segunda-feira, 31 de maio de 2021

O OUTRO EM MINHA VIDA.




Viver é um mistério. Eu sou um mistério.

Existe muita pretensão no Ocidente em relação ao “eu” consciente. Eu posso pensar que sei muitas coisas sobre mim, que sou um ser pensante, consciente. Mas isso não é bem verdade. Sou como um iceberg, muito do que eu sou, está escondido no meu inconsciente, só uma pequena mostra está na superfície.

E pra piorar ainda mais, a neurociência me diz que muitas das minhas decisões são realizadas por mecanismos independentes do meu cérebro, sem que eu tenha conhecimento, ou seja, grande parte daquilo que eu vivo, e faço, é realizado no “piloto automático”.

Percebo diante dessa realidade, que a máxima do filósofo: Penso Logo existe, poderia ser substituída por respiro logo existo. Mas eu não quero ser apenas alguém que respira, eu quero ser alguém que pensa e sente. A ilusão de que sou um ser pensante me faz acreditar que sou senhor das minhas decisões e ações, mas como eu sei que isso não é verdade, tenho de lidar com o fato, que ao invés de decidir, eu reajo.

Descubro então, que preciso ser menos reativa. Descubro que o outro não é meu inimigo, é só alguém de carne osso, com sonhos, projetos, como os meus. Dar fim a ilusão de que eu sou alguém que está no controle me faz ter um pouco mais de abertura.

Descubro que posso me abrir mais, acolhendo o outro, sem julgamentos. Sei que sou um mistério, muitas vezes, o que me faz reagir são as minhas dores e não a minha razão. Qual o lugar do outro em minha vida, então? É um lugar de feridos. Somos pessoas feridas, todos e todas, por isso esse lugar precisa ser mediado por uma palavra, um sentimento, um gesto, que se traduz em compaixão.





Silvana Venancio

domingo, 30 de maio de 2021

ANTES QUE O MES MAIO TERMINE.


Falamos de Maria, mãe de Jesus, de vacina, bem comum e esperança de todos. E o mês de maio já está acabando. O Dia das Mães ficou para trás e não falamos sobre essa experiência humana fundamental que é a maternidade. Transitando entre o mais horizontal e contingentemente biológico e o transcendente que lhe dá estatura de quase milagre, antes que termine maio, não posso deixar de escrever sobre maternidade.

Sempre de fundamental importância, chamando a atenção das religiões, das igrejas e do pensar acadêmico, a maternidade hoje encontra uma nova e potente analogia: a terra. Nossa Mãe Terra, como diz o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si, de 2015. Pacha Mama, Nana e outros muitos nomes pelos quais é venerada a terra em diversas religiões: andinas, afroameríndias e outras.

Em um momento como o que vivemos, quando a espécie humana sente aterrorizada, pesando sobre sua cabeça, a ameaça da extinção, é importante voltar-se para a fonte da vida, que se encontra no feminino e muito concreta e tangivelmente no corpo feminino. Criado capaz da maternidade, de gerar outro corpo, carregá-lo, trazê-lo ao mundo, alimentá-lo com o leite que sai de seu corpo e criá-lo para que a vida se multiplique, a fim de que o povo ganhe mais filhos e a fecundidade, e não a morte, tenha a última palavra.

A experiência de que somos Terra constituiu a matriz da autocompreensão da humanidade desde que o mundo é mundo e o homo sapiens tomou consciência disso. Essa experiência matricial produziu uma espiritualidade e uma política configuradas nas instituições matriarcais.

As mulheres são os eixos organizacionais da sociedade e da cultura. Surgiram sociedades sagradas centradas e organizadas em torno da primordialidade da vida, que deveria ser cuidada, protegida e reverenciada.

A Mãe Terra carrega a memória, as origens, a nostalgia da integração e da plenitude. Rememora um passado histórico e real, que urge ser resgatado e ganhar validade hoje, aqui e agora.

A terra é o corpo vivo da criação. E este corpo funciona como o corpo feminino. Tem ciclos, é receptivo e permeável à penetração do outro. Fertilizado, dá frutos. Quando atacado e agredido, seca e se esteriliza. É um corpo vivo, encontra sua analogia na abertura, receptividade e fecundidade que acontece no corpo da mulher, que é terra semeada e fecundada.

Como dizem os versos inspirados de Chico Buarque e Milton Nascimento, a terra deve ser afagada, seus desejos conhecidos pelo Amante que por sua vez a deseja. Como as fêmeas animais e humanas, ela tem ciclos, cios que são propícia estação de fecundar o chão.

A Mãe Terra é um corpo aberto e potencialmente fecundo, pronto para gerar vida. E nesta crise ecológica vem sendo esterilizada por sucessivas agressões e irresponsáveis ataques. Em estreita conexão com o feminino e sua vulnerabilidade, que é potência de vida, a terra necessita ter seus clamores desesperados ouvidos e atendidos, seus desejos conhecidos e respondidos, seu corpo acariciado e protegido daqueles que veem nele apenas fonte de lucro e a exploram com ganância desmedida.

A maternidade é, hoje, inseparável da luta ecológica, como mostra a corrente de pensamento denominada Ecofeminismo. A Mãe Terra, criação de Deus, vive hoje sugada em forças e recursos, agredida em potencialidades, diminuída em possibilidades, esmagada em força vital. Não se respeitam seus ciclos, sua gravidez lenta e progressiva, seu útero fecundo. Não se acaricia seu corpo para que suas sementes se abram em flores de beleza luxuriante ou em frutos turgidos de sumo.

E, no entanto, qual mãe amorosa cuja realização é que seus filhos vivam plenamente continua a alimentá-los com o que lhe resta de vida, energia e forças. Foi criada por Deus, que é Vida em Si mesmo, e assim sua única ciência e seu único agir é dar vida. No entanto, não é inesgotável ou eterna como Seu Criador. Depende de nós, humanos, não esgotar seus recursos para que possa seguir sendo a mãe com seio túrgido que sacia a todos com os frutos de seu ser.

Antes que termine maio, mas igualmente em todo tempo e em toda parte, é digno e justo louvar e reverenciar a maternidade, esse potencial biológico e natural, esse milagre transcendente e sagrado que é ser um corpo fecundado e habitado por outro que dele se alimenta e dele depende para viver.

sábado, 29 de maio de 2021

TEM FUTURO ESSE FUTURO?

Quem da minha geração poderia imaginar, há 40 anos, que hoje teríamos em mãos um aparelho que cabe no bolso da camisa e nos permite conectar com o mundo, ver filmes e vídeos, fazer pesquisas e até proferir conferências com visibilidade para o público?

Quem poderia supor que as redes digitais quebrariam o monopólio de notícias em mãos da grande mídia ou que um hacker seria capaz de, à distância, sugar eletronicamente arquivos secretos (mas não seguros) dos governos?

O que o futuro nos aguarda supera o imaginário da soma de mentes visionárias como Leonardo da Vinci, Júlio Verne e George Orwell. Foi um artigo de Ricardo Abramovay que me chamou a atenção para o livro de Jenny Kleeman, Sex robots and vegan meat. Adventures at the frontier of birth, food, sex and death (em tradução livre “Robôs sexuais e carne vegana. Aventuras na fronteira do nascimento, da alimentação, do sexo e da morte”).

A autora informa que no Vale do Silício pesquisadores buscam como nos assegurar a felicidade com recursos tecnocientíficos. Uma pessoa deixaria de procurar seu parceiro ou parceira ideal, livre do risco de se decepcionar; com vários relacionamentos; bastaria adquirir um robô dotado de inteligência artificial programado para se adequar perfeitamente ao gosto de seu amo e senhor, inclusive na satisfação de seus desejos.

Um cético poderia retrucar que tal hipótese é absurda. Ora, não há milhares de pessoas que prescindem de relacionamentos humanos e vivem felizes em companhia de seus animais? Inclusive porque cães e gatos não falam, não questionam, não exigem DR e se ajustam com facilidade ao gosto do dono.

As pesquisas pretendem encontrar uma forma de dotar bonecos e bonecas revestidos de silicone capazes de imitar a pele humana. Outros teriam a função de acolher o feto para que ele se desenvolva fora do útero da mãe. Isso a livraria dos incômodos da gravidez e a manteria ativa no mercado de trabalho.

Os veganos, que apontam os males que a carne causa ao organismo humano e os rebanhos ao equilíbrio ambiental, poderão desfrutar de um churrasco cujas peças de alcatra, picanha e maminha procedem de vegetais. Não vale, entretanto, indagar se são alimentos orgânicos, pois considerável dose de ingredientes químicos se faz necessário para tornar o leitão à pururuca tão suculento quanto o do vizinho não vegano que come o mesmo prato sem culpa.

Todo esse processo tecnocientífico ameaça a autonomia humana e corre o risco de transformar cada indivíduo em mera peça da linha de montagem da voraz fábrica de lucros. Ao preencher seu cadastro, seu médico, por exemplo, perguntará com que idade e em qual data você prefere morrer. Caso você sobreviva aos fatores imprevisíveis, poderá até mesmo redigir o convite a seus familiares e amigos, para que compareçam ao velório e às cerimônias religiosas.

Esse “admirável” mundo novo, visto de hoje, levanta uma questão não abordada pela ciência e a tecnologia: o que faz a felicidade humana? É óbvio que não resulta de fama, poder, dinheiro e beleza. Há muitas pessoas que alcançaram esses quesitos e são também felizes. Mas a legião de infelizes demonstra que não são suficientes. No entanto, sem nada disso, há milhões de pessoas felizes porque encontraram o fator fundamental para atingir esse bem – o sentido que se imprime à vida. E isso nenhuma inteligência artificial será capaz de nos incutir.



