quinta-feira, 30 de setembro de 2021

ALAVANCA E EQUILÍBRIO

 



Viver melhor há de ser mais que um simples slogan ou apelo por determinada campanha. Menos ainda deve instigar a construção de um cotidiano nos limites de uma medíocre “zona de conforto”, alimentada pela ilusão de condições cômodas para um viver que não é senão feito de mesquinhez e distanciamento da solidariedade. Esse é um risco real e comum a empurrar indivíduos e segmentos da sociedade para as estreitezas que alimentam indiferenças e incapacitam para a indispensável escuta dos clamores dos pobres e do planeta – das dores dos outros. Viver melhor seja um programa de vida correndo nos trilhos da existência entre as “bitolas” da conscientização, que ilumina o entendimento adequado da realidade em torno e no seu alcance mais amplo, e a experiência alimentadora do vigor e da ternura que alavancam o dia a dia. O viver melhor requer a arte de não se desencarrilhar dessas duas e insubstituíveis bitolas na qualificação da existência humana, para conduzi-la no horizonte de seu verdadeiro sentido. Evidente é o desafio que revela inexistente flexibilidade existencial para não desligar-se de uma ou outra dessas “bitolas”, que têm força de alavanca e equilíbrio.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

COISAS PARA SER FELIZ (3)

 

 Na liturgia cristã, os gestos são lentos para que se permita aprofundar o espírito: o vinho derramado no cálice, as ondulações suaves do canto gregoriano, os joelhos dobrados em sinal de adoração ao Senhor. Isso vale para o conjunto da vida. Na relação com o alimento usufrui melhor quem faz da refeição, celebração. Sem pressa ou preocupações. O que importa não é o prazer, é a felicidade.

Sentir os atos mais vulgares como aventura espiritual é um desafio proposto pelas religiões orientais. Um ocidental enche de água o copo sem ouvir o murmúrio do líquido, enquanto a cabeça permanece distante daquele momento. Um oriental instruído na sabedoria milenar sabe ser aqui-e-agora: copo, água, sede, gesto e atenção formam um todo e favorecem a harmonia interior.

O sábio não corre atrás do tempo nem se deixa arrastar pelo ritmo do relógio. Ele é senhor do tempo. Em suas atividades nunca submerge, pois se comporta “como a cortiça na água”, como sugere São João da Cruz. Ele aprendeu que só o Absoluto e suas expressões – as pessoas e a natureza – valem a pena. Tudo mais é relativo e, como tal, não merece tanta importância.


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

COISAS PARA SER FELIZ (II)

Vemos sem olhar, escutamos sem ouvir, falamos sem medir o peso das palavras. A vida, como mistério, declina em nossa falta de sensibilidade. O pragmatismo nos induz, célere, ao rol dos ansiosos, a antessala dos infartados, à mesa dos obesos que engolem sem mastigar.

A tradição judaica ensina-nos um conjunto de deveres (as mitzuot) que ajudam a impregnar-nos da presença divina. “Nós nos exercitamos em conservar nosso sentimento de admiração, recitando uma oração antes de tomar o alimento”, escreve A.J. Heshel.

“Cada vez que bebemos um copo d’água recordamos o eterno mistério da Criação. (…) Quando desejamos comer pão ou fruta, ou então gozar de agradável fragrância ou de um cálice de vinho, ao saborear pela primeira vez a fruta da estação, ao contemplar o arco-íris ou o oceano, ao observar as árvores em flor, ao nos encontrarmos com uma pessoa douta no conhecimento da Torá ou na cultura leiga, ao receber notícias boas ou más, foi-nos ensinado invocar Seu grande nome e nossa consciência dele”. 

domingo, 26 de setembro de 2021

COISAS PARA SER FELIZ,

 

É preciso saber enxergar um palmo além do chão, da parede, do teto ou mesmo das convicções que nos norteiam. Tudo depende de nossa cabeça. Somos, como seres humanos, aquilo que está gravado em nossa mente: ideias, noções, fantasias, impressões.

