quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

CONHEÇA UM POUCO MAIS O NOSSO CARNAVAL.

É parte constitutiva da identidade do ser humano o elemento da festa. A festa interrompe o tempo cotidiano e introduz a diferença do ritual e da celebração, para marcar uma ocasião especial em que é preciso deixar a rotina e voltar os olhos para o extraordinário que irrompe no tempo cronológico.

Todas as festas são eventos pelos quais se entra em “outra” ordem de coisas, onde a fantasia, a imaginação e o desejo tomam lugar. Festejar, portanto, é reafirmar nossa condição de ser humano, é sublinhar o fato de que não somos guiados apenas pelos instintos e pelo kronos que implacavelmente passa. Festejar é demonstrar que temos algum poder sobre o tempo, transfigurando-o com o rito da comemoração e da celebração.

Em tempo de carnaval, somos instigados a refletir sobre o sentido e o objetivo da música e da dança, dos espetáculos cheios de luzes e cores, dos corpos desnudados e fantasiados em desfile, do samba na rua, de tudo que compõe os três dias que o povo espera com sofreguidão. Isso torna-se ainda mais importante no Brasil, país onde o carnaval ocupa lugar central no imaginário do povo. Chamado com justeza país do Carnaval, o Brasil parece que entra em câmara lenta no Ano Novo para só recuperar seu ritmo e dinamismo depois dos festejos momescos.

Efetivamente, a maioria daqueles e daquelas que “brincam” o Carnaval conhecem pouco ou nada do seu sentido mais profundo. A primeira dimensão dos folguedos carnavalescos tem a ver com um tempo religioso, cósmico e sagrado, onde a Transcendência é que irrompe e transfigura o kronos. O antropólogo Roberto da Matta nos chama a atenção, em seu conhecido livro “Carnavais, malandros e heróis”, para o fato de o carnaval ficar suspenso entre o Advento (tempo ligado ao nascimento de Cristo que é celebrado no Natal) e os 40 dias da Quaresma, esse período de penitência e mortificação que visa à conversão (metanoia) e culmina com a celebração dos mistérios da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.

De fato, é como se todo o ritual carnavalesco, tão apaixonadamente preparado e vivido pelo povo e que tantos milhões rende aos bolsos dos donos das festas e desfiles só deixasse brilhar seu verdadeiro sentido quando o silêncio da Quarta-feira de Cinzas se faz, com seu ritual das cinzas aplicadas em cruz sobre a testa dos penitentes acompanhado das palavras: Convertei-vos e crede no Evangelho. A quarta-feira proclama a morte de Cristo, agora assumida pela disciplina da Quaresma, que substitui os folguedos e a descontração carnavalesca.

O carnaval, portanto, não tem rosto próprio, já que sua identidade é dada por um outro tempo e uma outra ordem de coisas e de sentido. Figura – ainda seguindo Roberto da Matta – como um momento sem nome ou vez, escondido nas dobras de um calendário sagrado. Situado entre o nascimento e a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a festa que é o reinado de Momo é efêmera como as alegrias e gozos imediatos. Assume e resume simbolicamente os momentos crísticos do Natal e da Páscoa. E a numerologia cristã dos três dias de que fala o Novo Testamento.

O carnaval é, portanto, um evento relativo. Com o brilho e o ruído que atraem todos os focos de atenção, na verdade está simplesmente resumindo algo de fulgor bem maior e duradouro: os três dias de folia se referem e encontram significação no mistério cristão, já que a festa carnavalesca nasce, agoniza e morre em três dias.

Sendo um evento sincrônico, repetitivo, prenhe de conteúdos cognitivos e afetivos, o Carnaval tornou-se e passou a ser um tempo social importante, fortemente ligado à experiência vital de uma sociedade, muito especialmente da sociedade brasileira.

Em uma leitura informada pela fé, mas aos olhos das Ciências Sociais, o Carnaval só pode ser compreendido no contexto da visão cristã de mundo. Carnaval e Quaresma – no calendário cristão que rege o mundo após a queda do Império Romano – opõem-se no ciclo anual por seus conteúdos sociais e religiosos, implicando comportamentos individuais e coletivos opostos. Porém, na verdade, encontram seu ponto luminoso e iluminador na pessoa de Jesus Cristo, Sol que nunca se apaga, Vivente por excelência, sobre quem a efemeridade das coisas não tem e poder.

A alegria do povo que vai às ruas fazer festa é bendita. É cura para as dores e catarse para as opressões vividas e padecidas. Assim foi esse carnaval extemporâneo, acontecido depois da Páscoa, mas onde se expressou uma alegria pascal após tanto luto e tanta morte, como as que assolaram o povo brasileiro nos últimos dois anos. Essa demonstração de alegria encontra seu paradigma no mistério que configura o cristianismo e sua esperança no amor que é mais forte que a morte.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

REDUÇÃO DA TAXA SELIC




Lula está coberto de razão ao tentar forçar a redução da taxa selic: quanto menor o juro que o governo pagar aos bancos (que financiam o governo por meio dos títulos da dívida pública), mais dinheiro vai sobrar para o governo investir, que é o caminho mais seguro para o país voltar a crescer.

