond. Povos indígenas. Como impedir que oferecessem resistência? Simples: através da arte de seduzir. A Funai ergueu tapini (cabanas de folhas). Dentro, utensílios de caça e cozinha, ferramentas etc. Os índios, encantados com os objetos, acolhiam gentilmente os caras-pálidas. E ingenuamente eram cooptados pelas relações mercantilistas. Em troca de bugigangas perdiam saúde, terras, liberdade e vida.
Detalhe: o mato, não o gato, comeu a Transamazônica, fonte de riqueza e poder de umas tantas empreiteiras.
Hoje, os índios somos todos nós. Os tapini, os shopping, a publicidade, as veneráveis bugigangas que nos agregam valor. O inumano imprime sentido ao humano, como faziam os deuses de ouro denunciados pelos profetas bíblicos: tinham boca, mas não falavam; olhos, mas não viam; ouvidos, mas não escutavam; pés, mas não andavam...
Estamos todos sob o efeito hipnótico do consumismo. Não importa se o produto é frágil ou de má qualidade. Seu design nos cativa. Sua publicidade nos faz acreditar que estamos comprando a oitava maravilha do mundo! E, ingenuamente, que se trata de um produto durável, mesmo conscientes de que o capitalismo não se importa com o direito do consumidor, e sim com a margem de lucro do produtor. Como se livrar do labirinto consumista que, na verdade, se consuma nos consumindo? Não vejo outra porta de saída fora da espiritualidade, somada a uma nova visão do mundo. Sem espiritualidade corremos o risco – sobretudo os mais jovens – de dar importância àquilo que não tem. Imbuídos da baixa autoestima que nos incute a publicidade (“você não é ninguém porque não possui este carro, não veste esta roupa, não faz esta viagem...”) encaramos a mercadoria como algo que nos agrega valor. Não basta a camisa, a bolsa ou o tênis. Têm que ser de grife, com a etiqueta exibida do lado de fora. Assim, todos à nossa volta haverão de reconhecer o nosso status. E quiçá invejar-nos. E aquele ser humano que, ao lado, carece de produtos refinados, é visto como não tendo nenhuma importância. Pois não se enquadra no atual princípio pós-cartesiano: “Consumo, logo existo.”
É espiritualizada toda pessoa cujo sentido de vida deita raízes em sua subjetividade e cujas opções são movidas por ideais altruístas. Ela não faz do que possui – conta bancária, títulos, casa, carro etc. – seu fator de autoestima. Sabe que tem valor em si, que não é nutrida pela posse de bens e sim por sua capacidade de fazer o bem aos outros. Sua autoestima se funda na generosidade, solidariedade e compaixão. Ela é feliz porque sabe fazer outras pessoas felizes.
O mercado tudo oferece. Todos os seus produtos nos chegam embrulhados em papel de presente: se compramos este carro, seremos felizes; se bebemos aquela cerveja, nos sentiremos alegres; se adquirimos tal roupa, ficaremos joviais. O único bem que o mercado jamais oferta é justamente este que mais buscamos: a felicidade. No máximo, o mercado tenta nos convencer de que a felicidade é o resultado da soma de prazeres.
Ora, a felicidade é um bem do espírito, jamais dos sentidos, da cobiça ou da arrogância. É feliz quem ousa destampar o próprio ego e conectar-se com o Transcendente, o próximo e a natureza. Esse irromper para fora de si mesmo tem nome: amor. E se manifesta nas dimensões pessoal, no dom de si ao outro, e na social, no empenho de construir um mundo melhor.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

OS NÓS E OS LAÇOS DO CASAMENTO.

Tem muitos laços o matrimônio. Também muitos nós. Mais laços do que nós. Os nós por causa do grande “Nós” que os dois “Eu” criaram. Os laços são muito mais flexíveis e é gostoso atá-los e reatá-los. Deve ser por isso que chamam “enlace matrimonial”. Atam, desatam e reatam, enlaçam, entrelaçam, relaçam. Seu amor se nutre dessas relações. Relações sexuais, relações de afeto e ternura, relações de esperança. Dão-se os corpos, palavras e olhares gostosos de sentir, e dão um ao outro a confiança plena.
Mas o matrimônio tem seus nós. Há coisas que não se desata. Os laços respondem pela funcionalidade do lar. Os nós, pela solidez do edifício chamado família. Por isso, há liberdades que não se toma e não se tem. E há liberdades que se tem e se dá.
Quando um casal não se sente livre, ou se vê sufocado demais, verifiquem-se os laços e os nós de sua relação. Não estariam apertados e inflexíveis demais? E aí? Não é o caso de refazer, abrandar ou apertar do jeito certo aqueles nós e aqueles laços? Uma coisa é certa. Se um casal tem mais nós do que laços, está em crise. Se só aceita laços frouxos e nenhum nó, está em crise. Sem os laços não há eu! Sem os nós, o “Eu” jamais se transforma em “Nós”.
Se o casal não sente mais saudades um do outro, nem lhe fazem falta as intimidades, palavras e olhares, se tanto faz como tanto fez, seu enlace se aproxima do desenlace. Matrimônio é ternura de comunhão! É viga sustentada mais por laços do que por nós, mais por “Nós” do que por “Eu”!
Que vocês comunguem um ao outro sempre que possível e então,  entenderão até aonde o amor é capaz de ir! Foi do céu que veio esse amor. É legítimo, é da melhor qualidade e é garantido!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

SÓ NO MEIO DA MULTIDÃO.

Sentado na calçada de uma grande cidade, queixava-se um mendigo de estar completamente só. Alguém, para consolá-lo, observou: você não está só: veja quantas pessoas passam por você! Sim, é certo, explicou o mendigo. Muitas pessoas me cercam, passam por mim, mas elas não me veem.
Vivemos hoje o tempo do individualismo. Nossas cidades tornaram-se gigantescos formigueiros humanos. Cada qual com seu objetivo bem definido e sem se importar com os outros. É muito comum não saber o nome da pessoa que mora no andar superior ou na casa ao lado. Ou virar o rosto ao irmão caído na calçada. Todos parecem assumir a filosofia de Sartre: “os outros são o inferno”.
Origina-se assim uma solidão infinita. E o homem de hoje quebra a solidão com amigos virtuais, amigos on line. Do outro lado está alguém que eu não conheço, nem mesmo sei se o perfil com que se apresenta é real. Com ele gasto meu tempo, troco confidências, peço conselhos, sonho e namoro. No passado existia a solidão da campanha, hoje existe a solidão das ruas apinhadas.
Já no portal da Bíblia, Deus interroga Caim: onde está teu irmão? Com uma resposta pós moderna, Caim tenta desculpar-se: “Por acaso sou o guarda do meu irmão?” . Cada pessoa é única e irrepetível e a individualidade é preciosa. Mas não deve ser confundida com o individualismo egoísta que supõe: “eu me basto a mim mesmo, não preciso dos outros”. Esta postura bate de frente com o Evangelho. O amor é o grande mandamento e a vida de comunidade uma vocação comum.
Nascido em 1892, o pastor luterano Martin Niemöller é uma das figuras mais significativas do século passado. Ao dar-se conta do perigo do nazismo de Adolf Hitler, Niemöller tornou-se a mais importante porta-voz da resistência. Preso, passou sete anos nos campos de concentração. É dele um pequeno poema – uma candente profecia - que recebeu dezenas de versões:
“Quando os nazistas prenderam os comunistas, eu calei-me, pois não era marxista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, pois não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, pois não era operário. Quando prenderam os judeus, eu me calei, pois não era judeu. Quando eles vieram me prender, não havia ninguém para protestar”.
O mundo, hoje, é afetado pela maldade de alguns e, sobretudo, pela omissão de muitos. De nada adiantará um dia chegar a Deus, com mãos limpas, se forem comprometidas pela omissão. Respondendo como sucessores de Caim, podemos dizer: todos somos responsáveis uns pelos outros. Os outros são meus irmãos e sua sorte está unida à minha sorte. Nossa fé tem como centro “Deus é Pai e somos irmãos”.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

PARE E OLHE A CRIAÇÃO!