Se fomos educados na crença de que há pessoas superiores a outras devido à cor da pele ou nos deixamos convencer, pela publicidade, que pilotar um carro a 300 km/h é mais nobre que lutar para combater a fome, então nossos atos serão regidos pelo racismo ou pelo culto aos ídolos do consumismo.

No Ocidente, avançamos em ciência e tecnologia e retrocedemos em valores humanos e espirituais. Atulhados em grandes cidades, trancafiados em apartamentos ou em casas cercadas de muros e prédios por todos os lados, já não contemplamos a natureza. Perdemos o silêncio do indígena que caminha pela floresta em busca de caça e distingue o canto dos pássaros. Ou do viajante que em seu cavalo ou carroça se deixa inebriar pela variedade de tons das encostas e plantações. Simples assim.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

CHEGOU A PRIMAVERA.

Todos os anos, no dia 23 de setembro, tem-se oficialmente declarado o início da Primavera, uma das quatro estações do ano. Mas, nessa data, é primavera apenas no Hemisfério Sul, pois no Hemisfério Norte, nesse mesmo dia, inicia-se o outono.

Do ponto de vista técnico, a
primavera não necessariamente coincide com a sua data oficial. Por exemplo: no ano de 2014, o seu início correto, segundo o portal Climatempo, foi às 23h29 do dia 22 de setembro.

Mas o que marca, astronomicamente, o início da primavera?

A data de início da primavera possui relação com um fenômeno chamado equinócio, que nada mais é do que o período do ano em que os dois hemisférios são igualmente iluminados pelos raios solares, de forma que os dias e as noites possuem, basicamente, a mesma duração.

É válido lembrar, porém, que o equinócio exato só ocorre em um momento do ano, pois logo depois a luz solar vai gradativamente se inclinando para o hemisfério sul, fazendo com que, aos poucos, os dias vão se tornando cada vez maiores do que as noites. Quando esse processo atinge o seu ponto máximo, ou seja, o momento em que o dia estiver maior o possível, temos o 
solstício, que costuma ocorrer no dia 21 de dezembro, encerrando a primavera e iniciando o verão.

Perceba, porém, que as estações do ano são apenas convenções. Pois, se pensarmos bem, a data de início da primavera é apenas o ápice do posicionamento da Terra em relação aos raios solares durante o 
movimento de translação. Pois, à medida que o tempo passa, mais próximo do verão estamos e gradativamente temos “menos primavera” com o passar dos dias.

É válido mencionar que, não necessariamente, a primavera é a “estação das flores”. Isso porque essa estação provoca diferentes efeitos sobre os diferentes lugares, de modo que nem sempre essa época do ano obedece ao estereótipo do céu azul, sol radiante, temperaturas amenas e ambiente florido. No Brasil, por exemplo, nesse período, muitas regiões começam a receber as fortes chuvas, que costumam se iniciar no final do mês de setembro e no início do mês de outubro, prolongando-se durante quase todo o verão.

No Brasil, é também durante a primavera que o fenômeno do El Niño se manifesta, atuando principalmente com a intensificação das chuvas no centro-sul do país e aumentando o período mais seco no norte e no nordeste.

sábado, 18 de setembro de 2021

É TEMPO DE NOS CIVILIZARMOS.

Não basta dizer que um outro mundo é possível.
Precisamos mostrar que
uma outra gestão é possível.
O que propomos tem de funcionar.

A análise do funcionamento da economia que aqui apresentamos tem, sim, um objetivo, que não é necessariamente o crescimento do PIB, mas a reconversão necessária para um desenvolvimento equilibrado. Aliás, é interessante constatar que com um PIB mundial de 88 trilhões de dólares e 7,8 bilhões de habitantes, o que produzimos hoje em bens e serviços representa o equivalente a 18 mil reais por mês por família de quatro pessoas, o que permitiria uma vida digna e confortável para todos, bastando para isso uma modesta redução das desigualdades. Isso também vale para o Brasil, pois com um PIB de 7,3 trilhões de reais (2019) e uma população de 212 milhões, produzimos o equivalente a 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Não há nenhuma razão econômica para a pobreza, a desigualdade e a consequente guerra social e política interna que vivemos. Nosso problema não é produzir mais: é definir melhor o que produzir, a quem distribuir, e como assegurar a sustentabilidade social e ambiental do planeta. Nosso problema é de redefinição das formas de organização política e social.