Frei Betto.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

COMO A EXTREMA DIREITA USOU DO MECANISMO IDEOLÓGICO PARA ANIQUILAR MILHARES DE VIDAS.

 

Artur Figueredo, jornalista e professor publicou eu eu repasso: Se os campos de concentração cheiravam a morte, no Brasil, o luto diário legítima a “carnificina ideológica “: o estado foi usado para fomentar claramente uma política econômica “ultra liberal “. Abriram o mercado para laboratórios duvidosos para privilegiar um grupo de grandes empresários.


Filas e mais filas: esse foi o roteiro de milhares de judeus. O presságio para a morte! Sem escolha. Com o discurso da “praga” enviezada por uma narrativa de pureza elucidada por um genocida. Hitler adotava a retórica do terror. Armas, medo, mentiras.

O autoritarismo foi a marca do nazismo. Por aqui, o bolsonarismo trilha o caminho de terror, usando dos mesmos mecanismos de uma pseudodemocracia para flexibilizar a morte.
Como o liberalismo econômico emparelhou uma máquina de genocídio?

Com o nazismo em ascensão, a máquina de extermínio precisava de um agente importante: o liberalismo econômico. A indústria armamentista foi um dos grandes protagonistas para a instalação de um sistema ideológico e mercadológico.

Vidas ceifadas pela indústria, empresas que se enriqueceram com o sangue de judeus e ajudaram na padronização do capitalismo como sistema econômico para a matança de milhares.

Em terras brasileiras, a hidroxicloroquina ganhou o peso do populismo. Governo Bolsonaro e a sua base de apoio não só fomentou questões ideológicas, do famigerado livre mercado, como ajudou a precarizar o próprio SUS (Sistema Único de Saúde).

Sem vacinas, com a retórica da “China comunista”, o presidente Bolsonaro rechaçou a ideia que a pandemia era uma invenção asiática. Aglomerações, falas discriminatórias e as repetidas frases em prol da cloroquina.

Sem comprovação científica, o medicamento privilegiou uma elite da indústria farmacêutica e deixou um legado de dúvidas, sangue e mortes. O kit Covid não só rasgou milhões em dinheiro como ajudou a aumentar o número de mortes.

Com quase meio milhão de mortos, Brasil corre contra o tempo, contando todos os dias o número de infectados e óbitos.
“Ideologia acima de tudo, acima de todos”

Se os campos de concentração cheiravam a morte, no Brasil, o luto diário legítima a “carnificina ideológica “: o estado foi usado para fomentar claramente uma política econômica “ultra liberal “. Abriram o mercado para laboratórios duvidosos para privilegiar um grupo de grandes empresários.

Em plena recessão, o ministro Paulo Guedes entregou alguns trilhões para bancos enquanto pequenas e médias empresas faliram. Banqueiros que excluíram o povo brasileiro de uma sobrevivência, de uma suposta perspectiva.

O viés mercado abasteceu os alicerces ideológicos, que alimentaram diversas conspirações. Bolsonaro negou a vida para milhares de brasileiros para emparelhar um sistema ideológico.

Se em Auschwitz, a câmara de gás foi usada como mecanismo ideológico para institucionalizar o genocídio, por aqui , a cloroquina atinge o mesmo papel: atender um mercado conspiratório e flexibilizar a morte .

quarta-feira, 26 de maio de 2021

"NÃO PRONUNCIE O NOME DE DEUS"

“Quem crê em qualquer coisa ou não sabe exatamente em que crer, ou não crê em nada de forma profunda”, ensinava um professor de Bíblia. Assim, ele comentava a conclusão da 1ª carta atribuída ao apóstolo João: “Filhinhos(as), cuidado com os ídolos” (1 Jo 5, 21). De fato, no século XVI, em Genebra, o reformador João Calvino repetia sempre: “O ser humano é uma permanente fábrica de ídolos”.

O termo ídolo vem do grego e significa imagem falsa, que não corresponde ao original. Nestes tempos de publicidade, pessoas famosas pagam agências e profissionais para cuidar de sua imagem. Quem retoca a aparência física e faz cirurgia plástica para mudar algum defeito no rosto não deixa de ser ele ou ela mesma. No entanto, quem se apresenta de modo falso ou diz de si mesmo competências e capacidades que não possui comete o que a lei chama “falsidade ideológica”.

Nas religiões, o termo ídolo designa imagens não adequadas de Deus. Faz parte da cultura humana fazer imagens físicas ou mentais de tudo aquilo com o qual as pessoas se relacionam. Desde tempos muito antigos, os povos adoravam ao mistério divino nos astros. Outros adoravam animais como o crocodilo do rio Nilo, a serpente na Babilônia, a águia em Roma. Muitas culturas veem Deus nos antepassados. A Bíblia rejeita o bezerro de ouro dos hebreus, mas aceita a serpente de bronze. Esta era uma imagem de Deus que servia para curar as pessoas. A outra as afastava do caminho da unidade e da libertação. Cinco séculos antes de Jesus, na Índia, Buda advertia: “Não confunda a lua com o dedo que aponta a lua”.

Em todas as épocas, o nome de Deus foi tema de conflito. Até hoje, sempre que podem, impérios usam o nome de Deus para se legitimar. Na Alemanha dos anos 1930, Adolf Hitler começou o Nazismo afirmando: “Deus acima de todos”. Muitos grupos e Igrejas cristãs ficaram contentes por ter, finalmente, um presidente que falava em nome de Deus. Ao contrário, pastores como Dietrich Bonhoeffer e outros denunciaram isso. Foram presos e condenados à morte como ateus. Hoje, eles têm seus nomes no livro dos(as) mártires da Igreja, porque deram as suas vidas para que o opressor não instrumentalizasse o nome de Deus a seu proveito.

Hoje, o nome de Deus está nas cédulas de dólar, nas paredes de bancos, nas fachadas de casas de negócio e até em casas de assassinos que, mentindo e servindo aos piores interesses da elite, se apoderam do poder. A eles é preciso dizer Não! E em nome de Deus denunciar a desonestidade de quem usa o nome de Deus para o mal.

No século 6, Gregório, o bispo de Roma, ensinava: “Existem dois tipos de idolatria: o primeiro é adorar deuses falsos e o outro é pior e mais perigoso: adorar o Deus verdadeiro de maneira falsa”. Isso acontece quando se propaga um deus cruel, insensível ao sofrimento dos pobres e com obsessão em problemas sexuais, como se o corpo e o prazer não tivessem sido criados por Ele.

Há quem use o nome de Deus para consolar uma mãe que chora a perda de um filho ou filha, arrancada da vida em plena infância ou juventude. As pessoas costumam dizer: “Deus quis assim”, ou “foi a vontade de Deus”. A mãe poderia perguntar: Que Deus é esse que quer a morte de crianças inocentes?

Alguém compra um carro novo e coloca no vidro um adesivo: “Este carro foi Jesus quem me deu”. Faz isso imaginando estar sendo grato a Jesus. Será? “Que Deus é este que a um de seus filhos dá um presente de consumo capitalista e à maioria das pessoas não dá nem o que comer?”.

Depois de um grave acidente aéreo, um passageiro que chegou atrasado e não embarcou no tal voo da morte, afirmou: “Deus me salvou!”. Salvou a ele e deixou morrer mais de 100 pessoas.

A Bíblia é muito sábia ao insistir no mandamento que a tradição cristã traduziu como: “Não pronuncie o nome de Deus”. Em cada celebração pascal, na renovação do batismo, a comunidade cristã é convidada a dizer em que Deus crê. Entretanto, para isso, deve antes deixar claro em qual Deus não crê. É isso que significa atualmente o que, em outros tempos, se denominava renunciar ao demônio e a suas obras.

Devemos rejeitar as falsas imagens de um Deus que serve para enriquecer Igrejas. Se Deus é Amor e Pai de todos não pode gostar de pastores que, em plena pandemia, querem Igrejas abertas para arrecadar o dízimo dos pobres. Deus não pode servir para disfarçar a maldade de governantes que destilam ao mundo o seu ódio à humanidade, enquanto gritam: “Deus acima de todos”.

Em 1943, de uma prisão nazista, em uma carta ao cunhado, enquanto esperava ser executado, o mártir Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo luterano e grande opositor do Nazismo, escreveu:

“Deus nos faz viver neste mundo, sem nos servirmos de sua presença. Durante todo o tempo, vivemos diante de Deus e com Deus, mas como se Deus não existisse. Não devemos nos utilizar dele como uma hipótese de trabalho. Desde que criou o mundo, ele deu a suas criaturas e ao ser humano a autonomia de existir. Aceitou se retirar e fica feliz quando nos vê como seres que podem viver e prosseguir por conta própria sem, para tudo, se esconder em seu manto”.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

ESSA GAIOLA NÃO É DOURADA.

A cada revelação que surge – e essa semana foi bastante pródiga delas – as informações mais se avolumam, muito além ainda do que parecia impossível ter ainda ocorrido a mais daquilo tudo que todos os dias de alguma forma presenciamos. Não é nem só de agora; há anos criamos verdadeiras camadas de perplexidade em nosso couro, o que nos torna, no meu ponto de vista, um dos povos mais resistentes e resilientes do mundo.

Mas os últimos tempos têm sido realmente implacáveis. Agravados pela pandemia que nos calou, isolou, transtornou e nos fez sofrer perdas irreparáveis, além do medo, insegurança, do temor do insucesso e da derrota pessoal, não há como evitar a quase paralisia, a perplexidade diante deste cenário geral. Dá para entender porque ainda enquanto um povo estamos tão desorganizados, sem reação, cheios de dúvidas, indecisos, e até poderíamos dizer, ainda mais espantados. Perplexos. E a perplexidade paralisa.

