quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O SMARTPHONE FUNCIONA COMO ESPELHO.

Até meados do século XX, a mobilidade humana era muito restrita. As pessoas mantinham vínculos comunitários mais estreitos. Relacionavam-se, por toda a vida, com familiares, amigos, frequentadores da mesma igreja ou do mesmo clube. Se viagens ocorriam, eram periódicas, e quase nunca para lugares muito distantes dos limites da cidade. Avós, pais e irmãos moravam, quase todos, próximos uns dos outros. Isso reforçava os elos comunitários, a autoidentidade, o senso de agregação. Os laços de sangue falavam mais alto que o padrão de vida ou o nível de cultura.

Tudo isso ruiu com a mobilidade geográfica facilitada pela pós-modernidade. O barco que conduzia o clã familiar congregado foi de encontro aos penhascos da sociedade consumista e se estilhaçou. Todos ficaram à deriva.

Hoje, nessa enorme gaiola de cimento e ferro, chamada prédio de apartamentos, o vizinho de porta nada sabe a respeito de quem mora ao lado. Estão todos condenados à perda de identidade, ao anonimato, à estranheza. Enquanto na “aldeia” os olhares eram de familiaridade e acolhimento, agora são de suspeita e medo. Como diria Sartre, o outro é, potencialmente, o inferno. Como preservar a autoestima se a pessoa não se sente estimada?

Soma-se a isso um novo fator que agrava a ansiedade, a solidão, as atitudes narcísicas: a aldeia digital. Assim como as pessoas buscam grupos com os quais se identificam (clube, igreja, associação, núcleo cultural etc.), elas também se inserem em vários nichos internáuticos no esforço de se afirmarem socialmente. O ser humano não pode prescindir do olhar benfazejo do outro. Mas o espaço cibernético é substancialmente narcísico. A pessoa posta algo – mensagem, foto, meme etc. – como quem joga um peixe no lago cercado de pescadores. Ansiosa, quer saber quem fisgou a sua postagem, se interagiu e de que maneira. E mergulha no círculo vicioso da digitação constante.

Se no espaço urbano, onde os laços familiares estão geograficamente distanciados, prevalece a desconfiança, no virtual isso se torna mais acentuado. Como no paradoxo do gato de Schrodinger, o outro com quem você se relaciona pode ser e pode não ser ele. E, como é natural, cada um busca ser reconhecido dentro daquela bolha. Quando alguém posta é também em busca de si mesmo. O smartphone funciona como um espelho, no qual bilhões esperam ver a sua imagem melhorada. E o retorno, muitas vezes, é a desconstrução de quem postou. Ninguém ingressa na arena de boxe para presenciar a luta, e sim para esmurrar o outro até que ele seja aniquilado. E isso é mais fácil quando o outro é um estranho. O outro, nessa arena virtual, é sempre um concorrente, e não um parceiro.

Daí a usina do ódio, das fake news, de tudo que faça um sobressair sobre os outros. A emoção prevalece sobre a razão. E a imposição sobre o diálogo. Não se procura ter parceiros e, sim, seguidores. Milhões de pequenos ditadores emitem a sua verdade sobre o mundo, ainda que seja uma clamorosa mentira, e assim fuzilam virtualmente todos que se lhe opõem.

Um exemplo dessa tendência de isolamento e agressividade é a crescente venda de veículos utilitários (SUVs), próprios para zonas rurais, nas classes altas de áreas urbanas. Além de não serem adequados para trafegarem na cidade, criam nos passageiros uma sensação de proteção e poder. Muitos adicionam à marca modelos com expressões típicas de conflito e belicismo: Defender (defensor), Raider (agressor), Crossfire (fogo cruzado), Tracker (perseguidor), Compass (renegado), Kicks (chutes).

Convém escutar os sábios: “É chegado o momento, não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra” (Rubens Alves: “A Escutatória”).

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O SILÊNCIO DE DEUS.


Chega a amiga sem o sorriso que lhe é peculiar. Recebo-a com o pressentimento de que algo lhe esmaga o coração. Então, desabafa. Fala do genocídio (mais de 630 mil mortos) promovido pelo governo federal ao minimizar a pandemia e negar a ciência; das invasões de terras indígenas; do feminicídio alarmante; dos múltiplos casos de racismo; dos sucessivos assassinatos de crianças, no Rio, por supostas “balas perdidas”. E antes de se calar, conclui: “Não suporto o silêncio de Deus”.