Por sermos humanos, provamos todos os dias que a nossa vida acontece entrelaçada com a criação no seu todo. Somos e estamos vinculados com todas as coisas que nos rodeiam. O mundo criado participa do conjunto de nossas humanas relações indispensáveis ao nosso viver. Desde o ar que respiramos, a mãe terra onde habitamos e por onde andamos, o alimento que nos sustenta, a água e o fogo.
Nosso viver neste mundo sempre corre o risco de se tornar apressado e distraído. Neste ritmo não é difícil nos envolver no círculo vicioso do desencanto e da depredação. Dizem alguns pensadores que, atualmente, as pessoas vagueiam pelo mundo como se estivessem fora de casa. É tão forte a onda de um progresso injusto que achamos normal a velha lei dos acomodados: “Deixar como está, para ver como fica!”
Há alguns anos estive em Belo Horizonte.Na viagem do aeroporto até o hotel, algo me chamou atenção: em muitos carros coincidia uma inscrição que dizia: “Olhe para as montanhas!” A princípio achei que era um convite ao encantamento. Logo procurei me informar a respeito da inscrição e certifiquei-me que era um clamor angustiante.
“Olhe para as montanhas!” não era um convite de admiração, mas um grito de compaixão diante da natureza agredida pelos mineradores. A voracidade diante de uma riqueza que o Criador presenteou aos humanos estava se tornando o cenário de uma impiedosa ganância, sem critérios e sem cuidados em vista do futuro.
Quem transita na rodovia que une São Leopoldo a Porto Alegre, nas proximidades do rio dos Sinos deve ter observado um sinal clamoroso e curioso. Lá se plantou uma cruz com um grande peixe fixado. Mais do que um protesto, vê-se a dor dos pobres e a denúncia simbólica a quem jogou veneno nas águas, matando um número incalculável de peixes. “Olhe para os peixes mortos!”
Cenas como essas, e outras muito piores, se multiplicam em todos os recantos do mundo envolvendo montanhas e peixes, rios e bosques, animais e humanos e todas as espécies, diante das quais, “Deus viu que tudo era bom”. Dores de parto da criação não parecem diminuir. O que podemos fazer e como reagir a tanta fúria devastadora?
Creio que uma sugestão simples, ao alcance de todos poderá contribuir: “Olhe para a Criação!” Olhar para a criação é deixar de ser como o elefante no jardim que pisoteia sem dó nem piedade. Necessitamos resgatar o olhar do encantamento que brota da sintonia de um olhar original daquele que criou o mundo e o colocou a serviço da vida.

sábado, 13 de dezembro de 2014

N ATAL, GRAVIDEZ, GESTAÇÃO E ESPERANÇA.

Natal é tempo de gravidez. Gravidez de esperança pelo novo que vem em forma de menino, humano e indefeso, nascido de mulher. E é a esse mistério tão singelo e despretensioso, mistério pelo qual o mundo é mundo e a cadeia da humanidade segue adiante por séculos e milênios que a fé cristã atribui a salvação do mundo. É nesse mistério de esperança frágil e desprotegida, exposta a todas as intempéries que a revelação afirma que chegou a plenitude dos tempos.
O que acontece no ventre de Maria e que aconteceu, acontecia, acontecera e acontecerá nas entranhas de todas as Marias, Ednas, Joanas, Cristinas e Anas que povoaram, povoam e povoarão a terra é o atestado de que a esperança é o que move o mundo e quando parece já não haver mais nada a esperar a convicção de que em algum lugar, em alguma parte, uma mulher grávida dará à luz um filho. E a esperança recomeçará a brotar da aparente esterilidade que ameaça assolar e ressecar a face da terra.
O Natal, portanto, é tempo de gravidez e gestação. Neste menino pequeno e recém-nascido ao frio e ao calor, à fome e à sede, à saciedade e ao carinho, à dor e à alegria se encarnou a Palavra que vinha germinando nos sulcos do mundo, nas veias da história, e nas entranhas maternais de todo instante, desde o começo dos tempos. Quando o Pai contraiu suas entranhas paterno-maternais para dar lugar ao que não era divino e criar o cosmos, já a esperança habitou o fundo da terra, anunciando o desejado dia em que a criação voltaria a ser semelhante ao criador do qual era imagem.
Na plenitude dos tempos, desde as entranhas da terra e da humanidade, nasceu Jesus, do ventre de Maria de Nazaré. Não desceu do alto, dos espaços siderais em algum voo de emergência. Brotou de baixo, do humano, da carne vulnerável e mortal. Deus se fez carne em Jesus de Nazaré, herdando em seu peito o sangue e o pranto, as alegrias e os desejos das gerações humanas que o haviam precedido e todos os futuros e mistérios desconhecidos e desejados.
Este é o mistério que hoje celebramos. A justiça e a paz vêm de baixo e vêm dos que estão abaixo. Se a nossa justiça não abarcar esses que estão abaixo e à margem das benesses do progresso e da sociedade em que vivemos, será como a palha que queima e se transforma em cinza. Olhar para baixo: esta é a diretriz que nos é dada neste Natal assim como em todos.
Portanto, que não se abra a terra para semear minas que explodirão vidas humanas em mil pedaços. Que não se abra tampouco a terra para enterrar os cadáveres dos justos e o pranto das viúvas e dos órfãos. Que não se abra jamais para fazer desaparecer os torturados, plantar as sementes envenenadas da cobiça e sepultar os sonhos irrealizados.
Que se abra, sim, a terra para que brote hoje e sempre, com sabor e aroma de novo, frágil e indefesa, a epifania, a manifestação de Deus que se faz criança na carne frágil de Jesus de Nazaré. Que se abra a terra, para que a gravidez universal da criação se torne parto infinito e constante. Que a nova criação seja parida na caridade vivida, nos gestos humildes de amor aprendidos no Deus que desce e se encarna no mais estreito e frágil da Criação da qual é Senhor.
Que a nossa humanidade, enfim, aprenda nesse Natal a abrir-se para acolher o outro que sofre, que chora, que é infeliz. O outro faminto, sedento, cativo e nu. Que o coração seja de carne e não de pedra neste Natal em que Deus, uma vez mais, se encarna fragilmente para ensinar que o amor é flor tão frágil quanto preciosa; tão bela quanto mais indefesa; mais ofuscantemente deslumbrante justamente quando se encontra mais ameaçada. E que é preciso cuidá-la com carinho para que ilumine e encha de beleza o mundo tão cheio de ameaças, guerras e morte. Mundo no qual perdem os que têm razão e ganham os que não a têm. O Natal inverte essa equação e mostra onde está a verdadeira vitória, nos subterrâneos da história, onde se encarna a fragilidade do amor.

Feliz Natal a todos.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

NO BRASIL, 20% DA RENDA PROVÊM DO GOVERNO.