Os mecanismos econômicos não são complexos. O que complica é que, segundo os interesses e a vontade de se apropriar de um pedaço maior do bolo, ouvimos explicações contraditórias para cada coisa. O banqueiro diz que precisa subir os juros para ganhar mais, pois isso permite que ele invista e dinamize a economia para o bem de todos. O funcionário diz que precisa ganhar mais, pois isso estimula a demanda, o que, por sua vez, gera investimentos e dinamiza a economia para todos. Todos querem, no discurso, o bem de todos, se possível justificando a apropriação do maior pedaço possível para si. Não há como não trazer para o raciocínio o conceito de justiça, de merecimento. Eu, francamente, acho mais legítimos os interesses dos trabalhadores do que os dos banqueiros. Banco é atividade de meio, e os meios têm de se adequar aos fins, que é o fomento da economia e uma vida digna para todas as famílias.

Muitos simplesmente desistem de entender, imaginam uma complexidade acima da sua compreensão. No entanto, se trata do nosso dinheiro, da nossa sociedade, dos nossos empregos, dos nossos filhos. Enquanto deixarmos a compreensão da economia para os especialistas, são os interesses deles, e dos que os empregam, que vão prevalecer. A democratização da economia, e da própria compreensão do seu funcionamento, é fundamental. Precisamos de muito mais gente que entenda como se pode realmente equilibrar as coisas. O que temos é muita narrativa, mas pouca explicitação dos mecanismos.

A mídia comercial, sem dúvida, não ajuda e, curiosamente, ainda que a nossa vida dependa tanto do andamento da economia, nunca na escola tivemos uma só aula sobre os seus mecanismos. Nenhuma aula sobre como funciona, por exemplo, o dinheiro, esse poderoso estruturador da sociedade. A televisão atinge hoje 97% dos domicílios: seria tão difícil assim gerar uma sociedade mais informada, em vez de nos massacrar com bobagens e fundamentalismos ideológicos? Mas a mídia comercial vive da publicidade contratada pelos grandes grupos privados de interesses, e não há análise objetiva a se esperar desse lado.

A economia não é propriamente um “setor” de atividades, como a educação ou a agricultura, e sim uma dimensão de todas as nossas atividades. Tem dimensão econômica a latinha de cerveja que alguém joga na rua, e que alguém terá de apanhar. Ou a escola que escolhemos para os nossos filhos, ou ainda a obesidade que se gera com refrigerantes e certos tipos de comida. Quem limpa a rua terá de ser pago, da qualidade da escola depende a produtividade futura, a obesidade vai gerar custos na saúde. Praticamos economia o dia inteiro, ainda que a dimensão econômica frequentemente nos escape. A economia, nesse sentido, constitui um movimento que resulta do conjunto de iniciativas dos mais variados setores, e temos de ter uma noção da contribuição de cada um, e de como se articulam.

A economia está impregnada de ideologias, contaminada por preconceitos. Esse ponto é importante, e vai nos fazer entender, por exemplo, que o motorista apressado tenha ódio do corredor de ônibus, ou que os acionistas de um grupo econômico que poderiam lucrar com um shopping fiquem escandalizados que uma área verde sirva apenas como espaço gratuito de lazer. Mas a economia que funciona não se resolve no ódio, e sim na harmonização razoavelmente equilibrada dos diversos interesses.

Essa harmonização não significa uma abordagem neutra, pois enfrentamos aqui desequilíbrios antigos e novos, herdados e reproduzidos. Nos EUA, o salário de um administrador top de linha de uma instituição de especulação financeira é, aproximadamente, o mesmo que o de 17 mil professores do ensino primário (Russell Jacoby). Faz algum sentido? Nenhum sentido ético, pois o trabalho do professor é muito intenso, e nenhum sentido econômico, pois o professor multiplica conhecimentos, enquanto o especulador multiplica crises. No entanto, é o que prevalece, e o importante não é odiar individualmente o especulador – há inúmeros candidatos para ocupar o seu lugar –, e sim entender como o sistema se deformou e permite esses absurdos.