Da janela observamos o mundo passar e na falta de alternativa cobramos o ar. O outro, os outros. Exigimos que “algo seja feito”, praticamente esquecendo que esse “algo” precisa contar também com pelo menos alguma efetiva participação nossa.

Acontece que a tal grossa camada criada em nosso couro ao longo do tempo também nos fez mais insensíveis. Para penetrá-la a flecha precisa ser cada vez mais grossa e forte. Aí reside o perigo enorme de estarmos na realidade já deixando passar como normais muitos fatos inomináveis, que nos exigiriam ação e reação imediata.

Mas é que estamos perplexos.

Somos roubados, temos nossos direitos duramente conquistados vilipendiados. Ameaçados pela volta do terror antidemocrático, pela força, enquanto ainda tiram sarro de nossas caras com ironias e gracinhas de péssimo gosto. A inação nos atinge diretamente, e mentiras deslavadas são construídas cuidadosamente para acobertar e misturar malfeitos até que sejam descobertos e, quem sabe Deus um dia, punidos.

A terra que pisamos, a força da natureza que sempre caracterizou o país com seus amplos recursos naturais, e com os quais nos tornamos de alguma forma importantes para o mundo todo, sendo consumidos, queimados, derrubados, escasseados. Gerando lucros para poucos. Não é para progresso, não se iluda. Pelo menos não o nosso, de ninguém não, só mais essa balela que tentam impingir aos mal informados, aliás uma população crescente, alimentada com ódio por esse mal que encobre de sombras o Brasil.

Não só na política. Em pouco mais de um ano retrocedemos décadas em autoestima. Em respeito, interno e externo. Educação, Saúde, Segurança, Saneamento, Meio Ambiente, comportamento, debate, bom senso, harmonia, paz e convivência pacífica entre ideias e poderes vêm sendo bombardeados pelo esquecimento ou decisões grosseiras, retrógradas, ignorantes, moralistas de araque, divisionistas, e que não servem a nada a não ser criar um exército de inimigos, que já nem sabem mais o que combatem entre si, e dos quais, daqui e dali, já quase nem conseguimos nos defender, tal a falta de lógica.

Nós, os perplexos, precisamos sair o mais rápido possível desse estado catatônico, incerto, indefinido, inseguro, assombrado, irresoluto, titubeante, abalado, desnorteado, abismado, zonzo – que não faltam definições – em que nos encontramos. Antes que essa perplexidade toda nos aprisione. E essa gaiola não é dourada.

sábado, 22 de maio de 2021

UM MUNDO NOVO APÓS COVID 19

No dia 10 de maio de 1994, Nelson Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul, eleito duas semanas antes, fez um discurso de posse que marcou muita gente. Ele defende em particular os valores da reconciliação e declara: “Chegou a hora de curar as feridas. Chegou a hora de reduzir o abismo que nos separa. O tempo para a construção se aproxima”.

Com a proximidade do desconfinamento e inspirado nessa frase, Nicolas Hulot, ativista ambiental e ex-ministro da Transição Ecológica e Solidária de Emmanuel Macron, decidiu declinar à sua maneira o seu “chegou a hora”, através de 100 princípios fundadores de um novo mundo para o pós-crise da Covid-19.

Eis os princípios:

1. Chegou a hora para juntos lançar as pedras fundamentais de um novo mundo.

2. Chegou a hora de transformar o medo em esperança.

3. Chegou a hora de uma nova maneira de pensar.

4. Chegou a hora da lucidez.

5. Chegou a hora de traçar um horizonte comum.

6. Chegou a hora de não sacrificar mais o futuro pelo presente.

7. Chegou a hora de resistir ao fatalismo.

8. Chegou a hora de não deixar mais o futuro decidir por nós.

9. Chegou a hora de parar de mentir.

10. Chegou a hora de revitalizar nossa humanidade.

11. Chegou a hora da resiliência.

12. Chegou a hora de cuidar e reparar o planeta.

13. Chegou a hora de tratar as raízes das crises.

14. Chegou a hora de apreender conjuntamente as crises ecológica, climática, social, econômica e de saúde como uma única e mesma crise: uma crise de excesso.

15. Chegou a hora de ouvir os jovens e aprender com os anciãos.

16. Chegou a hora de criar vínculos.

17. Chegou a hora de construir ajuda mútua.

18. Chegou a hora de aplaudir a vida.

19. Chegou a hora de honrar a beleza do mundo.

20. Chegou a hora de lembrar que a vida está por um fio.

21. Chegou a hora de reconciliar-se com a natureza.

22. Chegou a hora de respeitar a diversidade e a integridade de tudo o que é vivo.

23. Chegou a hora de deixar espaço para o mundo selvagem.

24. Chegou a hora de tratar os animais respeitando os seus próprios interesses.

25. Chegou a hora de reconhecer a humanidade plural.

26. Chegou a hora de ouvir os povos originários.

27. Chegou a hora de cultivar a diferença.

28. Chegou a hora de ativar nossa comunidade de destino com a família humana e todos os seres vivos.

29. Chegou a hora de reconhecer nossa vulnerabilidade.

30. Chegou a hora de aprender com nossos erros.

31. Chegou a hora de fazer um inventário de nossas fraquezas e de nossas virtudes.

32. Chegou a hora de nos adaptar aos limites planetários.

33. Chegou a hora de mudar de paradigma.

34. Chegou a hora de mudar um sistema caduco.

35. Chegou a hora de redefinir os fins e os meios.

36. Chegou a hora de restaurar o significado do progresso.

37. Chegou a hora da indulgência e da exigência.

38. Chegou a hora de nos libertarmos dos dogmas.

39. Chegou a hora da inteligência coletiva.

40. Chegou a hora de uma globalização que compartilhe, colabore e seja mais complacente com os mais fracos.

41. Chegou a hora de preferir o comércio justo ao livre mercado.

42. Chegou a hora de globalizar o que é virtuoso e de desglobalizar o que é nefasto.

43. Chegou a hora de definir, preservar e proteger os bens comuns.

44. Chegou a hora da solidariedade universal.

45. Chegou a hora da transparência e da responsabilidade.

46. Chegou a hora de uma economia que preserva e redistribui a todos.

47. Chegou a hora de acabar com a desregulamentação, a especulação e a evasão fiscal.

48. Chegou a hora de perdoar a dívida dos países pobres.

49. Chegou a hora de emancipar-se das políticas partidárias.

50. Chegou a hora de libertar-se das ideologias estéreis.

51. Chegou a hora das democracias inclusivas.

52. Chegou a hora de inspirar-se nos cidadãos.

53. Chegou a hora de aplicar o princípio da precaução.

54. Chegou a hora de gravar no direito os princípios de uma política ecológica, social e civilizacional.

55. Chegou a hora de desafiar o determinismo social.

56. Chegou a hora de combater as desigualdades de destino.

57. Chegou a hora da igualdade absoluta entre mulheres e homens.

58. Chegou a hora de estender a mão aos humildes e aos invisíveis.

59. Chegou a hora de expressar mais do que apenas gratidão àquelas e àqueles, geralmente estrangeiros, que em nossos países, ontem e hoje, realizam tarefas ingratas.

60. Chegou a hora de priorizar as profissões que tornam a vida possível.

61. Chegou a hora do trabalho realizador.

62. Chegou a hora do advento da economia social e solidária.

63. Chegou a hora de eximir os serviços públicos da lei do desempenho.

64. Chegou a hora de relocalizar setores inteiros da economia.

65. Chegou a hora da coerência, e de redirecionar as nossas atividades e investimentos para o útil e não para o prejudicial.

66. Chegou a hora de educar nossos filhos para o ser, para o civismo, para o viver juntos, e de ensiná-los a habitar a terra.

67. Chegou a hora de estabelecer limites para o que machuca e nenhum limite para o que cura.

68. Chegou a hora da sobriedade.

69. Chegou a hora de aprender a viver de maneira mais simples.

70. Chegou a hora de nos reapropriar da felicidade.

71. Chegou a hora de nos libertar dos nossos vícios consumistas.

72. Chegou a hora de desacelerar.

73. Chegou a hora de viajar para dentro de nós mesmos.

74. Chegou a hora de nos livrar dos nossos condicionamentos mentais individuais e coletivos.

75. Chegou a hora de fazer eclodir desejos simples.

76. Chegou a hora de distinguir o essencial do supérfluo.

77. Chegou a hora de arbitrar nossos possíveis.

78. Chegou a hora de renunciar àquilo que compromete o futuro.

79. Chegou a hora da criatividade e do impacto positivo.

80. Chegou a hora de vincular nosso “eu” ao “nós”.

81. Chegou a hora de acreditar no outro.

82. Chegou a hora de rever nossos preconceitos.

83. Chegou a hora do discernimento.

84. Chegou a hora de admitir a complexidade.

85. Chegou a hora de sincronizar ciência e consciência.

86. Chegou a hora da unidade.

87. Chegou a hora da humildade.

88. Chegou a hora da bondade.

89. Chegou a hora da empatia.

90. Chegou a hora da dignidade para todos.

91. Chegou a hora de declarar que o racismo é a pior forma de poluição mental.

92. Chegou a hora da modéstia e da ousadia.

93. Chegou a hora de preencher a lacuna entre nossas palavras e nossas ações e de agir em larga escala.

94. Chegou a hora em que cada um deve fazer sua parte e ser o artesão do mundo de amanhã.

95. Chegou a hora do engajamento.

96. Chegou a hora de acreditar que outro mundo é possível.

97. Chegou a hora do ímpeto desenfreado para abrir novos caminhos.

98. Chegou a hora de, com base nesses princípios, escolher, incentivar e acompanhar nossos dirigentes ou representantes.

99. Chegou a hora de todos darem vida a este manifesto.

100. Chegou a hora de criar um lobby das consciências.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

RESPEITAR O PONTO DE VISTA DO OUTRO.