Entre os 15 países mais desiguais do mundo, 10 se encontram na América Latina e Caribe. Atenção: não confundir desigualdade com pobreza. Desigualdade resulta da distribuição desproporcional da renda entre a população.
O mais desigual é a Bolívia, seguida de Camarões, Madagascar, África do Sul, Haiti, Tailândia, Brasil (7º lugar), Equador, Uganda, Colômbia, Paraguai, Honduras, Panamá, Chile e Guatemala.
A ONU reconhece que, nos últimos anos, houve redução da desigualdade no Brasil. Em nosso continente, os países com menos desigualdade social são Costa Rica, Argentina, Venezuela e Uruguai.
Na América Latina, a renda é demasiadamente concentrada em mãos de uma minoria da população, os mais ricos. São apontadas como principais causas a falta de acesso da população a serviços básicos, como transporte e saúde; os salários baixos; a estrutura fiscal injusta (os mais pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos que os mais ricos); e a precariedade do sistema educacional.
No Brasil, o nível de escolaridade dos pais influencia em 55% o nível educacional a ser atingido pelos filhos. Numa casa sem livros, por exemplo, o hábito de leitura dos filhos tende a ser inferior ao da família que possui biblioteca.
Na América Latina, a desigualdade é agravada pelas discriminações racial e sexual. Mulheres negras e indígenas são, em geral, mais pobres. O número de pessoas obrigadas a sobreviver com menos de um dólar por dia é duas vezes maior entre a população indígena e negra, comparada à branca. E as mulheres recebem menor salário que os homens ao desempenhar o mesmo tipo de trabalho, além de trabalharem mais horas e se dedicarem mais à economia informal. Graças à ascensão de governos democráticos-populares, nos últimos anos o gasto público com políticas sociais atingiu, em geral, 5% do PIB dos 18 países do continente. De 2001 a 2007, o gasto social por habitante aumentou 30%.
Hoje, no Brasil, 20% da renda das famílias provêm de programas de transferência de renda do poder público, como aposentadorias, Bolsa Família e assistência social. Segundo o IPEA, em 1988 essas transferências representavam 8,1% da renda familiar per capita. De lá para cá, graças aos programas sociais do governo, 21,8 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema.
Essa política de transferência de renda tem compensado as perdas sofridas pela população nas décadas de 1980-1990, quando os salários foram deteriorados pela inflação e o desemprego. Em 1978, apenas 8,3% das famílias brasileiras recebiam recursos governamentais. Em 2008, o índice subiu para 58,3%.
A transferência de recursos do governo à população não ocorre apenas nos Estados mais pobres. O Rio de Janeiro ocupa o quarto lugar entre os beneficiários (25,5% das famílias), antecedido por Piauí (31,2%), Paraíba (27,5%) e Pernambuco (25,7%). Isso se explica pelo fato de o RJ abrigar um grande número de idosos, que dependem de aposentadorias pagas pelos cofres públicos. O vilão do sistema previdenciário brasileiro encontra-se no que é pago a servidores públicos, em especial do Judiciário, do Legislativo e das Forças Armadas, cujos militares de alta patente ainda gozam do absurdo privilégio de poder transferir, como herança, o benefício a filhas solteiras.
Para Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, no Brasil “o Estado joga dinheiro pelo helicóptero. Mas na hora de abrir as portas para os pobres, joga moedas. Na hora de abrir as portas para os ricos, joga notas de cem reais. É quase uma bolsa para as classes A e B, que têm 18,9% de suas rendas vindo das aposentadorias. O pobre que precisa é que deveria receber mais do governo. Pelo atual sistema previdenciário, replicamos a desigualdade.”
A esperança é que a presidente Dilma Rousseff promova reformas estruturais, incluída a da Previdência, desonerando 80% da população (os mais pobres) e onerando os 20% mais ricos, que concentram em suas mãos cerca de 65% da riqueza nacional.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A GRAVATA.

O uso da gravata é um costume antigo, já presente nas civilizações egípcia e chinesa. Foi popularizada na Europa pelo rei Luiz XIV quando contratou soldados mercenários da Croácia na Guerra dos 30 anos (1618-1648). Eles usavam panos coloridos ao redor do pescoço. O rei e as elites se encantaram e a moda pegou. Em alusão aos guerreiros, a peça foi denominada “croata” tornando-se símbolo de bom gosto e nobreza.
A tradicional gravata, em cores e formatos diversos, chegou até nós, como símbolo de sucesso e respeitabilidade. Mas a aparência nem sempre é justificada pela vida dos seus usuários. Existe até a expressão: os crimes dos colarinhos brancos. São os poderosos que, partindo da situação e dos privilégios de classe, cometem crimes quase nunca punidos. Enquanto o pobre – colarinho puído e sujo – é condenado pelo roubo de uma galinha, o colarinho branco conta com recursos para contornar a lei. Isso não é de hoje. Já o filósofo grego Diógenes garantia que os ladrões grandes enforcavam os pequenos.
A dignidade da pessoa não provém da roupa, mesmo admitindo-se que o asseio é algo que deve merecer o cuidado de todos. A conversão de Francisco de Assis teve seu momento culminante na hora que, diante do bispo da cidade, entregou ao pai suas preciosas roupas. A partir daí fez um tosco vestido com pano de sacos. Nem por isso perdeu a dignidade.
Há uma diferença muito grande entre o rótulo e o conteúdo. Há uma diferença muito grande entre a aparência e a realidade. Nas prateleiras, por vezes, colocam-se vasos cheios e o rótulo diferencia uns dos outros. Mas é possível o engano. O rótulo pode falar em açúcar e o conteúdo ser sal. Ou não ter conteúdo algum. No Evangelho, Jesus fulmina os hipócritas fariseus e doutores da lei, comparando-os a sepulcros, bonitos por fora, mas cheios de podridão. Diante de Deus, não adiantará apresentar mãos limpas, mas vazias. As mãos dos que trabalham e servem sempre serão limpas. Eles possuem fichas limpas, o que nem sempre acontece com os colarinhos brancos.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A AURORA FATALMENTE CHEGARÁ.

Nem sempre a biografia dos heróis é completa. Quase sempre são festejados os triunfos e ignoradas as lutas, a incompreensão e mesmo o descrédito. Cristóvão Colombo não foi exceção. Considerado louco, sonhador e aventureiro, nem mesmo depois de seu êxito extraordinário teve os méritos reconhecidos. Os invejosos tentaram diminuir seu feito. Morreu pobre e caluniado. Só a história colocou-o no pedestal merecido.
Na primeira de suas quatro viagens, suas três pequenas naus – Santa Maria, Pinta e Nina – sofreram os embates das ondas e das tempestades. Depois de semanas navegando pelo mar desconhecido, cheios de medos reais e imaginários, cresceu o descontentamento entre os marujos. Eles imaginavam caminhar para a morte. O chefe do grupo, em noite de borrasca, interpelou Colombo: chefe, até quando seguiremos nesta teimosia e o que faremos quando tiverem morrido todas as esperanças? O experiente genovês respondeu: “Ao raiar do dia, vocês dirão: continuamos navegando, navegando, sempre navegando”. Alguns dias após, a 12 de outubro de 1492, avistaram a ilha das Caraíbas, nas Antilhas. O Novo Mundo fazia sua solene entrada na história da civilização ocidental.
A história humana não é feita pelos grandes sonhos, mas pelos que acreditam nos sonhos e comprometem-se a pagar o preço desses sonhos. Continuar caminhando, apesar de todas as dificuldades, é a marca dos heróis, gênios e santos. Continuar caminhando quando seria mais tentador e cômodo desistir é a marca das grandes personalidades. Ao abordar as epopeias portuguesas por mares desconhecidos, onde muitos morreram e outros fracassaram, o poeta Fernando Pessoa questiona: Valeu a pena? Ele mesmo responde: “Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”.
Quanto mais escura a noite, mais agradável é crer na aurora. Quanto mais longo o inverno, mais desejada a aurora. Quanto mais doloroso o Calvário, mais é preciso apostar na manhã da Páscoa. Quanto mais dura a luta, mais doce a vitória.
Ser otimista ou pessimista, muitas vezes, faz parte da estrutura da pessoa. O cristão não tem o direito de ser pessimista. Nem pessimista, nem ingênuo. O próprio Mestre alertou para as incríveis dificuldades que seus discípulos iriam enfrentar, mas sinalizou: “Eu estarei convosco, todos os dias, até o fim dos tempos”.  Esse otimismo invencível transparece nos dois Testamentos. A frase “não tenhais medo”, em suas variantes, aparece mais de 350 vezes na Bíblia. Isso convida o cristão a continuar navegando, navegando, sempre navegando. A noite mais escura esconde a aurora que, fatalmente, chegará.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL?