Uma longa pausa se abre entre nós. Porque não me julgo portador de elixires capazes de consolar os aflitos. Também carrego minhas angústias e tantas interrogações que me oprimem o coração. O silêncio de Deus também me inquieta. Não creio em um deus “pronto socorro” que venha em resposta às minhas súplicas. Nem mesmo sei quem é Deus, digo a ela, por mais que os catecismos e as teologias se esforcem em defini-lo. Pura bravata!

Admito que Deus extrapola todos os nossos conceitos e nossas palavras, ideias e fantasias. Não cabe na mente nem na alma dos humanos. É radicalmente o Outro! O Inominável, como o considera o centésimo nome da divindade na lista muçulmana.

Mesmo na Bíblia – com raras exceções, como no batismo de Jesus (Marcos 1,11) -, Deus se cala. Faz-se presente disfarçado de nuvem, de brisa suave, de sopro, de anjo etc. É o Deus (oculto) de Pascal. Fez silêncio inclusive na agonia do Filho pregado na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, clamou Jesus aquele que Jesus tratava com tanta intimidade, a ponto de chamá-lo Abba – “meu pai querido”, em aramaico – agora estava tão distante que foi invocado pelo nome genérico.

Deus também fez silêncio nos campos de concentração nazistas. Até o papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz, em abril de 2010, exclamou: “Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estavas nesses dias?” Da mesma forma, o salmista clamou: “Meus Deus, eu grito de dia e não me respondes!”. E Javé adverte no livro dos Provérbios: “Vocês me chamarão, mas não responderei; procurarão por mim, e não me encontrarão.”.

Deus é definitivamente um ser insondável, enigmático. É isso, na opinião de João da Cruz, que nos permite crer ou não crer. “Onde tu te escondes?”, indaga o místico espanhol, ao fazer eco ao profeta Isaías: “Tu és um Deus que se esconde”.

Minha amiga diz que está em crise de fé. Como os amigos de Jó. Recordo o conselho de Alfred de Vigny: “Nunca fale e nunca escreva sobre Deus. Restitua-lhe o silêncio com o silêncio”.

Esse silêncio significa a morte de Deus, como alertou Nietzsche? Óbvio que não. A religiosidade está em plena ascensão no mundo. Nos EUA é politicamente incorreto se declarar ateu… Figuras como o papa Francisco e o Dalai Lama se destacam como as mais respeitáveis.

Mas convém assinalar que Deus também é evocado pelos terroristas, pelos autocratas, como Bolsonaro, e seu nome é amplamente tomado em vão e utilizado para justificar as mais terríveis atrocidades.

“Graças a Deus”, roga uma família que, por pouco, não foi esmagada pela grande pedra que se desprendeu nos morros de Petrópolis. E o que dizer aos familiares das vítimas fatais? Dizer que não mereceram a bênção de serem agraciados pela mão salvadora de Deus?

Digo à minha amiga que prezo com profundo respeito o silêncio de Deus. De certa forma, invejo-o. Nesse mundo tão ruidoso, de zoadas auditivas e virtuais, guardar silêncio é uma atitude de profunda sabedoria. De saúde psíquica. Não vale a pena falar se minhas palavras não forem melhores que o meu silêncio.

Temos medo do silêncio. Deus não, o que comprova a sua sapiência. Temos dificuldades frente a tudo que requer silêncio, como dormir, orar, meditar, ocupar-se com um livro… O silêncio nos atordoa. E tememos o mais definitivo dos silêncios – a morte.

Após nossa conversa, minha amiga parecia menos angustiada. Fez-se prolongado e leve silêncio entre nós. Até que ela se levantou, deu-me um abraço apertado e partiu em silêncio.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A FRATERNIDADE É UNIVERSAL.

Faz-se uma constatação triste: o tipo de mundo no qual vivemos é tudo menos fraternal. O que predomina é o poder que, logo de início, estabelece uma divisão entre quem tem poder e quem não tem poder. Trata-se do poder-dominação, político, econômico, ideológico, midiático, também familiar e outros. Desta divisão nasce toda sorte de desigualdades: uns se sobrepondo aos outros, a maioria colocada no andar de baixo e uns poucos no andar de cima.

A desigualdade significa injustiça social que é eticamente inaceitável. Para as pessoas de fé, a injustiça social representa um pecado contra o Criador porque ofende a Ele e a seus filhos e filhas. Portanto, estamos submetidos a uma situação que não agrada a nós e também não agrada a Deus.