Viver na contramão da fraternidade e da amizade social provoca impagáveis passivos, que se revelam nas estatísticas sobre a violência, a exclusão social, os preconceitos e as discriminações que ferem mortalmente a dignidade humana. O prejuízo incide também nos parâmetros do desenvolvimento humano integral, com consequências deletérias na cultura. Descompassos ameaçam a vida e minam as condições para se alcançar mais justiça e paz. Por isso, é ainda mais necessário o olhar genuinamente cristão, que possui uma luz intrínseca: a luz da fé, que capacita o ser humano a enxergar para além das aparências. Os que verdadeiramente são discípulos de Jesus não recorrem à usura, nem se deixam dominar pelo apego ou por lógicas que favoreçam a corrupção. Os cristãos devem se opor à hegemonia de interesses exploratórios que depredam o meio ambiente e os direitos, com injustificável indiferença em relação ao mais pobres.

Espera-se sempre dos cristãos atitudes coerentes com a sua dignidade e identidade, enraizadas nos valores do Evangelho. Por isso, são vergonhosas as lógicas perversas e excludentes de uma sociedade de maioria cristã. Os discípulos de Jesus, em diálogo e intercâmbio com cidadãos de outras confissões religiosas também depositárias de relevantes contribuições humanísticas, precisam reagir. O momento atual está urgindo uma atuação mais lúcida, incidente e transformadora dos cristãos. Isto significa investir em ações individuais e sociais mais fortes e produtivas, à luz de uma compreensão inspirada no diálogo e na amizade social.

Diálogo é mais que troca de opiniões – principalmente quando se pensa nos juízos formados a partir de informações não confiáveis. Há uma grande urgência na superação de tudo que possa impedir a sociedade de dialogar. O ponto de partida é a derrubada de preconceitos e do fechamento às novas ideias. Assim, é possível superar entendimentos limitados para alcançar a verdade. Também é importante o cuidado com a linguagem midiaticamente produzida. Não se pode investir no acirramento do ódio, caminho adotado por muitas campanhas políticas. Os debatedores na sociedade não podem correr o risco de constituir quartéis de manipuladores nos segmentos da política, da religião, da economia e da mídia, em defesa de interesses econômicos e ideológicos cartoriais.

“Os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica doentia e, ultrapassando as conveniências pessoais e partidárias, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade”. O compromisso com a verdade é princípio inegociável da autenticidade cristã. E o cristianismo ensina, com a sua doutrina, posturas que fermentam o diálogo social, cultivando a capacidade de se respeitar o ponto de vista do outro. Essa capacidade é que torna factível, em uma sociedade pluralista, o diálogo que ultrapassa um mero consenso ocasional. A hora requer a qualificação do debate público, da capacidade para dialogar, demandando de todos os cidadãos – exigência sobretudo para os cristãos – dedicação na promoção da fraternidade e da amizade social.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

MUDAR ESTE ESTADO COISAS

Todos os dias, na oração da manhã, me pergunto: resta-me humanidade? Como posso suportar, recluso em casa, que lá fora morreram, por descaso do governo, mais de 400 mil pessoas no Brasil? E mais de 14 milhões de infectados não sabem o futuro que os aguarda, se a cura, se as sequelas, se a morte.

O que faz meu grito ficar parado no ar, a gota d’água não entornar minha paciência, a esperança me fazer acreditar que serei poupado do genocídio? Como fazer parar a máquina da morte? Como dar um basta ao negacionismo que alimenta essa política necrófila que vitimiza, indiscriminadamente, ricos e pobres, idosos e jovens, portadores de comorbidades e saudáveis atletas?

Mais de 400 mil mortos! Não ouço os sinos tocarem por eles. Vejo apenas múltiplas mãos encharcadas de sangue se lavando, ponciopilatamente, na bacia do mais escancarado cinismo. A dor de mais de 400 mil famílias não dói em mim. O que me resta de humanidade?

Na guerra do Paraguai, o Brasil perdeu 50 mil combatentes. Em pouco mais de um ano deixamos a pandemia multiplicar esse número por oito. Por quê? Talvez por não presenciar o desespero de quem bate em vão as portas dos hospitais desprovidos de leitos, nem o indescritível sofrimento de quem, entubado e sem receber analgésicos, conhece no corpo as infinitas dores das torturas medievais.

Na guerra do Afeganistão, ao longo de 14 anos (2001-2015) 149 mil vidas foram perdidas. Aqui, em 14 meses, esse número foi multiplicado por três. Como admitir tamanha mortandade? Por ter como causa um vírus invisível?

Não, o vírus não age sem que humanos o transmitam. O vírus é como a bomba atômica jogada sobre Hiroshima e que ceifou 140 mil vidas. A bomba não viajou sozinha dos EUA ao Japão. Foi conduzida por uma aeronave B-29. Cada um de nós é a aeronave que transporta o vírus letal. Cada um de nós é potencialmente um míssel carregado de artefatos nucleares. Basta abrir a boca e as narinas para detonar os projéteis que haverão de semear a morte alheia.

Em 1912, o Titanic, navio invencível, foi vencido por um iceberg. Morreram mais de 1.500 passageiros. Aqui no Brasil já afundaram 266 Titanic e ainda há quem não enxergue a cor rubra do mar…

As quedas das Torres Gêmeas de Nova York soterraram 2996 pessoas. O mundo parou, estupefato, frente a tamanha atrocidade. Até os dicionários religiosos suprimiram a palavra perdão. No Brasil já desabaram 133,5 Torres Gêmeas e ainda não foram apontados os responsáveis por esse terror.

Resta sim, humanidade, mas preciso beber no poço aberto por Santo Agostinho, o da indignação, para protestar, e o da justiça, para mudar esse estado de coisas.

terça-feira, 18 de maio de 2021

MARIA, A SEMPRE AMADA


Como diz a  teóloga Maria Clara Bingimer: Maio é conhecido na Igreja Católica como o mês de Maria. Nele se cultua especialmente a mãe de Jesus, reconhecida pela fé católica como mãe de Deus. Durante maio, portanto, uma reflexão sobre o mistério de Maria tem seu lugar e pertinência.

A devoção a Maria é algo muito característico do catolicismo. Na Igreja Católica Romana, a Virgem Maria é reconhecida pelo título de bem-aventurada. Reconhece-se nela um estatuto especial em meio a todos os santos e santas de Deus, inclusive a capacidade de interceder em favor daqueles que a seu favor recorrem por meio de orações e práticas devocionais. A teologia e o magistério católicos, no entanto, deixam claro que Maria não é considerada divina e as orações a ela dirigidas não são respondidas por ela, mas por Deus.

Porém, é fato que Maria ocupa um lugar destacado entre os católicos, os quais, além de a ela reservar diversos títulos honoríficos, cantam hinos em seu louvor, dirigem-lhe uma variedade de orações e peregrinam a diversos santuários marianos para honrá-la e louvá-la.

O Catecismo da Igreja Católica diz que “A devoção da Igreja à Santíssima Virgem é intrínseca ao culto cristão”. O culto a ela é chamado hiperdulia, enquanto o culto a Deus é a latria e o culto aos santos, dulia. Com isso a Igreja Católica demonstra que distingue a mãe de Jesus dos outros santos.

A figura de Maria tem interessado pensadores e pesquisadores, dentro e fora da Igreja Católica. Além de obras literárias, Maria tem chamado a atenção de pensadores agnósticos e ateus, como a psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva e a pesquisadora espanhola Marina Warner, entre outras. A figura da mãe de Jesus inquieta incessantemente a mente atenta e, sem dúvida, brilhante da psicanalista e pensadora. Trata-se de um dos aspectos de seu pensamento que mais intriga os leitores cristãos, católicos e teólogos, devido a suas teorias fortemente contestatórias.

Kristeva questiona o estereótipo que a Mariologia tradicional impõe sobre as mulheres, mas ao mesmo tempo questiona o feminismo que “enquanto reivindica uma nova representação da feminilidade…dele parece que exclui ou minimiza a maternidade.”

A enorme importância que para Kristeva parece ter o mistério de Maria no imaginário religioso cristão é o fato de a relação dela com seu Filho Jesus – gerando quem a gerou, sendo anterior a ele em sua humanidade, mas posterior por sua divindade, virgem e mãe simultaneamente – se tornar matriz para uma rede de outras relações muito complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe etc.

O passado ortodoxo da psicanalista Kristeva, que através de seu pai que era devoto fiel mãeadessa Igreja, desempenha papel importante neste interesse por Maria. Ela diz estar convencida de que o catolicismo teve em suas mãos o mais poderoso discurso de todo o Ocidente sobre a maternidade. Agora, com a secularização, ela teme que esse discurso se perca, o que deixaria a cultura ocidental amputada de um de seus mais fortes e fecundos componentes.

Creio que os temores de Kristeva não têm muita razão de assustar-nos, já que a devoção a Maria continua muito presente no Catolicismo e os santuários e festas marianos. Aparecida e a festa do Círio de Nazaré ainda são os lugares mais procurados pelos fiéis católicos que ali explicitam sem temor ou pudor de nenhuma espécie o amor pela mãe de Jesus, que sentem como sua mãe também. A importância da mãe no Catolicismo ainda continua muito forte, apesar de todo o avanço da secularização.