Os países ricos do Ocidente, cuja democracia se baseia no poder do dinheiro, não têm princípios, apenas interesses. Acusam Cuba de ser uma ditadura que não respeita os direitos humanos por não admitirem o caráter socialista daquela Revolução que, há mais de 50 anos, resiste às agressões do maior império econômico e bélico da história da humanidade.
No entanto, tecem loas à China. Fazem vista grossa ao regime escravocrata de mão de obra barata, onde se fabrica tudo aquilo que, no Ocidente, exigiria pagar salários mais altos, reduzindo a margem de lucro das empresas ocidentais. Inúmeros produtos em oferta em nossas lojas, embora grifadas por marcas originárias do Ocidente, são “made in China”.
Para governos como o dos EUA, do Reino Unido, da França e da Alemanha, o fato de um ditador como Hosni Mubarak ocupar, por 30 anos, o poder no Egito, não tem a menor importância. Desde que sirva a seus interesses geopolíticos numa região explosiva.
De olho no petróleo, os governos ocidentais sempre respaldaram os governos tirânicos do mundo árabe. Negócios, negócios, princípios à parte. Qual potência europeia rompeu com uma das tantas ditaduras militares que assolaram a América Latina nas décadas de 1960 e 1970?
O Ocidente nunca se incomodou com a ausência de eleições periódicas nos países árabes, a opressão da mulher, a perseguição aos homossexuais, o luxo nababesco dos governantes frente à miséria da grande maioria da população. Quantos ditadores africanos engordam os cofres dos bancos europeus?
Narra a Bíblia que o profeta Daniel  foi convocado para interpretar um sonho que tanto inquietava o rei Nabucodonosor, da Babilônia: “Era uma grande estátua, alta e muito brilhante. Ela estava bem à frente de Vossa Majestade e tinha aparência impressionante. A cabeça era de ouro maciço; o peito e os braços eram de prata; a barriga e as coxas, de bronze; as canelas de ferro e os pés, parte de ferro e parte de barro. Vossa Majestade contemplava a estátua quando, sem ninguém jogar, caiu uma pedra que bateu exatamente nos pés de barro e ferro da estátua, quebrando-os. Em segundos, tudo desmoronou. Ferro, barro, bronze, prata e ouro ficaram como palha no terreiro em final de colheita, palha que o vento carrega sem deixar sinal. Depois, a pedra que tinha atingido a estátua se transformou numa enorme montanha que cobriu o mundo inteiro.”
A pedra, no caso do mundo árabe, é a ânsia popular de democracia entendida como justiça social e paz. O que pensa um iraquiano vendo seu país há anos dominado por tropas ocidentais que tratam os habitantes como escória da humanidade? O que pensa um afegão vendo aviões ocidentais bombardearem aldeias, matando crianças, mulheres, idosos, sob a desculpa de se tratar de um refúgio talibã?
A pedra é a cultura religiosa, muçulmana, que grassa naqueles países, e que nada tem a ver com o suposto cristianismo do Ocidente. Em nome de Deus e de Jesus, o Ocidente subjugou, durante séculos, a África, a Ásia e a América Latina. Escravizou habitantes, extorquiu riquezas, transferiu para a Europa preciosidades arqueológicas, como a Pedra de Roseta – hoje no Museu Britânico -, fragmento de uma estela de granodiorito do Egito antigo, cujo texto foi crucial para a compreensão moderna dos hieróglifos egípcios. Sua inscrição registra um decreto promulgado em 196 a.C., na cidade de Mênfis, em nome do rei Ptolomeu V.
O pensamento islâmico não distingue a fronteira entre religião e política. Esta deve ser monitorada por aquela. E a autoridade religiosa é encarada, como ocorria no Ocidente medieval, detentora do poder político.
Para tal conjuntura, o Ocidente só conhece uma resposta: armas, guerras, ocupações, subornos e ditaduras. Porque é incapaz de empreender o diálogo inter-religioso, de reconhecer o direito daqueles povos à autodeterminação, de pautar-se por princípios e não pela voracidade obsessiva do mercado por lucro. Se o fundamentalismo islâmico incute em jovens a mística do martírio, introduzindo uma forma de terrorismo incontrolável, o fundamentalismo do mercado incute nos ocidentais a convicção de que igrejas e mesquitas devem ceder lugar aos shopping centers, templos de consumismo e miniaturização do paraíso na Terra.
Eis a pergunta que foi repetida no Fórum Social Mundial, e exige resposta urgente: Um outro mundo é possível?

domingo, 7 de dezembro de 2014

QUAL É A RESPOSTA CERTA?

Ouço dizer que cientistas calculam milímetros e centésimos de segundo para criarem suas máquinas e concluírem suas experiências. Se eles atentam para tais detalhes, deve ser porque a vida depende disso. Ouço dizer que para que o milagre da vida aconteça neste planeta, a terra gira com precisão milimétrica, de tal maneira que se um dia girasse mais atrasada por questão de segundo, as ondas do mar formariam vagalhões a engolir todas as cidades costeiras.
No seu giro, por doze horas o planeta se expõe à luz. Por doze horas ele esfria e, por um período, curva-se no lado norte para receber mais luz do sol. Leva 365 dias para dar a volta em torno da estrela da qual depende e 24 horas para dar a volta em torno de si mesma.
Acaso alguém planejou esses movimentos? Pelo que se vê e se sabe, outros corpos celestes não têm tais rotações. Será que alguém queria este calor bem distribuído para que houvesse condições de vida? Ou foi acaso? E os frutos para alimentar? Foi acaso? Água regar a vida. Acaso? Quem fez isso pensou nos animais e nos seres humanos, ou foi tudo fruto do acaso?
Pelo que sabemos, nenhum dos outros planetas da estrela sol reúne essas condições. Eu que creio afirmo que alguém que não é um ser qualquer nos queria por aqui. Chamo-o de Deus. Tenho amigos com sérias dúvidas. Eles ainda apostam que Deus não existe. Dizem que um dia a humanidade saberá. Eu digo que já sabemos, mas a falta de outras respostas ainda nos machuca. A verdade é que respostas fáceis e apressadas machucam e respostas difíceis de conseguir também doem. O jeito é crer ou duvidar com seriedade. Não se brinca nem de crente nem de ateu. O universo é coisa séria!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

PENA DE MORTE, SIM OU NÃO?