Grande é a busca humana por uma sociedade livre, igualitária, justa e fraterna. Em nome dela se fizeram as grandes revoluções, sempre derrotadas, mas nunca definitivamente vencidas, pois o anelo humano por liberdade, igualdade e fraternidade é imorredouro. Haverá sempre pessoas e movimentos sociais que manterão vivo este sonho e procurarão concretizá-lo na história.

Muitos são os motivos que fundam a fraternidade. Primeiramente somos todos portadores da mesma humanidade, pouco importa a origem, a cor da pele, a religião e a visão de mundo. Todos possuímos o mesmo código genético de base, presente em todos os seres vivos: os vinte aminoácidos e as quatro bases nitrogenadas. Dito numa linguagem pedestre: somos construídos por 20 tijolinhos diferentes e por quatro tipos de cimento. Combinados os tijolinhos e amalgamados pelos vários tipos de cimento, emerge a biodiversidade. Quer dizer, existe um laço de fraternidade real entre todos os seres vivos e especialmente entre os humanos. A fraternidade é universal, a natureza incluída.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

ESCRAVIZAR PESSOAS É CRIME.

 

Tratar seres humanos como escravos aparece como opção barata para aumentar as margens de lucro. Desesperados, os trabalhadores são coagidos a aceitar condições de trabalho indecentes em troca de salários de fome. A juventude da periferia, as mulheres e os negros são os mais afetados. Para maioria, a inserção no mercado de trabalho é um sonho distante.

Quando os direitos humanos são violados, as pessoas são tratadas como ferramentas descartáveis por empresários que só querem ganhar dinheiro. As vítimas do trabalho escravo sofrem todo tipo de violação dos direitos humanos.

Crime. Monstruosidade. Pecado. Escravizar pessoas é crime de lesa humanidade, uma agressão ao próprio Deus. Cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus e deve ser tratada com amor e respeito. Quem ama a Deus deve lutar contra a opressão.

O problema não é impossível de ser resolvido. Os governos devem fazer mais, e a sociedade deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para acabar com a escravidão moderna. “É importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem” (Papa Francisco).

Os cristãos, o que fazem para combater o trabalho escravo? Denunciam? Ou são indiferentes. Ou covardes? A omissão é pecado. O compromisso de erradicar todas as formas de escravidão deve ser de todos. “todos devem se comprometer nessa tarefa […]. “Que haja trabalho para todos, e trabalho digno, não de escravo” 

Não normalizemos a barbárie. São tempos de violência. Moise Kabagambe, jovem negro trabalhador foi espancado até a morte por reivindicar seu salário atrasado.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

O TRABALHO

O trabalho é fator indispensável para construir e preservar a paz. Diante dos olhos está, pois, um desafio para governos: exercer a sua tarefa de gerar condições para a criação de postos de trabalho, buscando garantir o necessário equilíbrio social e, consequentemente, a paz. Lógicas e intuições são preciosas na promoção de mudanças que favoreçam condições justas e humanas de trabalho, evitando situações de convulsão social, em razão do sofrimento de muitos desempregados. O ponto de partida é compreender que o trabalho é uma forma de expressão do ser humano e de suas habilidades, reconhecendo a sua essencialidade na organização social, para inspirar escolhas políticas que determinem os rumos da economia.

Abominável é a lógica econômica que, hierarquicamente, vê o lucro acima de tudo, desconsiderando a função social do trabalho. Uma perspectiva que produz escravizações, escassez de oportunidades e, consequentemente, impede que muitos se sintam realizados. A mensagem social  é um contraponto, pois considera que para além de sua dimensão técnica, produtiva e do seu caráter profissional, o trabalho é essencial à condição humana. O exercício profissional garante o próprio sustento e de familiares, reveste-se do sentido de colaboração com os outros, pois sempre se trabalha com alguém ou para alguém. Deve-se, pois, reconhecer a essencialidade da dimensão social do trabalho – veículo e alavanca na construção da paz.

Neste cenário, o bem comum está fatidicamente comprometido, provocando o crescimento da violência e da criminalidade organizada, sufocando a liberdade, permitindo a contaminação ainda mais grave de uma economia já muito adoecida. Urgente, pois, é ampliar oportunidades de trabalho, por meio da atuação de governos competentes, com sensibilidade social, capazes de reconhecer que o trabalho é uma base para a construção da justiça e da solidariedade. O momento exige competência política na determinação de novos rumos, urgentemente, partindo do princípio incontestável de que o trabalho constrói a paz.