Maria é, portanto, além de todos os títulos que tem, a sempre amada. Mãe muito querida, a quem os fiéis se dirigem com confiança filial em todas as encruzilhadas de suas vidas, encontrando nela conforto e carinho. Nesses tempos de pandemia, Maria tem sido certamente muito invocada. Portanto, neste mês de maio acorramos a ela mais uma vez.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

UM DESAFIO.


Os cristãos constituem a maioria absoluta da população no Brasil, revelam as estatísticas atuais. Informação muito relevante da geografia religiosa, a ser confrontada com a realidade brasileira, para avaliações a respeito do contexto sociocultural, educativo e científico-tecnológico. Os valores e princípios religiosos influenciam os rumos e as dinâmicas de uma sociedade. Tendem a incidir, de maneira constitutiva, no “DNA cultural” do povo. Sabe-se que o contexto religioso contribui para a promoção ou comprometimento da paz. Nessa perspectiva, práticas religiosas onde há consenso sobre Deus – Deus da vida e da paz – deveriam produzir frutos condizentes com a fé professada. Causa, pois, estranheza quando esses princípios religiosos não conseguem contribuir com processos de humanização à altura da concepção sagrada da dignidade humana. Uma situação estranha e inaceitável.

Urge revisões céleres e a interpelação da consciência de todos que vivenciam as muitas práticas religiosas. Todos são desafiados a adotar conduta coerente e, assim, ajudar a configurar novo contexto social a partir da fé professada. Nessa perspectiva, há ponto importante para reflexão: o Brasil, de maioria absoluta cristã, convive com valores e princípios que estão na contramão das lições de Cristo Jesus, a pedra angular do Cristianismo. Cabe, pois, uma interrogação aos cristãos: vive-se, de fato, o Evangelho de Cristo na sociedade brasileira? Essa pergunta precisa inspirar novas perspectivas capazes de qualificar os tecidos social, econômico e político do país, tão fragilizados, produzindo tristes realidades – a desalmada desigualdade social, as polarizações políticas e a carência de líderes qualificados. Realidades que se contrastam com as riquezas do Brasil.

A resposta há de considerar que o Cristianismo traz a genuinidade do amor, mas nem sempre é praticado pelos próprios cristãos. Ainda que sejam reconhecidos testemunhos generosos, proféticos e muitos heroísmos, é gesto de humildade reconhecer que, com frequência, não se vive o que se prega. Como uma sociedade de maioria cristã consegue conviver com o aumento da distância entre os muitos que têm pouco e os poucos que têm muito? Os valores cristãos ainda precisam incidir e formatar dinâmicas culturais para garantir substratos formativos que possam alicerçar cidadanias exemplares, entendimentos lúcidos na solução dos problemas, respostas corajosas de cidadãos e cidadãs capazes de promover o desenvolvimento integral.

O arcabouço do Cristianismo é uma incontestável alavanca para impulsionar a sociedade rumo ao equilíbrio, inspirando qualificado diálogo político e novas configurações culturais. Parece, para usar uma cena simbólica, que os cristãos estão usando capa de couro enquanto fazem chover sobre si a pregação do Evangelho, o ensino de sua doutrina e muitos testemunhos de fé. Ora, o anúncio do Evangelho é obra de transformação radical, dos entendimentos à conduta – foi assim, paradigmaticamente, nos primórdios do Cristianismo, na vida dos apóstolos, e ao longo dos seus mais de dois mil anos de história. Suas propriedades, pela força da Palavra, têm prerrogativas para mudar mentalidades e condutas, alicerçando uma cultura da vida e da paz. Há de se perguntar a respeito de equívocos na vivência da fé e redobrar a atenção sobre os riscos de se neutralizar o que é próprio da Palavra de Deus no Cristianismo – herança do Judaísmo, enriquecida com a encarnação do Verbo, Jesus Cristo, o filho de Deus, Redentor e Salvador.

Lembrando o Salmo 118, a Palavra é lâmpada para os pés e luz luzente para o caminho. Indica o rumo para superar um cristianismo torto que admite a centralidade da Palavra, mas a amordaça com interesses e manipulações políticas cartoriais. Os resultados são pífios, com uma cultura que amarga prejuízos porque muitos cristãos adotam práticas religiosas pouco transformadoras. Pessoas com convicções intimistas demais ou estreitadas a ponto de se vender a ideologias ou a interesses político-partidários. Os cristãos estão desafiados a responder a esta pergunta, com humildade e sabedoria: vive-se, de fato, o Evangelho de Cristo na sociedade brasileira? Essa resposta pode ser o recomeço de uma grande mudança civilizatória.

domingo, 16 de maio de 2021

UNIDADE E RECONCILIAÇAO


Quando as ofertas são por demais numerosas e as atrações do consumo tentam nos aprisionar, um dos cuidados fundamentais é a de fixar em nós, no mais profundo do nosso ser, as raízes do amor.

Conforme o quarto evangelho, depois de cear com os discípulos e discípulas, na noite em que ia ser preso e condenado à morte, Jesus proferiu um discurso que é sua herança para a comunidade dos discípulos e discípulas. Em meio a essas palavras, ele lhes dá esta recomendação: “Permanecei no meu amor e produzireis muitos frutos” (cf. João 15,5-9).

É este o tema escolhido para a Semana de Orações pela Unidade das Igrejas Cristãs que, neste ano de 2021, ocorrerá na próxima semana do domingo 16 ao domingo 23 de maio.

O livro dos Atos dos Apóstolos conta que, 50 dias depois da ressurreição de Jesus, na festa judaica de Pentecostes, o Espírito de Deus se manifestou e reuniu pessoas de diversas culturas e idiomas diferentes de modo que todos e todas puderam se entender. Por isso, há mais de cem anos, comunidades cristãs de diferentes denominações dedicam a semana anterior à festa de Pentecostes à oração pela unidade das Igrejas cristãs.

Desde as primeiras décadas do século 20º, a Semana de Oração pela Unidade Cristã se tornou importante para a aproximação e o diálogo entre diferentes Igrejas e também sinal de unidade para toda a humanidade. Desde então, tem sido ocasião feliz para intensificar nas Igrejas a cultura do encontro, da acolhida e do caminho em comum a serviço da humanidade.

No Brasil, anualmente, a Semana de Orações pela Unidade das Igrejas Cristãs é preparada e organizada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Este organismo ecumênico tem exercido um papel profético no esforço de unir as Igrejas a serviço do projeto divino para o mundo. O Conic tem testemunhado que não tem sentido falar de Deus e se apresentar como cristãos e, ao mesmo tempo, ser conivente com injustiças. Desigualdades sociais, sexuais, culturais e religiosas atentam contra a vida das pessoas empobrecidas. Apregoam ódio e discriminações. Destroem a Mãe Terra e ameaçam a vida no planeta. Opõem-se ao projeto divino.

Assim, precisamos ver esta Semana de Orações pela Unidade (Souc) como continuidade da profética Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 sobre diálogo como compromisso de amor.

Como explica o livro de subsídios publicado no Brasil pelo Conic: “Ano após ano, comunidades cristãs das mais diferentes tradições têm aderido às celebrações propostas pela Semana de Orações pela Unidade dos(das) Cristãos(ãs). Isso reflete uma compreensão cada vez maior da mensagem de Cristo, que disse: “Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.” (João 17:21).

Neste 2021, Igrejas do mundo inteiro receberam os subsídios para Semana de Orações pela Unidade preparados pela comunidade ecumênica de Grandchamp, na Suiça. É uma comunidade de monjas, provenientes de várias igrejas evangélicas. Desde a primeira metade do século 20, unida à comunidade de Taizé, as monjas de Grandchamp oram e trabalham pela unidade das Igrejas e pela Paz no mundo. No Brasil, esses subsídios foram adaptados à nossa realidade pelo Conselho Amazonense de Igrejas (Caic). Este fez um excelente trabalho, no qual a unidade das Igrejas se insere no respeito amoroso às tradições e culturas dos povos originários.

Este tema tomado da palavra de Jesus “Permanecei no meu amor e produzireis muitos frutos” pode ser compreendido, hoje, como apelo para compreenderemos que se algo se denomina como sendo de Jesus só pode ser amoroso e aberto a tudo o que é humano. Como dizia um pai da Igreja do século 2º: “para quem é cristão, nada do que é humano pode ser estranho”.

Também é preciso ligar a adesão amorosa a Jesus e o cuidado de “dar frutos”. Atualmente, para a nossa fé dar frutos adequados de justiça e amor não podem apoiar sistemas políticos que defendem violência. Em nome de Jesus não se podem discriminar ninguém. Um modo de organizar a sociedade que aumenta desigualdade social e injustiças é contrário ao projeto divino. Para permanecer ligados a Jesus, devemos colaborar com a justiça, a paz e o cuidado com a Terra e toda a criação divina.

Para realizar o desejo expresso de Jesus, o caminho da unidade cristã é necessário para as Igrejas. No entanto, é igualmente importante para toda a humanidade porque colabora com a fraternidade universal e a paz. A oração desta Semana da Unidade assim se expressa:

“Amado e misericordioso Deus pai e mãe, Tu nos chamas para vivermos a unidade e a reconciliação. Por isso estamos reunidas (os) para celebrar, orar, e Te louvar. Nesta semana de oração, queremos ser tocadas (os) por Teu Amor. Ao permanecer Nele, nos reconciliamos conosco e com nossas irmãs e irmãos. Em Cristo, Teu Amado Filho, desejamos produzir bons frutos para vivermos em comunhão, restabelecendo relações de amizade, partilha e solidariedade. Assim, nos reconhecermos como irmãs e irmãos neste mundo tão dividido. Nós te pedimos isso em nome de Jesus. Amém”.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

O TERRÍVEL VÍRUS DA FOME.