Kenny e Betty Anne Waters tiveram uma infância dura e difícil. Pai ausente, mãe problemática, dificuldades várias. Isso os fez ficarem mais unidos, aliança que significava para os dois a sobrevivência psicológica. A ponto de quem os conhecia em sua pequena cidade do Estado de Massachussets (EUA) dizer nunca ter visto dois irmãos que se gostassem tanto e fossem tão companheiros.
Ao mesmo tempo nunca se viu dois irmãos tão diferentes. Enquanto Betty Anne era a estátua da responsabilidade e bom comportamento, Kenny era impossível. Travesso em criança, insubordinado quando adolescente e jovem, continuou com um perfil transgressor, protegido pela irmã, que sempre resolvia as trapalhadas em que se metia.
Casaram-se ambos e tiveram filhos. O casamento de Kenny não deu certo e isso o fez voltar a uma vida boêmia. Quando a solidão batia forte, ia procurar a irmã, que sempre o acolhia de braços abertos. Um dia, uma senhora da cidade foi barbaramente assassinada e Kenny acusado de ter cometido o crime. Sem recursos para contratar um bom advogado, foi condenado por unanimidade a prisão perpétua. O caso parecia encerrado. Seu tipo sanguíneo era o mesmo que aparecia nas provas misturado ao da vítima. Todos acreditavam que era culpado.
Todos, menos Betty Anne, que estudou Direito e formou-se para poder provar a inocência do irmão. Kenny estava preso havia 16 anos quando aconteceu a descoberta do DNA, que revolucionou o mundo jurídico. Filas de pessoas presas injustamente batiam às portas dos advogados a fim de fazer os testes e comprovar inocência.
Betty Anne investigou os arquivos em custódia e pediu a reabertura do processo. Feitos os testes, comprovou-se a inocência de Kenny, que foi libertado após longos vinte anos de reclusão injusta. Seis meses depois morria de uma queda, ao subir no parapeito de janela. O casamento de Betty Anne desfez-se, pois o marido não suportou sua dedicação em tempo integral para comprovar a inocência do irmão. Seus dois filhos decidiram morar com o pai pelo mesmo motivo.
À filha de Kenny, que ele ficou impedido de ver por vinte anos, Betty Anne Waters disse, após comunicar a libertação do pai: “Se o Estado de Massachussets tivesse pena de morte em sua legislação, hoje seu pai estaria morto.” Kenny escapou da pena capital por ter nascido em Massachussets e não no Texas ou outro Estado qualquer que tenha a pena de morte.
No dia 2 de maio de 1960, Caryl Chessman - conhecido como o “bandido da luz vermelha”- não teve a mesma sorte. Reafirmando até o fim sua inocência, Chessman - que estudou Direito para fazer sua própria defesa - morreu na câmara de gás do presídio de San Quentin, Califórnia. O mundo inteiro se comoveu, até o Papa pediu clemência para o condenado. Chessman, que provavelmente era inocente, foi executado.
Aí repousa o centro da reflexão sobre a justiça retributiva e a pena de morte. Todo aquele ou aquela que comete um crime ou viola a lei deve, sim, ser extraído do convívio da sociedade a fim de poder refletir, ser reabilitado e reintegrado à mesma sociedade que feriu com sua transgressão. No entanto, o que vemos, mesmo em países desenvolvidos? Cárceres que são, na verdade, fábricas de criminosos e não escolas de reabilitação. Homens e mulheres inocentes - em geral pobres e sem recursos - que inflam a população carcerária e pagam por crimes que não cometeram.
Toda essa situação se torna mais degradante e terrível em níveis exponenciais se aí entra a pena de morte. Quem tem o direito de condenar outro ser humano à morte? Nas mãos de quem está o juízo sobre o fim de uma vida cuja origem foi dom gracioso e inefável do Criador?
A partir da acessibilidade dos testes por DNA, mais de 240 pessoas puderam ser libertadas. Apesar de haverem perdido os melhores anos de suas vidas, puderam talvez desfrutar ainda de algum tempo em liberdade. E os que foram executados? Quem lhes devolverá a vida que perderam injustamente? Tomara que o exemplo de Betty Anne Waters possa inspirar a outros e outras a não poupar esforços para que a inocência não seja penalizada e a vida humana ceifada injustamente.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A PRESENÇA CORDIAL.

Ao longo de toda a história da humanidade, sempre se manteve acesa uma inquietação em desejar saber qual e quem seria o primeiro; quem estaria no princípio, a desencadear a vida e o desenvolvimento posterior do mundo. Tantas teorias desenhadas pelo esforço humano são dignas de louvor, outras apenas são lembradas como tentativas, mas na verdade a pergunta continua.
O certo é que não podemos desconhecer as possíveis teorias e nem cair na ingenuidade. Porém, para nós cristãos, no princípio não foi nem a noite, nem o caos, nem a força, nem a luz e nem a ação. Foi a Presença que cria novas presenças e relaciona-se com elas no amor criador.
No princípio foi a presença. A realidade da presença gera um sentimento, cria uma atitude e se manifesta num comportamento singular diante da vida. Essa presença atua na voz da palavra criadora e, em tudo e para tudo, cria vínculos e estreitas relações. Tudo, na criação de Deus, está entrelaçado em mútua dependência. Uma presença clama por outra presença.
Não é exagero dizer que uma das mais dignas qualidades humanas é a capacidade de ser e estar presente num vivo relacionamento positivo, contagiante e construtivo. Deus-Presença nos fez à sua imagem e semelhança para sermos também presenças. Francisco de Assis entendeu bem essa vocação e missão de ser e marcar presença. Seu grande senso do concreto e do imediato o fazia sentir-se sempre presente diante de Deus, a quem via em todos os seres e acontecimentos, presente diante de alguém ou algo com seu alto senso de fraternidade, presente diante dos animais e coisas que tanto respeitava e a quem dava o doce nome de irmãos e irmãs.
Cada pessoa tem seu próprio rosto e sua específica personalidade. Cada animal tem sua própria missão. Cada coisa tem sua própria significação e cada circunstância seu próprio valor, já que tudo é graça.
São tantas as virtudes que qualificam a presença, mas uma delas que mais merece destaque é a cordialidade que se traduz em sintonia, respeito, atenção e cortesia. A presença cordial vai transformando o que é opaco e obscuro em luminosidade e transparência. É por este motivo que, junto a esse tipo de presença, todos se sentem bem e todos gostariam de conviver.
Enquanto, na atualidade, parece aumentar a multidão dos solitários e as relações frias e impessoais com o mundo virtual, a categoria “presença” se torna cada vez mais importante e necessária. O calor humano, a ternura das relações redimidas e a presença solidária, como em nenhum outro tempo, se fazem necessárias. Na medida em que aumenta a frieza e a indiferença, o impessoal e o anonimato, também aumenta o clamor por presenças humanas maternais que saibam amparar e promover a vida.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

JUNG E A ESPIRITUALIDADE.

Poucos estudiosos da alma humana deram mais importância à espiritualidade do que Jung. Via na espiritualidade uma exigência fundamental e arquetípica da psiqué na escalada rumo à plena individuação. A imago Dei ou o arquétipo Deus ocupa o centro do Self: aquela Energia poderosa que atrai a si todos os arquétipos e os ordena ao seu redor como o Sol o faz com os planetas. Sem a integração deste arquétipo axial, o ser humano fica manco e míope e com uma incompletude abissal. Por isso escreveu:
“Entre todos os meus clientes na segunda metade da vida, isto é, com mais de 35 anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão da sua atitude religiosa. Todos em última instância estavam doentes por terem perdido aquilo que uma religião viva sempre deu, em todos os tempos, a seus seguidores. E nenhum curou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto está claro. Não depende absolutamente de uma adesão a um credo particular, nem de tornar-se membro de uma igreja, mas da necessidade de integrar a dimensão espiritual.”
A função principal da religião, melhor, da espiritualidade é nos religar a todas as coisas e à Fonte donde promana todo o ser, Deus. Esse é o propósito básico de seu grandioso livro Mysterium Coniunctionis (Mistério da Conjunção), que Jung considerava seu opus magnum. Pois nele se trata de realizar a coniuntio, traduzindo, a conjunção do ser humano integral com o mundus unus, o mundo unificado, o mundo do primeiro dia da criação, quando tudo era um e não havia ainda nenhuma divisão e diferenciação.
Espiritualidade significa vivenciar esta situação na medida em que é permanentemente buscada, mesmo que não se deixe apreender e se desloque sempre um passo à frente. O drama do ser humano atual é ter perdido a espiritualidade e sua capacidade de viver um sentimento de conexão. O que se opõe à religião ou à espiritualidade não é a irreligião ou o ateísmo mas a incapacidade de ligar-se e religar-se com todas as coisas. Hoje as pessoas estão desconectadas da Terra, da anima (da dimensão do sentimento profundo) e por isso sem espiritualidade.
Para C. G. Jung o grande problema atual é de natureza psicológica. Não da psicologia entendida como disciplina ou apenas como uma dimensão da psiquê. Mas psicologia no sentido abrangente dado por ele como a totalidade da vida e do universo enquanto percebidos e referidos ao ser humano - seja pelo consciente seja pelo inconsciente pessoal e coletivo. É neste sentido que escreveu:
“É minha convicção mais profunda de que, a partir de agora, até a um futuro indeterminado, o verdadeiro problema é de ordem psicológica. A alma é o pai e a mãe de todos as dificuldades não resolvidas que lançamos ao céu.”
A Terra está doente porque nós estamos doentes. Na medida em que nos transformamos, transformaremos também a Terra. Jung buscou esta transformação até a sua morte. Ela é um dos poucos caminhos que nos pode levar para fora da atual crise e que inaugura um novo ensaio civilizatório, assim como o imaginava Jung, mais integrado com o todo, mais individualizado e mais espiritual.
C. G.Jung se mostra um mestre e um guia que nos traça um mapa apto a nos orientar nestes momentos dramáticos que vive a humanidade. Como acreditava no transcendente e no mudo espiritual, será seguramente o capital espiritual, agora colocado no centro de nossas buscas, que nos permitirá viver com sentido a fase nova da Terra e da Humanidade, a fase planetária e espiritual.