No plano social, temos de entender como o 1% dos mais ricos do planeta se tornaram donos de 50% das riquezas produzidas por toda a sociedade. Como podemos ter mais de 800 milhões de pessoas que passam fome quando o mundo produz, apenas de grãos, mais de um quilo por pessoa por dia? Como, com tantas tecnologias, um terço da humanidade ainda cozinhe com lenha, e 1,3 bilhões sequer tenham acesso à eletricidade? Esperar ter paz social, política equilibrada e um mundo em segurança nessas condições não faz muito sentido. Gente reduzida ao desespero reage de maneira desesperada, é tão simples. A partir de um certo grau de desigualdade, as sociedades, no seu conjunto, deixam de funcionar, acumulam-se crises e conflitos, os processos democráticos se desarticulam.

Sempre houve mecanismos de exploração e narrativas para justificá-la. E evidentemente, para os que não acreditavam ou hoje não acreditam nas narrativas, sempre há o porrete. Mecanismos econômicos de apropriação, narrativas e contos de fadas para justificar o injustificável, e o porrete para os que não acreditam em contos de fada, esse pode ser o resumo dos nossos tristes destinos de economia selvagem. É tempo de nos civilizarmos

terça-feira, 14 de setembro de 2021

PARA ENSINAR, BASTA SABER. PARA EDUCAR, PRECISA SER.


No dia 19 de setembro, celebraremos a data em que o grande Paulo Freire completaria 100 anos. A ONU instituiu o 8 de setembro como Dia Internacional da Alfabetização. Por isso, nestes dias, no mundo inteiro, a sociedade civil internacional se viu envolvida pelos novos desafios de uma educação para todas as pessoas e a busca de novos meios para erradicar o analfabetismo.

Conforme cálculos da ONU, em todo o mundo, o analfabetismo absoluto diminuiu, mas ainda há grande proporção de analfabetos(as) funcionais. Na cidade de São Paulo, 17% dos(as) jovens entre 15 e 24 anos não conseguem ler placas e avisos de uma estação rodoviária ou de Metrô. Não sabem preencher dados para uma ficha de emprego.

Com o seu método revolucionário de alfabetização de adultos(as), Paulo Freire nos ensinou que a educação é o processo que nos torna mais humanos. Alfabetizar não é apenas ensinar a ler, mas possibilitar a todas as pessoas a participação cidadã e crítica na sociedade.

É verdade que nascemos autocentrados(as). Crescemos sob a influência de tendências nocivas que tendem a nos imobilizar quando se trata de correr riscos e abrir mão de prestígio, poder e dinheiro. Daí a necessidade de uma educação profunda da consciência e da sensibilidade das pessoas e das coletividades. As práticas educativas devem infundir valores altruístas, gestos solidários e ideais sociais. Só assim, a vida ganha sentido e as relações humanas se tornam verdadeira comunicação.

Conforme Paulo Freire, a educação só cumpre sua função quando forma seres humanos mais felizes, dotados de consciência crítica e capazes de aprimorar sistemas sociais e políticos no sentido do amor solidário, da igualdade social e da justiça.

Caminhar nesse sentido implica vencer alguns desafios da atual conjuntura. O primeiro deles é superar o avassalador processo neoliberal de desistorização da história. Sem perspectiva histórica não há consciência nem projetos políticos. O filósofo alemão Theodor Adorno afirmava que o desafio mais urgente da educação é desbarbarizar a sociedade. Ele compreendia por barbárie uma sociedade que, de um lado, se encontra em alto grau de desenvolvimento tecnológico e, do outro, mantém as pessoas privadas de viver e expressar a sua dignidade humana.

Paulo Freire afirmava que somente a educação não pode mudar a sociedade, mas, ao mesmo tempo, nenhuma sociedade mudará sem que a educação desempenhe um papel fundamental. E nessa educação humanitária e libertadora, o diálogo é o elemento fundamental.