O governo Bolsonaro não apenas extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), em 2019, que havia sido criado pelo governo Lula em 2003, como fez aumentar a insegurança alimentar nos lares brasileiros, atingindo 116,8 milhões dos 212 milhões de pessoas – mais de metade da população.

Segundo o IBGE (nov. de 2020), mais de 50 milhões de pessoas se encontravam na pobreza e 13 milhões, na extrema pobreza. É considerado pobre quem tem renda per capita mensal de, no máximo, R$ 499, e miserável aquele cuja renda mensal não ultrapassa R$ 178.

Da população brasileira, 14,4 milhões estão desempregados; 40 milhões sobrevivem de empregos informais; 13,6 milhões vivem em favelas, dos quais metade está desocupada. Metade das crianças brasileiras com menos de 5 anos, que somam 6,5 milhões, vivem em lares afetados pela insegurança alimentar. No Nordeste, 51% das famílias não têm acesso regular aos alimentos e na região Norte, 57%.

Enquanto se reduz o valor do auxílio emergencial e aumentam a inflação e os preços do gás de cozinha e da gasolina, os dos alimentos subiram 19,42% nos últimos 12 meses. O menor valor da cesta básica é de R$ 445,90 (Aracaju) e o maior, R$ 639,81 (Florianópolis). Por isso, 1/3 das famílias brasileiras se encontram em insegurança alimentar.

No Brasil, a fome tem cor, gênero, nível de escolaridade e (falta de) acesso ao saneamento. Afeta 10,7% dos lares habitados por negros e pardos, contra 7,5% dos lares de brancos; 11% dos lares chefiados por mulheres e 7% chefiados por homens; os chefes de 14,7% dos lares não têm escolaridade ou não completaram o ensino fundamental. Não têm acesso à água 44,2% dos lares.

Enquanto o governo Bolsonaro “passa a boiada” e favorece o desequilíbrio ambiental ao não reduzir as queimadas, combater a derrubada de florestas e a poluição de rios pelo garimpo ilegal, o Brasil retorna ao mapa da fome. A devastação do meio ambiente provoca climas extremos (seca e frio rigorosos) e ameaças biológicas, como as ondas de gafanhotos e a Covid-19, na medida em que se interrompem os ciclos de predadores naturais.

Essas práticas trazem danos à agricultura e à pecuária. Ao converter perdas de produção agrícola em equivalentes calóricos e nutricionais, ao longo de 10 anos (2008-20018), a FAO constatou que elas atingiram o índice anual de 6,9 trilhões de quilocalorias, o que equivale ao que 7 milhões de pessoas ingerem, em calorias, por ano. Na América Latina e no Caribe, a perda por pessoa foi de 975 calorias, o que equivale a 40% da dose diária recomendada. Nosso Continente superou a África (559 calorias) e a Ásia (283 calorias).

Segundo Jean Ziegler, perito da ONU, o mundo, hoje, produz alimentos para 12 bilhões de bocas. E somos 7,8 bilhões de habitantes, dos quais 8,9% sobrevivem em insegurança alimentar e 24 mil morrem, por dia, em consequência da desnutrição. Um total de 9 milhões por ano. Portanto, o problema não é a falta de alimentos, e sim a falta de acesso a eles, ou seja, justiça. O capitalismo fez do alimento, um direito natural como o ar que se respira, uma mercadoria. Come quem pode pagar. Morre de fome quem não dispõe de renda.

Grandes corporações transnacionais se apoderaram de terras, água e sementes. Produzem transgênicos, que impedem os pequenos agricultores de replantarem e exigem mais agrotóxico, causando danos à saúde humana e ao meio ambiente. Os agricultores, impedidos de negociar diretamente sua produção, são obrigados a repassá-la às empresas que controlam as commodities agrícolas, negociadas por fundos de pensão e bancos de investimentos. Produtos como suco de laranja, milho, soja, trigo e café, provenientes de amplas áreas de monocultura, são estocados quando se faz necessário aguardar a majoração de seus preços no mercado. E a soja e o milho são prioritariamente destinados a alimentar rebanhos, e não seres humanos.

Diante desse trágico panorama, o que fazer? O mais urgente é derrubar os vetos de Bolsonaro à lei de Assis Carvalho, proposta no PL 735/2020, fundamental para ampliar a produção de alimentos saudáveis pelas agriculturas familiar e camponesa. Embora aprovado por significativa maioria da Câmara e unanimidade no Senado, Bolsonaro vetou 14 dos 17 artigos, de modo a impedir o poder público de comprar alimentos diretamente da agricultura familiar e doar às famílias mais pobres. Vetou também estender o auxílio emergencial aos pequenos agricultores.

São inúmeras as iniciativas solidárias para amenizar, em caráter de urgência, a fome agravada pela pandemia no Brasil. O MST, com suas 30 mil famílias acampadas e 450 mil assentadas, até setembro do ano passado já havia distribuído 3,5 mil toneladas de alimentos, em 24 estados, a pessoas em situação de rua, associações de moradores, abrigos, asilos, hospitais públicos e comunidades indígenas, além de incentivar a criação de cozinhas e hortas comunitárias.

Outros exemplos de iniciativas solidárias são a Ação da Cidadania, a Cufa (Central Única das Favelas), o G10 das Favelas, a Central de Movimentos Populares, os Bancos de Alimentos, o Mesa Brasil Sesc, entre outras.

O mais importante, contudo, é conquistar uma nação justa, com menos desigualdade social e uma renda básica assegurada a cada cidadão e cidadã, sem que ninguém sofra pela falta do mais elementar direito humano – o de se alimentar.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

RITUAIS DA MORTE E A MORTE DA DEMOCRACIA

 

Eis o que disse Babalawô Ivanir dos Santos: O Centro de Articulação de Populações Marginalizadas –CEAP manifesta publicamente solidariedade aos familiares das 25 pessoas assassinadas na ação policial realizada na comunidade do Jacarezinho em 6 de maio de 2021, esperando que as autoridades, em particular o Ministério Público, exerça com rigor a sua função institucional.

A chacina ocorrida na comunidade do Jacarezinho, onde 1 policial e outras 24 pessoas foram mortas, aponta o estado de terror, o grau de bestialidade e subdesenvolvimento em que o Brasil está submerso. A prática de extermínio da gente pobre e negra que vive nas comunidades, não pode ser considerada como um fenômeno circunstancial, trata-se de um modo cultural do poder de polícia sob responsabilidade do Estado e de poderes policialescos, que na maioria dos casos é exercido por agentes do próprio Estado.

Vivemos em um imenso circo de banalização da morte: chacina de Vigário Geral (21 pessoas), de Acari (11 pessoas), da Candelária (8 pessoas), Nova Iguaçu (29 pessoas), todas no Rio de Janeiro. Mas a ação letal do Estado se espalha pelo Brasil inteiro, como ocorreu no presídio do Carandiru, em São Paulo (111 pessoas), no bairro do Cabula, na Bahia (12 pessoas). Fora da primeira página dos jornais corpos se espalham cotidianamente num espetáculo de horror que se traduz em sofrimento e amargura de pais, mães, irmãos e avós sujeitos de uma impotência crônica nas malhas da justiça.

Na cidade do Rio de Janeiro, considerada vitrine nacional, a situação é mais calamitosa. Desde tropas militares, associadas as distintas forças policiais para invadir o Complexo do Alemão, deixando um saldo de 19 mortos, até a eleição de um governador (cassado por corrupção), que tinha como uma das principais bandeiras durante da sua campanha eleitoral “dar tiro na cabecinha de bandido”.

Um poder de polícia, civil ou militar, que perde um policial e mata outras 24 pessoas em menos de 10 horas, não merece respeito de ninguém. Esta ação só pode traduzir um fato: o povo perdeu o controle do Estado e o estado de direito se perdeu da democracia.

domingo, 9 de maio de 2021

MÃES PARABÉNS PELO SEU DIA.

 

Querida mamãe, que maravilha poder estar ao seu lado mais uma vez podendo lhe desejar uma infinidade de coisas lindas e que a senhora tanto merece, por tudo o que realizou em toda a sua vida, tão longa e tão rica em ensinamentos e sabedoria.

Comemoramos o Dia das Mães e desejo te parabenizar por ser mãe abençoada e divina. O amor, é um sentimento muito bonito, que nos acompanha a cada dia de nossas vidas, e desde pequenos aprendemos, a amar as pessoas que estão juntos conosco. É com honra e alegria, que escolho essa mensagem para te dizer que te amo.

Às vezes, deixamos de dizer o que realmente importa na vida, mas nunca é tarde para reconhecer que estou em falta com você, mãe. Quero te agradecer por todos os anos de dedicação, paciência, apoio e tanto amor. Por isso, flui do meu coração neste momento e através desta mensagem, a vontade de expressar o meu amor e o meu reconhecimento por tudo o que a senhora representa.

Nem sempre te ouvi, mas alguma coisa ficou marcada em mim e foram essas mesmas coisas que me tornaram uma pessoa respeitável e digna, pois a senhora sempre deu o melhor de si para que eu pudesse crescer com sabedoria.

Seus exemplos, me mostraram os caminhos que deveria seguir. Meu caráter se tornou sólido e hoje posso agradecer por tudo o que fez, que faz e com certeza continuará fazendo por mim. Minha alegria é total, pois tenho a senhora ao meu lado.

Feliz Dia das Mães!

sábado, 8 de maio de 2021

SERÁ UMA LOUCURA COLETIVA?