sábado, 29 de novembro de 2014

A FORÇA DAS COISAS FRACAS.

As forças da natureza sempre assustaram a humanidade. Vulcões, maremotos, tempestades, raios, secas e enchentes deixam marcas de destruição em toda a parte. Uma fábula, atribuída a Esopo (século VI antes de Cristo), fala da disputa entre alguns dos elementos da natureza. Quem era o mais forte, o vento, a tempestade ou o sol? Nada melhor que um teste. Qual deles seria capaz de arrancar o casaco de um cavaleiro, que seguia apressado, numa manhã medianamente fria?
O vento entrou em ação, inicialmente com rajadas esparsas. Depois com mais violência, derrubando árvores e destelhando casas, mas o viajante continuou firme, apertando ainda mais o seu casaco. Depois foi a vez da tempestade, enquanto o sol se escondia atrás de uma nuvem. Chuva, raios e trovoadas caíram sobre a terra. O cavaleiro abrigou-se da melhor forma possível, firmando o chapéu e abotoando o casaco. Diante do insucesso do vento e da tempestade, o sol deixou a nuvem para trás e começou a iluminar a terra, com seus raios suaves, sorrindo para a natureza. O viajante tirou casaco e continuou tranquilamente sua viagem.
Muitas vezes as aparências são enganosas. As coisas, aparentemente fortes, acabam vencidas pelas coisas fracas. Um enxame de abelhas pode afugentar um leão. Uma pequena porção de fermento contagia a massa. Um sorriso pode desarmar um homem violento.
A natureza nos ensina que as coisas fracas originam as fortes e poderosas. Minúsculos grãos de areia formam o deserto, gotas de água compõem o mar, pequenos tijolos são os componentes de um edifício. O inverso também acontece com as coisas fortes e que são vencidas. Um poema, com inspiração no Talmud judeu, confirma isso. O ferro é forte, mas o fogo o derrete. O fogo é forte, mas a água o apaga. A água é forte, mas o vento a dispersa. O vento é forte, mas a montanha espalha o vento. A montanha é forte, mas o homem derruba a montanha. O homem é forte, mas a morte derruba o homem. A morte é forte, mas o amor de Deus vence a morte.
A violência consegue os primeiros resultados, mas a vitória definitiva é do amor. A bondade, aparentemente fraca, costuma conseguir vitórias estupendas. A própria história da humanidade é prova disso. Contrariando toda a probabilidade, esta história é moldada, não pelos fortes, mas pelos fracos. Num instante de lucidez, Lênin admitiu: “Agora vejo que a Rússia precisava, não de mim, mas de um Francisco de Assis”.
O machado pode derrubar uma árvore ou mesmo uma floresta, mas ninguém pode deter a semente. O ódio pode destruir, mas somente a bondade sabe reconstruir. O apóstolo Paulo proclama: “Só o amor não passa”.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A IMPORTANCIA DO OLHAR.

Existem realidades tão nossas, no coração da vida, que nem sempre conseguimos captá-las em sua grandeza. Dizem que só valorizamos a luz quando estamos envolvidos nas trevas; acordamos para procurar água quando temos sede. Um peregrino, vendo um cego passar a seu lado, sentou-se à beira do caminho e começou a imaginar o que faria, o que sentiria e como seria se estivesse em seu lugar. De sua meditação surgiu um encantamento constante pelo dom dos olhos perfeitos e pelo fato de poder enxergar. É digno o gesto de acordar para um novo dia e agradecer a Deus pelo dom do olhar.
No coração da vida acolhemos e contemplamos o olhar como comunicação e como linguagem. Todos os nossos sentidos são janelas e canais de comunicação com o exterior. Porém, a vista exerce um papel especial na vida humana. O olhar constantemente nos encobre e nos descobre, nos abre e nos oculta, nos aproxima e nos separa.
O olhar pode ser diferente, conforme a superficialidade ou a profundeza com que sintonizamos, conforme a carga emocional, intelectual e volitiva do olhar que contempla. Há olhares que matam e olhares que despertam vida, olhares destruidores e olhares criadores, olhares que envenenam e olhares que purificam, olhares possessivos e olhares oblativos, olhares transparentes e olhares turbulentos, olhares indiferentes e olhares acolhedores. Todo o olhar é projeção de nosso eu.
Nosso olho enxerga e, no entanto, é o espírito quem vê: “A lâmpada do corpo é o olho: se teu olho for simples, ficarás todo cheio de luz. Mas se o teu olho for ruim, ficarás todo em trevas. Se, pois, a luz em ti é trevas, quão grandes serão as trevas” (Mt 6,22). Quando a pupila do espírito está purificada todo o universo se faz transparente e acolhedor, porque o olho que vê e o mundo que é visto encontram e revivem sua harmonia e proximidade original. A medida do olhar depende da intenção de quem olha. A partir de dentro projeta-se o olhar e vai pousar sobre as pessoas, os seres e as coisas.
O olhar tem um poder tão fascinante que dele se ocuparam e se ocupam a história da cultura, os mitos e as ciências, a filosofia, a literatura e a religião. Assim como o dom do olhar é magnífico, ao mesmo tempo pode se tornar perigoso. Quando o foco de nosso olhar centra-se em nós mesmos, incorremos no perigo do suicídio como Narciso da mitologia. Quando o foco contemplativo parte do coração e se projeta para fora, começamos a ver bem, porque sintonizamos melhor com o olhar de Deus sobre nós, os outros e o mundo. Na verdade, “só vemos bem com o coração”.
Uma das grandes preocupações da ascese cristã sempre foi o ajuste do nosso olhar. Educar o olhar parece ser um dos empenhos no caminho da santidade. Porém, para podermos educar o olhar, necessitamos educar o coração. Ali está o grande investimento de alguém que busca configurar seu ser com dignidade, conforme a medida da maturidade de Cristo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

BABEL NÃO FOI UMA MALDIÇÃO.