Diálogo não é qualquer tipo de comunicação. Não é apenas troca de opiniões ou debate. É relação entre pessoas que se colocam em atitude de escuta mútua para buscar juntas a verdade. Inclui a dimensão interior do diálogo consigo mesmo. Realiza-se mais profundamente no encontro amoroso com as outras pessoas e na comunhão com a natureza.

Para quem tem fé, tudo isso compõe o diálogo com o mistério que as religiões chamam de Deus. O grande educador Ruben Alves afirmava: “Educar é mais difícil do que ensinar. Para ensinar, basta saber. Para educar, precisa ser”.

 

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

COMO DIZ MARIA CLARA BINGEMER: DE MÃO EM MÃO.

Da mão da mãe para a mão do soldado, da mão do soldado para a mão do pai, da mão do pai para a mão das comissárias de bordo. Todas essas passagens para ser levado em direção a um futuro de hipotética liberdade. Esse foi o itinerário que muitas crianças afegãs percorreram nos últimos dias quando o Talibã tomou Cabul, a capital do Afeganistão.

Em uma situação de guerra e violência, as crianças são sempre as primeiras vítimas. Mais frágeis e vulneráveis, expostas a todas as agressões e perigos, muitas sucumbem à força do terror e da barbárie. Porém, outras sobrevivem misteriosa e milagrosamente. E, muitas vezes, graças ao gesto desesperado da mãe que arrisca separar-se da cria para que esta possa viver.

Nas cenas de Cabul, viu-se mulheres desesperadas com filhos nos braços, premidas pela multidão que se acotovelava na entrada do aeroporto. Na tentativa extrema de salvar o filho de ser esmagado e morto, levantavam as crianças acima de suas cabeças e os entregavam aos militares estadunidenses ou britânicos que se encontravam do outro lado do arame farpado.

Um dos pequenos afegãos, que devia ter menos de um ano, foi puxado por um dos braços a fim de fazer sua travessia em direção à esperança. Algum outro caiu em meio ao arame farpado. Outros ainda tiveram que ser encaminhados ao atendimento médico do aeroporto, afetados física e psicologicamente pela pressão a que foram submetidos.

Do outro lado da corrente de mãos estava o pai, ou um parente. Lá se encontrava ou chegou depois. Em todo caso, para que alguma criança pudesse embarcar nos aviões estadunidenses, era necessária a presença de algum familiar. E lá se foram os pequenos, tão cedo golpeados pela provisoriedade da vida e da condição humana. Ontem tinham um lar, uma família, paz e rotina. Hoje são passantes, passageiros, transeuntes que galgam as mãos que os conduzem onde não escolheram, em outra terra e outra cultura, na esperança de encontrar uma vida melhor.

Decidem por eles, esperam por eles, desejam por eles. Eles e elas são pequenos, não têm ainda condições de fazer opções importantes e devem seguir o que os pais escolhem. Mesmo que essa escolha os afaste do pai ou da mãe. Ou de ambos. Em todo caso da pátria, da língua, de todo o ambiente que começavam a reconhecer e aprender a chamar de seu.

No avião, as crianças afegãs eram vencidas pelo sono e o cansaço. E o chão da aeronave foi muitas vezes seu lugar de repouso. Como cobertor, o casaco de um uniforme militar emprestado para agasalhar e proteger do frio. Ao seu redor dezenas, centenas de compatriotas em trânsito para um destino incerto que naquele momento representa a única esperança.

Resta-lhes a vida. E não é pouca coisa. Outros pequenos não tiveram tanta sorte. Estavam na rota da explosão do ataque suicida. Passaram diante da mira da arma que atirou. A esses que passaram de mão em mão, resta a vida. E a vida pulsa, respira, espera, se movimenta. E o avião é como um pássaro de grandes asas que conduz as vidas inocentes e indefesas rumo a outra paisagem.