“Tá todo mundo louco, oba!” – cantava Silvio Brito nos anos 70. Talvez não seja possível comemorar tal fato, nem ironicamente como o faz o cantor, mas é preciso ratificar essa verdade nos nossos dias. Sim, “tá todo mundo louco” e isso não é bom sinal. Louco, mas não “maluco beleza”, como cantava Raul Seixas na mesma época.

Embora o termo “loucura” não figure mais na linguagem científica, comumente é associado à falta de razão. Essa, por sua vez, seria a instância capaz de captar os dados da realidade e ordená-los devidamente ao sujeito. Nesse sentido, se alguém vê algo além do que os olhos captam, estaria alucinando (excetuando as situações de diferenças biológicas). O louco, portanto, destoaria em sua percepção do real, conectando dados aleatoriamente ou confundindo memórias e sentidos atuais, por exemplo.

Acontece que, em grande parte, esse ordenamento é aprendido ou, ao menos, elaborado culturalmente, estruturado pela linguagem. Quando falta esse elemento, como acontece nos clássicos casos de crianças criadas por animais (como na lenda de Mogli), o mundo será percebido de modo totalmente diferente. Desse modo, quando uma percepção da realidade destoa demais do comum – alguma singularidade é sempre aceita já que cada um apreende o mundo de modo único –, quando o modo de se relacionar com as coisas foge em demasia do convencionado socialmente, atribui-se o adjetivo de louco.

Por não perceber da mesma forma, o louco também não sente da mesma forma. Consequentemente, suas reações serão muitas vezes taxadas de desproporcionais, porque não serão as esperadas pelos que abraçaram a coercitividade social, a norma do comum. O que leva, assim, a entender o louco como alguém que sente, percebe e se relaciona com o mundo de modo profundamente singular. Não se trata de alguém que rompeu com a realidade, mas com uma noção comum da realidade ou modo amplamente aceito de a ler. O louco não é irracional, mas desenvolve uma outra racionalidade que não se pauta pelas coerências funcionais da razão comum.

Por isso é muito difícil distinguir, em religião, o santo do louco. Ambos sentem, percebem e agem diferentemente dos demais. Ao santo se atribui uma iluminação desde o divino que lhe permite ver a realidade para além de suas aparências fenomênicas. Ao louco se atribui uma ilusão da própria mente. Algo parecido acontece ao gênio, alguém que conseguiria ler outros aspectos da realidade que a maioria não é capaz, embora muitas vezes sejam tidos como “meio loucos”. De qualquer forma, loucura é o nome pejorativo que o comum deu ao diferente.

Com efeito, sem o compartilhamento de uma cultura comum o tecido social se esgarça e nenhuma convivência é possível. Por isso a sociedade busca enquadrar os dissidentes, censurar o diferente, curar os não-iguais e disciplinar a todos a fim de proporcionar uma coerência entre os indivíduos que possibilite a vida em sociedade. Se, de uma parte, a vida em sociedade visa a salvaguarda da individual – haja vista humano nenhum ser uma ilha –, de outra, o grupo pode ser opressivo e controlador ao ponto de excluir a individualidade.

É por isso que a homossexualidade fora tratada como doença, porque consistia em um desejar não aceito socialmente. Hoje, outras singularidades são patologizadas, como crianças que não se adequam à estrutura social e são tidas como “hiperativas”. Como sentem, concentram-se e aprendem em tempos diferentes, são vistas como problema. Não se problematiza a escola e a necessidade de ficar um volume grande de tempo sentado, mas a criança que se levanta o tempo todo. Nem sempre o problema seria algum excesso na produção hormonal, causando algum desconforto ao sujeito, mas o transtorno social que isso causa ao indivíduo e sua adequação ao grupo.

Buscamos, dessa maneira, um meio termo, que nos permita viver, crescer, aprender e nos relacionarmos com os outros, respeitando seus limites e possibilidades, ao passo que tentamos resguardar nossa singularidade, liberdade e criatividade. O maluco beleza é aquele que consegue ser si mesmo sem dolo dos demais. Isso é diferente da loucura que estamos assistindo, como numa espécie de surto coletivo.

Contra qualquer diálogo possível, as pessoas se armam nas redes sociais para atacarem umas às outras ou defender ferrenhamente seus pontos de vista. Podem até ver que estão erradas, mas não cederão. Às vezes alguém tenta dialogar, dizendo a mesma coisa com outras palavras, e é recebido como se estivesse depredando a opinião com a qual estava concordando (porque problemas de interpretação são características destes tempos). Muitos se entendem como celebridades, mas sem audiência. O individualismo chegou aos píncaros, num tipo de rompimento com a alteridade que lhe nega qualquer humanidade.

Esse fechamento em si, no próprio mundo, que não encontra partilha com os demais, consiste na loucura que não se pode celebrar. São esses encerrados no próprio eu os que querem violentar quem não pensa igual ou que são capazes de agredir quem lhes perturba. O mundo anda tão perturbado que aqueles que não sucumbem ao fechamento estão implodindo, adoecendo para manter um mínimo de coerência. A pandemia talvez não seja a causa, mas tenha evidenciado e acelerado o cenário desse enlouquecimento, de modo que quem não adoece, surta.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DEVEM SER LIVRES E DEMOCRÁTICOS.

 

Em meio a tantas datas comemorativas destes dias (dia da mãe Terra e dia da classe trabalhadora), poderia parecer pouco relevante que a ONU tenha consagrado o 03 de maio como “dia internacional da liberdade de imprensa”. Quantas questões envolvidas nesta proposta!

Em nossos dias, apesar não estarmos mais submetidos a ditaduras militares, há pessoas processadas e ameaçadas de punição com a lei de segurança nacional, por ter se expressado contra o presidente da República. No Brasil e em outros países, a liberdade de imprensa continua cerceada, seja pelo poder político de índole totalitária, seja principalmente pelo poder econômico dos grandes conglomerados que fazem da comunicação a arma para concentrar mais poder e obter mais lucros.

O domínio econômico impõe um controle quase total sobre as informações que a sociedade recebe. Atualmente, assiste-se a uma concentração sempre maior de órgãos da imprensa nas mãos de poucos proprietários. No Brasil, a grande imprensa sempre foi propriedade de poucas famílias que, em cada região, controlam jornais, rádios e televisões. Em todo o mundo, mais de 80% das agências de notícia e dos organismos de comunicação pertencem a grandes empresas que controlam, ao mesmo tempo, as redes de informação, as grandes companhias petrolíferas e também indústrias de armamentos.

No plano político, nas décadas recentes, os meios de comunicação têm se tornado armas mortíferas e certeiras usadas pelos impérios para destruir governos progressistas e projetos de emancipação política de países que não lhes agradam. O governo norte-americano gasta milhões de dólares para que, diariamente, em todos os países da América, se publiquem notícias negativas em relação aos governos ou aos políticos que devem ser destruídos. A guerra de quarta geração foi usada contra a Líbia, contra a Síria. Hoje, o império norte-americano a usa contra o governo e o povo da Venezuela.

Este tipo de guerra se tornou muito mais barata do que a convencional e mais eficiente. No Brasil, a produção de notícias falsas já elegeu até presidente da República. Todo mundo sabe que a rede da família Marinho promoveu um juizinho do interior a falso herói nacional. Serviu-se amplamente dele para destruir a democracia e possibilitar a entrega sistemática de todas as riquezas nacionais a empresas estrangeiras. Garantiu a vitória do inominável para o governo do país. Depois que as coisas não saíram de acordo com o esperado e, por várias razões, a farsa está sendo descoberta, a Rede Esgoto descarta o juiz e quer dar ao país a impressão de que tomou a defesa do povo.

É verdade que todo ponto de vista é sempre vista de um ponto. Também se sabe que é mais barato opinar do que informar objetivamente. Mas, os cidadãos têm direito a uma informação honesta. É direito de quem informa tomar partido e declarar suas preferências ideológicas e sociais. Basta que isso seja claro, até para favorecer o debate e a pluralidade de opções. Embora pertença a uma empresa particular, um meio de comunicação social é sempre serviço público. Deve cumprir sua tarefa sem ser subjugado a interesses privados.

Em sua mensagem para o 55º Dia Mundial das Comunicações Sociais que ocorrerá no domingo 16 de maio, o papa Francisco apontou para os riscos de uma comunicação social que não tenha controles, diante da expansão das chamadas ‘fake news’. O papa afirmou: “Há algum tempo, descobrimos como as notícias e imagens são fáceis de serem manipuladas. Isso ocorre por diversos motivos, às vezes até apenas por um narcisismo banal. É preciso perceber os riscos provocados pelas notícias falsas na internet, especialmente, com a pandemia da Covid-19. Atualmente, os meios de comunicação oferecem mais espaço para uma “informação reconfeccionada”, e são menos capazes de interceptar a verdade das coisas ou a vida concreta das pessoas. Também não conseguem informar sobre os fenômenos sociais mais graves. A consciência crítica nos empurra não a demonizar os instrumentos de comunicação e sim a cuidar de termos sempre maior capacidade de discernimento”. (…) “Todos somos responsáveis pela comunicação que fazemos, das informações que damos, do controle que, juntos, podemos exercer sobre as notícias falsas, desmascarando-as. Todos estamos convocados a ser testemunhas da verdade”, completou. “É necessário um jornalismo “valente” e com coragem para ir de encontro às pessoas e às histórias de vida”.