É uma queda de braço entre quem empresta e quem toma emprestado. Quem empresta, quer cobrar mais (alegando o tamanho da dívida e o alongamento dos prazos de pagamento) e quem toma emprestado, quer pagar menos.

Lula pode não ter escolhido a forma mais adequada para alcançar seu objetivo, que é reduzir a taxa de 13,75% ao ano, mas o governo tem instrumentos e mecanismos para chegar lá.

Quem está desprotegido mesmo são os clientes dos bancos, pequenos, médios e grandes, dos quais os banqueiros cobram ao mês o que o governo lhes paga ao ano.

A taxa de juros do cartão de crédito está em 13,96% mensais.

E, se o governo diminuir os juros, os banqueiros vão subir o preço do dinheiro ao consumidor, para compensar as “perdas”.

Eles não perdem nunca. (Ao menos no Brasil).

sábado, 4 de fevereiro de 2023

UM BARCO CHAMADO ESMERALDA.


O sol descansava as névoas e iluminava. O entardecer não tardaria a chegar. O entardecer havia chegado. Foi o que ouvi de João.

Sentado em um banco de madeira velho, remexia os pensamentos e acenava, com educação, aos passantes que caminhavam na praia quase vazia.

Parei um pouco e sentei ao seu lado. O sorriso havia feito o convite.

“O senhor não é daqui”, foi o que me disse.

“Estou de passagem”, foi o que respondi.

“Todos nós estamos”, foi o que ensinou.

João tem a idade de alguns cansaços. A pele queimada de sol. Os pés descalços dos frequentadores de areia. As mãos estendidas sobre o tempo explicam tempos de mais ação. O tempo que ainda não havia escorregado por entre os espaços de seus dedos, também queimados de sol e de histórias.

“Esmeralda”, disse ele.

“Como”? Indaguei.

“Querem comprar Esmeralda, estão comprando tudo”.

Não demorei a entender que Esmeralda era o barco. Do banco de madeira velho, víamos o velho barco de João.

“Esmeralda me deu tudo”.

E foi dizendo dos filhos já formados com o dinheiro dos turistas que conheciam o mar em Esmeralda. Da vida com Esmeralda. Dos passeios românticos com Lucília, a esposa, em Esmeralda.

“Faz tanto tempo”. Disse e silenciou. Silenciei também. Foi como se visse sozinho, dentro de si mesmo, um filme bonito.

Aproveitei para ver melhor o mar e os barcos balançando em obediência ao ir e vir das ondas. A visão era de imagens capazes de alimentar afetos e perpetuar memórias.

Voltou João a dizer de Esmeralda. Então, eu percebi que deixei de ver os outros barcos e fiquei enamorado de Esmeralda. O nome estava pintado em lugar visível. O balançar disfarçava a idade. Fiquei, também, construindo o meu filme interno. Imaginando o dia em que João encontrou Esmeralda e, com ela, o seu lugar no mundo.

Fiquei perguntando se já havia encontrado a minha Esmeralda, a minha embarcação, a minha jóia explicadora das existências. O balançar é para todos.

A frase de João voltou a dizer em mim, “todos nós estamos” de passagem. Passageiros do tempo nos espaços que conhecemos. Passageiros do tempo nas embarcações que nos transportam. E que, em dias de lua atrevida, nos oferecem romantismos. Fiquei imaginando Lucília. Como se conheceram? Na praia? Na casa de algum conhecido? Na saída de alguma Igreja? Perguntei nada. Preferi construir.

Esmeralda foi construída por artesãos que já não mais existem. Ou artesãos que existem em Esmeralda. Lucília mora com João, já sem os filhos, em uma casa que não fica longe. Sai pouco. Algumas doenças demitiram o caminhar apaixonado nas areias daquele mar.

Há uma empresa que chegou, há pouco, e que está comprando as embarcações. Poderia ser um bom dinheiro para João e Lucília, para os remédios, para o conforto. Desconfortado está ele em dizer adeus. E se mudarem o nome? E se pintarem de alguma outra cor? E se não mais reconhecer Esmeralda?

Sou de outro canto do mundo. No meu canto, conto a vida em outro tempo. O meu tempo ainda não é do entardecer, embora saiba que há de chegar e que há de balançar verdades provisórias que hoje tenho. Não sei medir o que, para João, é o despedir de Esmeralda. Penso que coisas possam ser despedidas, nascemos sem elas, mas não posso julgar. Não sei o que nasceu em João com Esmeralda e o que representa o seu atravessar de ondas, de dias, de uma vida inteira.

Sei que fiquei feliz antes do entardecer. E que agradeci a conversa.

“Volte amanhã”, disse ele. “Esmeralda e eu, estaremos aqui”.

“E Lucília”? perguntei.

“Ah, se quiser tomar um café em minha casa, será bem-vindo, ela sai pouco, mas ficará feliz”.

E assim resolvemos. O meu amanhecer amanhã será com os dois, na casa simples não muito longe da praia, na simplicidade de um amor que resistiu ao tempo, ao tempo embalado em tantas travessias em Esmeralda.

Um pouco da minha Esmeralda estava ali, no encantamento de encontrar pessoas e no escolher as palavras para oferecer amor.