O que se passa na cabeça e coração de uma mãe para chegar a entregar o filho em outras mãos no momento do pânico e do desespero? Que força a move para fazê-la preferir entregar seu pequeno em mãos que não as suas, confiar seu precioso rebento a braços estranhos que não os seus?

Na história da humanidade, conhecemos a narrativa de várias ocasiões em que mães fizeram isso, a fim de salvar seus filhos. Separaram-se deles e os entregaram a outros como único caminho para salvar suas vidas. Assim a Bíblia Hebraica no segundo capítulo do livro do Êxodo. Os hebreus eram escravos no Egito e uma mulher hebreia concebeu de um homem da casa de Levi, devendo esconder seu filho para que nenhum mal lhe acontecesse. Após três meses, não podendo escondê-lo mais, levou-o em um cesto ao rio e ali o deixou. A filha do faraó encontrou o bebê e o levou para casa, sabedora de sua origem. No palácio, o menino se educou e cresceu, sendo chamado de Moisés, o salvo das águas. Será ele mesmo que, adulto, libertará o povo do cativeiro e da escravidão.

O primeiro livro dos Reis conta a história de duas mães que se apresentam diante do rei Salomão. Ambas tinham filhos. E um dos meninos morreu, sendo que cada uma afirmava ser seu o menino que estava vivo. O sábio rei disse então que cortaria o menino vivo ao fio da espada para que cada uma ficasse com uma parte dele. Uma das mulheres suplicou ao rei que o entregasse inteiro à outra em vez de matá-lo. Salomão reconheceu ser essa a verdadeira mãe, que preferia a vida do filho a tê-lo junto a si. E todo o povo reconheceu e reverenciou a sabedoria do rei.

As histórias da segunda guerra mundial têm em sua narrativa muitas mães igualmente heroicas que, ao sentir o perigo da deportação e da morte que se aproximava com apavorante certeza, separavam-se de seus filhos e os entregavam àqueles que os pudessem proteger e dar segurança. E assim um grande número de crianças judias se salvou, graças à coragem desses e dessas que os esconderam, e também ao instinto vital que fez suas mães escolherem dar-lhes um futuro em vez de guardá-los junto a si sob o risco de morte certa.

Nos tempos em que vivemos, sombrios e violentos, as crianças são as primeiras e mais certas vítimas. Sua fragilidade, sua pequenez, sua infância indefesa são presas fáceis e imediatas para a brutalidade e a barbárie. Frequentemente, a única coisa que pode salvá-las é a generosidade das mães, que mesmo ao preço de ter seu coração partido, os entregam em outras mãos. Passando de mão em mão, essas crianças feitas órfãs ainda que de pais vivos não sabem o que as espera. Viajam em direção ao desconhecido. Mas levam consigo o penhor do amor que as trouxe ao mundo e tudo fará para que possam seguir seu caminho em vida nas asas da esperança.

Nesse terrível momento, é justo e necessário reverenciar as mulheres afegãs, que além de verem ameaçados seus direitos duramente conquistados devem entregar seus filhos para passarem de mão em mão rumo à liberdade.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

PARA FOME: FUZIL OU FEIJÃO?


A fome é uma realidade cruel e devastadora para milhares de famílias brasileiras. Os dados de institutos de pesquisas e órgãos de impressa comprovam o que já pode ser percebido muito proximamente a nós a partir de relatos do cotidiano e das cenas que observamos atentamente pelas ruas de nossos bairros, sobretudo nas periferias. Uma realidade alarmante como essa, contudo, não pode ser tratada apenas como dados estatísticos, uma vez que a alimentação é, sabemos, fundamental para que qualquer pessoa possa continuar viva. Assim, não é demais recordar que ao falar da fome, no substrato, estamos falando do jogo entre a vida e a morte.

O ser humano sempre conviveu com a fome. A escassez de alimentos é uma realidade que ocorre de tempos em tempos. As condições climáticas e de cultivo e a agricultura, sem dúvidas, determinam sobremaneira o acesso dos seres humanos ao alimento, de modo que nem sempre a procura correspondeu à oferta. Obviamente, é compreensivo que ainda hoje esses fatores possam incidir sobre a mesa de milhares de pessoas em todo o mundo. No entanto, é preciso questionar o fato objetivo de que um país que se projeta internacionalmente como um exportador de alimentos apresente um número crescente de pessoas convivendo com a miséria, a pobreza e, consequentemente, com a fome.