Quem é cristão se lembra: a palavra de Deus nos vem através do “evangelho”, termo grego que significa boa notícia, informação verdadeira e libertadora, a respeito do projeto divino no mundo. O compromisso dos meios de comunicação com a humanidade é fazer com que as notícias publicadas e seus comentários possam ser realmente como “evangelhos”, isso é notícias que levem à vida e à liberdade humana. Independentemente de serem ligados ou não a uma religião, serão notícias evangélicas se servirem a um projeto de mundo mais justo e fraterno. Para isso, é indispensável e urgente que os meios de comunicação sejam livres e democráticos.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

ENVELHECER SEM FICAR VELHO

A humanidade está ficando mais velha, dizem as estatísticas. E isso parece que é bom, porque só atinge a velhice quem vive mais tempo. Pelo menos parece ser o que todos buscamos: viver muito, desfrutar até onde for possível das alegrias que significam viver, existir. E adiar a morte, conhecida por muitas culturas, notadamente a ocidental. A poesia a identificou como “a indesejada das gentes”. E mesmo os escritores bíblicos a chamaram por nomes negativos, como o apóstolo Paulo: “a última inimiga a ser vencida”; e o autor do último livro da Bíblia, o Apocalipse, que a inclui entre os quatro cavaleiros que anunciam a catástrofe final, ao lado da fome, da guerra e da peste.

Por isso, a longevidade é uma bênção e viver muitos anos um prêmio a que todos aspiram. Assim, o livro do Êxodo exorta o israelita a honrar o pai e a mãe “para que se prolonguem os seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá”. O livro dos Provérbios promete que quem aceita as palavras divinas verá seus anos de vida multiplicados, afirmando igualmente que o galardão da humildade e o temor do Senhor são riquezas, honra e vida longa. No livro dos Salmos, é prometido a quem guarda a língua e os lábios do mal e da mentira, praticando o bem, largos dias para ver esse bem florescer e frutificar. E ao justo que invoca o Senhor, este estará com ele na angústia, dando-lhe abundância de dias e mostrando-lhe a salvação.

O Novo Testamento seguirá essa rica tradição judaica. Toda a pregação e ação de Jesus de Nazaré é curativa, procurando dar às pessoas mais tempo de vida, e vida plena. Assim é que vemos nos Evangelhos curas de várias doenças, físicas e mentais. Há narrativas do poder de Jesus ressuscitando mortos como o filho da viúva de Naim e de seu amigo Lázaro. Nos escritos paulinos, é resgatada a orientação da Bíblia Hebraica sobre a honra que é devida aos pais. A quem isso pratica, como diz a Carta aos Efésios, será dada uma vida longa sobre a terra.

Não se encontrará no texto bíblico nenhuma afirmação de depreciação à vida. Pelo contrário, há sempre uma valorização da mesma, encarando o fato de ela ser longa como uma bênção de Deus, que não quer a morte de ninguém, nem do pecador, mas que ele viva. A tradição cristã seguiu fiel a essa revelação divina destacando-se pelo serviço aos pobres, dando-lhes alimento e abrigo, a fim de sustentar-lhes e prolongar-lhes a vida.

A Igreja foi pioneira na edificação de hospitais que pudessem cuidar dos doentes e devolver-lhes a saúde quando a morte os ameaçasse. E os pensadores de todas as configurações, assim como os profetas judeus e cristãos, sempre denunciaram qualquer mecanismo que pretendiam agredir a vida dos pobres e dos vulneráveis, trazendo-lhes a morte prematura e indesejada, impedindo-os de chegar à plenitude dos seus dias, vendo os filhos nascerem e crescerem e os filhos de seus filhos encherem a casa de alegria e fecundidade.

Na verdade, o anjo da morte é o mesmo que detém a paternidade da mentira e do mal. A morte é vista pelo escritor bíblico como fruto do pecado, devendo, portanto, ser temida e exorcizada como um mal. E a morte dos anciãos é sempre chorada e sentida, ainda que haja o consolo de terem chegado ao fim de seus dias. Do mesmo modo, a morte do jovem, por necessidade, por violência, por injustiça é repudiada e rejeitada por todo aquele ou aquela que deposita sua confiança no Deus da vida.

Durante a pandemia que vivemos, temos tido a oportunidade de ver os idosos sendo mais ameaçados pelos efeitos devastadores do vírus que a todos amedronta. Vimos também cenas edificantes de profissionais da saúde dando o melhor de seu saber e energias para salvar essas vidas mais fragilizadas pela idade e devolvê-las ao convívio de seus familiares e parentes. Grupo prioritário para a vacinação, foi bonito ver os idosos aliviados e alegres por poder enfim ter acesso às doses daquela que se tornou a única esperança contra esta grande ameaça que não poupou nenhuma parcela da humanidade.

Por isso, sentimo-nos tão chocados ao ouvir declarações de homens públicos reclamando da longevidade das pessoas que supostamente quebraria o sistema e o Estado. A queixa de que “as pessoas querem viver 100 anos”, anatematizando o desejo vital mais característico do ser humano agrediu nossos ouvidos e nossos olhos. Incrédulos, nos custa crer no que ouvimos. A graça de poder viver mais tempo então é vista como uma ameaça aos cofres públicos? O que incapacitou o atendimento do setor público não foi a pandemia, mas sim o avanço na medicina e o direito à vida? O Estado não aguenta que as pessoas hoje vivam mais e desejem viver mais?

Os idosos estão entre os “exilados ocultos” de nossas sociedades da abundância que se tornam desumanas com a obsessão de gerar riquezas e consideram como peso as pessoas que entendem que já não podem contribuir. Viver 100 anos e até mais é justo e desejável, sim. Vidas humanas não são descartáveis. A garantia de uma vida humana é o próprio Deus da vida que nelas soprou seu Espírito e deseja vê-las cheias de dias, contribuindo com sua experiência e sabedoria para a construção da memória sem a qual a humanidade se perde e deteriora. Como diz o salmo 92: “Mesmo na velhice darão fruto, permanecerão viçosos e verdejantes”.

Nossa utopia deveria ser não desejar que encurtem os dias das pessoas para que as contas fechem na Previdência e no serviço público. Mas poder dizer como o salmista: “Já fui jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo desamparado nem seus filhos mendigando o pão.” 

domingo, 2 de maio de 2021

BENDITAS AS FOMES INSACIÁVEIS.

Benditos os que têm fome de si e mergulham fundo no âmago do ser, arrancam dissabores do paladar medíocre, farto de migalhas caídas da mesa de Narciso. E os insaciados no apetite de beber do próprio poço e devorar gorduras impregnadas nas reentrâncias da alma.

Benditas as mulheres famintas de amor, feitas de fios de renda, a tecer a vida na magia de pequenos gestos cotidianos: a cozinha limpa, o feijão catado, a cama arrumada e o vaso da janela regado de ternura. Elas conduzem a lua como um farol que, mês a mês, atrai seus corpos para rubros mares prenhes de vida.

Bendita a fome itinerante de homens ávidos de saber, curiosos quanto aos mistérios desse breve existir, e cujas mãos transmutam árvore em mesa, trigo em pão e leite em manteiga. Generosos, não precisam exibir espadas para provar que são guerreiros. Espalhada à sua volta, a sombra do aconchego aninha a família em segurança.

Benditos os que reverenciam o sol, a flor, a água e a terra, e trazem um coração ao ritmo das estações, confeiteiros de primaveras espirituais. Esses sabem encher suas taças de chuva e assar o pão no calor de amizades.

Benditos todos que se irmanam ao canto telúrico de Francisco e dançam ao ritmo alucinado dos girassóis de Van Gogh, impregnados da sabedoria búdica que não se algema à nostalgia do passado, nem se precipita na ansiedade do futuro. Eles saboreiam o presente como inestimável presente.

Benditas as manhãs reinaugurando a vida após o sono; a idade esculpindo rugas carregadas de histórias; e a todos que, saciados de anos, não temem o convite irrecusável das bodas de sangue que, afinal, haverão de saciar a nossa fome de beleza.

Benditos os bem-aventurados na ânsia de ver repartido o pão da vida, sem encher a bolsa de sementes de podridão. Esses se sentam à mesa com espírito solidário e têm direito à embriaguez do vinho que, transubstanciado, encharca o coração de alvíssaras.

Benditas as mãos que traduzem sentimentos e semeiam carícias, aplacando a fome de afeto. E os olhos repletos de luzes e as palavras floridas de beijos. E esse voraz apetite de silêncio, leve como o voo de um pássaro.

Benditos a gula de Deus, os vulcões ativados nas entranhas, o arco-íris da pluralidade de ideias, a confraria das boas ações, os livros que nos leem, os poemas ecoados no centro da alma, a rua deserta ao alvorecer, o bonde invisível, a vida sem medos.

Benditas a ira contra os pincéis que rasgam telas; a luxúria dos balés musicados por virtudes; a preguiça dos sinos de igrejas; a avareza de quem se guarda dos vícios; e a lenta maneira de fazer crescer plantas, cumplicidades e gente.

Benditas as fomes de transcendência, de prefigurações do eterno, de jovialidade do espírito, do bolo fatiado pelo cuidado materno, de vertigens místicas, de astros acelerados pela rotação de tantos sonhos redivivos.

Benditos os machados cientes de que seus cabos são feitos de árvore e as gaiolas abertas à liberdade; as agulhas que tecem o avesso da dessolidariedade e as facas de pontas arredondadas; a música de emoções indeléveis e os espelhos que refletem as mais saborosas oferendas da existência.

Benditas as fomes insaciáveis: de saber e de sabor; de despudor no amor; de Deus sob todos os nomes inomináveis. Fome de ócio sem culpa, de alegria interminável, de saúde e de prazer. Fome de paz. Saciada plenamente por justiça – a mais bendita das fomes, capaz de erradicar a fome maldita.