Se considerarmos que o ser humano surgiu há cerca de 200 mil anos, a cidade é uma invenção relativamente recente. Durante milênios nossos ancestrais viveram como nômades coletores e, aos poucos, as técnicas de reprodução dos alimentos os fixaram como agricultores e pecuaristas. Havia, naquele longo período, relação direta, e até venerável, entre o ser humano e a natureza. Nossos antepassados se alimentavam sem alterar ecossistemas, biomas, biodiversidade.
Essa relação se altera com o advento das cidades. E um dos relatos mais significativos de como isso ocorreu é o episódio bíblico da Torre de Babel .
Babel é semantema de Babilônia. Deriva da raiz hebraica “bil”, que significa “confundir”. Narra o texto bíblico que Javé, ao observar Babel, convenceu-se de que os humanos se fechavam em seus próprios e ambiciosos projetos, deixando de acolher os desígnios divinos. “Isso é o começo de suas iniciativas!” – disse o Senhor. “Agora nenhum projeto será irrealizável para eles.”
Segundo o autor bíblico, após o Dilúvio “todos se serviam da mesma língua e das mesmas palavras.” Não havia diversidade de enfoques e opiniões. O ponto de vista de um era o ponto de vista de todos. E a atividade agropastoril igualava as pessoas.
A invenção do tijolo e da argamassa provoca um movimento migratório do campo para a urbe. Os humanos decidem “construir uma cidade” – Babel.
O versículo 4 registra as propostas de construção da cidade e da torre, e destaca o principal motivo de tal empreitada: “Para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela face da Terra.” Não se tratava de obter felicidade, bem-estar, bênçãos divinas. Importava a fama e permanecer segregado, seguro.
A revolução tecnológica representada pelo tijolo (insuperado até hoje) imprime aos humanos a consciência de que não estão mais condicionados pela natureza. A relação se inverte. Agora é o ser humano que condiciona a natureza. Transforma-a em artefato. Desprendido do ciclo da natureza, o ser humano se torna senhor do próprio destino.
Tais avanços enchem os humanos de orgulho. Não satisfeitos de “construir a cidade”, decidem abrir a “porta do deus”, ou seja, erguer “uma torre cujo ápice penetre nos céus”. Aqui o relato expressa duas ambições: a de edificar uma montanha artificial (a torre), repositório da divindade, e a de “penetrar nos céus”, quebrar o limite entre o humano e o divino, o profano e o sagrado, a Terra e o Céu. Já não é a divindade que desce à Terra, é o ser humano que invade o Céu, graças à obra de suas mãos.
Antes que a soberba humana se inflasse ainda mais, Javé confundiu a linguagem dos habitantes de Babel e os dispersou. “Eles cessaram de construir a cidade.” Portanto, Babel não foi maldição. Foi dádiva. Delimitou a ambição humana e revelou ser obra de Deus a diversidade de pontos de vista e opiniões, contrária à identificação entre autoridade e verdade.
Toda essa sabedoria explica a arrogância decorrente, ainda hoje, de avanços científicos e tecnológicos. Queremos ser deuses. Nossa busca de endeusamento e imortalidade se reflete na babel ou confusão reinante em nossas cidades. Não pensamos no comunitário ou coletivo, pensamos no individual e no lucrativo.
Assim, nos gabamos de que o Brasil vendeu, em 2010, mais de 3 milhões de veículos automotores, embora isso agrave a congestão metropolitana, a poluição, os acidentes. Não se investe o suficiente em transportes coletivos, assim como não se planeja o espaço urbano, alvo de especulação imobiliária e vulnerável a fenômenos climáticos decorrentes de desequilíbrios ambientais, o que causa enchentes, desabamentos e secas prolongadas.
Hoje em dia, ganha cada vez mais espaço a proposta de bem viver dos povos indígenas andinos, conhecida como sumak kawsay. Sumak significa plenitude e kawsay viver. Trata-se de viver em plenitude.
Plenitude implica fazer da felicidade um projeto comunitário, coletivo. É saber construir relações de solidariedade, não de competição; de harmonia, não de hostilidade; e estabelecer com a natureza vínculos de parceria cuidadosa.
Para a sociedade capitalista, a natureza é objeto de propriedade e temos o direito de explorá-la e até destruí-la em função de nossas ambições. O capitalismo se norteia pelo paradigma riqueza-pobreza, enquanto o sumak kawsay rompe esse dualismo para introduzir a de sociabilidade e de sustentabilidade, bases fundamentais de um projeto civilizatório. Fora disso, caminharemos para a barbárie.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O QUE É SER VOLÁTIL?

A palavra volátil significa “que voa, tem asas”. Assim olhada à primeira vista, encanta a imaginação e a sensibilidade. Quem já não desejou voar e ganhar espaços infinitos, dependente apenas de suas asas? No entanto, em seu sentido figurado a evocação não é tão positiva. Volátil é alguém cuja opinião ou ponto de vista muda com facilidade; inconstante, volúvel; que não é firme ou permanente; inconstante, mutável.
A palavra parece-nos adequada para definir as relações humanas hoje em dia. São, em sua maioria, relações sem firmeza, sem compromissos em longo prazo, sem permanência e, portanto, carentes ou vazias de sentido. Mudam com extrema facilidade. Voláteis, portanto.
Relações voláteis geram identidades igualmente voláteis. Incertas. Mutantes. Formam-se a partir delas personalidades autoreferenciadas, de uma autonomia não livre, mas compulsiva. São, além disso, identidades temporárias, que podem ser apagadas e substituídas por outros rótulos. A memória, atrofiada pelo ritmo da vida líquida pós-moderna, ensina que esquecer é o melhor, a fim de poder reescrever na lousa apagada uma nova identidade. Hoje me auto compreendo assim, amanhã já será diferente. São igualmente identidades plurais, abertas, sem escolhas ou decisões em que empenhem a vida.
Os vínculos admitidos são aqueles que cabem nas redes, como Facebook, Orkut etc. Ali não se depende de relações afetivas que pesam e tiram mobilidade. E quando a comunicação não mais interessar, pode-se cortá-la com a ligeireza de um clique. E novamente mergulhar na mais profunda solidão e vazio de sentido a que este estado de coisas condena o sujeito pós-moderno. A única relação que não o ameaça é aquela que ele estabelece com o seu eu, convertido no mortal espelho de Narciso. Voltar-se para si mesmo é a única instância dotada de certa permanência em um mundo complexo, incerto e inevitável.
A interioridade humana, hoje, vai se convertendo em um novo paradigma emergente. O que se dá, de fato, é um estreitamento da interioridade, que se vive em grande medida pelo fluxo sempre em movimento das sensações que absorvem, não favorecendo o encontro profundo com o próprio eu e tampouco com o outro.
Por um lado, trata-se de um sintoma extremamente positivo, uma vez que denota o advento da já iniciada recuperação do espiritual como dimensão de importância iniludível. Por outro lado, esse voltar-se para dentro de si mesmo pode incluir, e inclui, a tentação de esconder-se em si mesmo e terminar não conseguindo daí sair. E a consequência é o estreitamento da própria interioridade que tem como resultado o fechamento ao outro. E uma terrível e desesperadora solidão. Os postos instáveis de trabalho nas grandes empresas, os espetáculos maciços de diversão, os transportes que levam de um lugar a outro incontáveis pessoas que viajam juntas sem encontrar-se, propiciam conexões funcionais e passageiras, que não deixam rastro na pessoa que se desloca sem pausa pelo mundo líquido.
O vazio que isso gera já é bastante para denunciar que o ser humano é constituído pelo primado da alteridade. Apenas nos olhos do outro vejo quem sou e descubro minha identidade. A intimidade do sujeito humano só existe habitada pela presença de um Mistério.
A volta à interioridade como paradigma não pretende ser, portanto, um ensimesmamento do eu. Mas sim a condição indispensável para o reconhecimento da Presença que habita o humano. E esse reconhecimento, por sua vez, exigirá da pessoa um êxodo, uma saída de si, em direção ao outro, humano e divino, numa relação em que é imperioso entrar para re-encontrar-se e re-conciliar-se com sua identidade perdida. A volatilidade é inimiga desse fundamental encontro marcado desde toda a eternidade.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

NEM TUDO É DEUS, MAS DEUS SE REVELA EM TUDO.

Carlos Mesters, o mais popular biblista do Brasil, sublinha que há no Antigo Testamento dois decálogos, o da Aliança e o da Criação. O da Aliança surgiu primeiro, embora o outro já existisse. Ocorre que o povo de Deus, por não levar a sério o da Aliança, não tinha olhos para perceber o Decálogo da Criação.
Ao longo dos 400 anos da monarquia (de 1000 a 600 a.C.), Javé, o Deus libertador do Êxodo, foi reduzido a um ídolo manipulado pelos poderes civil e religioso para legitimar a corrupção e a ganância dos reis. E ninguém dava ouvidos às denúncias dos profetas. Até que Nabucodonosor, rei da Babilônia, invadiu a Palestina em 587 a.C. e destruiu Jerusalém.
O choque da dominação e do exílio abriu os olhos do povo de Deus para o Decálogo da Criação: “O ritmo da natureza, do sol, da lua, das estações, das chuvas, das estrelas, das plantas, revela o poder criador de Deus” – afirma Mesters. “É a expressão do bem-querer do Deus Criador, da pura gratuidade! É uma certeza que não falha. É a prova de que Deus não rejeitou seu povo. Nossa fraqueza pode levar-nos a romper com Deus (como de fato aconteceu), mas Deus não rompe conosco, pois cada manhã, através da sequência dos dias e das noites, Ele nos fala ao coração”.
Nossa visão do mundo interfere em nossa visão de Deus, assim como o modo de concebermos Deus influi na visão que temos da vida e do mundo. Ao longo de 1.000 anos predominou, no Ocidente, a cosmovisão de Ptolomeu, que considerava a Terra o centro do Universo. Isso favoreceu a hegemonia espiritual, cultural e econômica da Igreja, encarada pela fé como imagem da Jerusalém Celeste.
Com o advento da Idade Moderna, graças à nova cosmovisão de Copérnico, logo completada por Galileu e Newton, constatou-se que a Terra é apenas um pequeno planeta que dança em torno da própria cintura (24 horas, dia e noite) e do sol (365 dias, um ano). O paradigma da fé deu lugar à razão, a religião à ciência, Deus ao ser humano. Passou-se da visão geocêntrica à heliocêntrica, da teocêntrica à antropocêntrica.
Agora, a modernidade cede lugar à pós-modernidade. Mais uma vez, nossa visão do Universo sofre radicais mudanças. Newton cede lugar a Einstein, e o advento da astrofísica e da física quântica nos obrigam a encarar o Universo de modo diferente e, portanto, também a ideia de Deus.
Se na Idade Média Deus habitava “lá em cima” e, na Idade Moderna, “aqui embaixo”, dentro do coração humano, agora conhecemos melhor o que o apóstolo Paulo quis dizer ao afirmar: “Ele não está longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dentre os poetas de vocês disseram: ‘Somos da raça do próprio Deus’.
A física quântica, que penetra a intimidade do átomo e descreve a dança das partículas subatômicas, nos ensina que toda a matéria, em todo o Universo, não passa de energia condensada. Em que a física quântica modifica nossa visão do Universo? Ela nos livra dos conceitos de Newton, de que o Universo é um grande relógio montado pelo divino Relojoeiro e cujo funcionamento pode ser bem conhecido estudando cada uma de suas peças. A física quântica ensina que não há o sujeito observador (o ser humano) frente ao objeto observado (o Universo). Tudo está intimamente interligado. O bater de asas de uma borboleta no Japão desencadeia uma tempestade na América do Sul... Tudo que existe coexiste, subsiste, pré existe, e há uma inseparável interação entre o ser humano e a natureza. O que fazemos à Terra provoca uma reação da parte dela. Não estamos acima dela, somos parte e resultado dela; ela é Pacha Mama ou, como diziam os antigos gregos, Gaia, um ser vivo. Deveríamos manter com ela uma relação inteligente de sustentabilidade.
Esse novo paradigma científico nos permite contemplar o Universo com novos olhos. Nem tudo é Deus, mas Deus se revela em tudo. Nossa visão religiosa é agora pananteísta. Não confundir com panteísta. O panteísmo diz que todas as coisas são Deus. O pananteísmo, que Deus está em todas as coisas. E Jesus nos ensina que Deus é amor, essa energia que atrai todas as coisas, desde as moléculas que estruturam uma pedra às pessoas que comungam um projeto de vida.
Como dizia Teilhard de Chardin, no amor tudo converge, de átomos, moléculas e células que formam os tecidos e órgãos do nosso corpo às galáxias que se aglomeram múltiplas nesta nossa Casa Comum que chamamos, não de Pluriverso, mas de Universo.

sábado, 22 de novembro de 2014

NOSSO COMPROMISSO NÃO É COM A VITÓRIA, MAS COM A LUTA.

O mundo vivia os dias sombrios do Holocausto. Em nome da primazia da raça ariana, Hitler e o nazismo pregavam o extermínio dos judeus. A atriz Ruby Dee narra a epopeia de um grupo de judeus em fuga, buscando a fronteira onde poderiam ter segurança. Formado por cerca de 60 pessoas – homens, mulheres e crianças - todas da mesma aldeia, os fugitivos eram obrigados a enfrentar a floresta, comendo o que podiam, viajando sobretudo à noite, para não caírem nas mãos dos nazistas. Alguns morreram pelo caminho.
Depois de semanas de fuga, um idoso, falando em seu nome e em nome de outros idosos, declarou: somos um estorvo, continuem sem nós, assim é possível que vocês sejam salvos. A resposta foi imediata: “As mães precisam descansar de vez em quando. Portanto, em vez de ficarem aí sentados e morrerem, por favor, peguem as crianças e andem até onde puderem”. Um novo espírito motivou o grupo. Os idosos pegaram as crianças e começaram a andar e andaram até onde puderam. Até a segurança além das fronteiras. Eles haviam descoberto uma razão para viver.
Fato semelhante é narrado pelo escritor francês Antoine Saint Exupéry. Seu avião espatifou-se entre as catedrais de gelo dos Andes. Sua primeira intenção: deixar que o frio e o gelo colocassem um ponto final em seu sofrimento. Mas ele refletiu: meus restos mortais jamais serão encontrados no fundo das geleiras e minha esposa não receberá o seguro. Se ela pensa que estou vivo, tem certeza que estou caminhando. Saint Exupéry deu o primeiro passo. Depois caminhou três dias e três noites, galgando a montanha. Quando ninguém mais acreditava, o milagre aconteceu e ele foi salvo. O segredo foi ter dado o primeiro passo. Isto lembra a afirmação de Jean Cocteau: ele não sabia que era impossível. Foi lá e fez.
Na realidade, ignoramos nossas possibilidades. Nossos limites ainda não foram testados. Nas Olimpíadas são estabelecidos recordes, considerados quase impossíveis de serem superados. Isso não impede que sejam superados. E continuarão sendo superados, desde que acreditemos nisso e descubramos uma boa razão para tentar.
A vida é um dom divino, um dom maravilhoso que nos convida à superação. “Sim, nós podemos” foi a legendária motivação de Obama. A vida é uma só. Cada gesto é irrepetível e por isso merece toda a intensidade. O genial Charles Chaplin escreveu: “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”.
Isto não significa que podemos realizar todos os sonhos. Isso não está ao nosso alcance. Ao nosso alcance está a capacidade de lutar. Nosso compromisso não é com a vitória, mas com a luta. Este é o limite que Deus nos pede.