O cristianismo rompeu com uma teologia retribuitiva que acreditava que os infortúnios e desgraças que se abatiam sobre uma pessoa eram frutos do pecado ou do afastamento do sofredor de Deus. Embora ainda possamos encontrar discursos alinhados a essa compreensão, o retorno às fontes da fé mostrou pelo exemplo de Jesus que o Deus da vida jamais interferia punitivamente no curso da história humana, a fim de subtrair de qualquer pessoa que seja sua dignidade intrínseca. Por isso mesmo, o horror da fome ou de qualquer outro mal acometido contra o ser humano não podem encontrar respaldo ou justificativa na teologia cristã, precisamente porque está posto que Deus não se compara aos juízes e aos carrascos ou a um jogador alienado e manipulador.

Posto isso, caem por terra dois possíveis argumentos no Brasil cristão de milhares de famintos e miseráveis. A fome não é castigo de Deus. Ademais, o Deus de Jesus é aquele que providencia o pão dos céus e é aquele que se faz pão, saciando nossas fomes no tempo. Além disso, é aquele que corrige a ética ordenando: dai-lhes vós mesmos de comer. Tampouco, a fome é provocada pela escassez de alimentos em nosso país, um grande produtor e exportador nesses nossos tempos. Então, o que faz com que milhares de pessoas estejam passando fome? Quais são as causas de tragédia tão grande? A injustiça, sem dúvidas. Tanto a pessoal, quanto a coletiva que é sistematizada numa economia que degrada e mata. Arroz e feijão, arroz ou feijão eram alternativas até então em nossas mesas. Feijão ou fuzil: mistura demasiadamente heterogênea, posto que impõe a derrota da vida frente a morte. Morre-se de fome ou de fuzil. Como José Américo de Almeida sentenciou em sua obra A bagaceira: “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

A IMPORTÂNCIA DA LEITURA

 

Alguém disse que, quando lemos um clássico pela primeira vez, realizamos, a bem da verdade, uma segunda leitura. Mais que um paradoxo, as linhas de força de um grande livro não deixam margem à dúvida.

Esse é o caso de Moby Dick. Antes de navegar com Ismael, naquelas águas altas e perigosas, quem não passou por um sem-número de filmes e desenhos animados, músicas e quadrinhos, que aludem à baleia branca de Herman Melville? Portanto, sabíamos algo de Moby Dick, antes mesmo de aportarmos no romance, através de remissões e fragmentos.

Um clássico dialoga com as vozes que o precederam. Melville não esqueceu a viagem dos Argonautas, o naufrágio da Odisseia e a tempestade da Eneida.

Assim, quando chegamos a Moby não somos uma página em branco. A primeira leitura é, no mínimo, a segunda.

A tradução de Melville em português adquire novo teor salino. Nossa língua é filha de Netuno e de Ulisses. Cresceu na intimidade com o mar, entre sonhos e lágrimas, naufrágio e calmaria, Vênus e Adamastor.

A literatura é um repertório infinito, rede lançada em pleno oceano para buscar uma ostra, ou quem sabe uma estrela que dorme, afogada. Ou, ainda, uma baleia, simbólica e profunda.

Há outro fato que me encanta em Moby Dick. Leio um artigo publicado no jornal: “Casca de Noz em pleno Oceano”. O repórter é atraído por um pequeno barco no porto do Rio. O “Buona Stella” partiu de Gênova e levou três meses para chegar ao Brasil. Corria o ano de 1951. Havia um mascote a bordo chamado Tânger. “Cachorro fiel que viveu os mesmos perigos da longa travessia”. 

Moby estava em mim antes de conhecê-la.

A “segunda” leitura do romance deu-se numa praia de cara para o Atlântico. Ia eu cercado de antigas ideias, O velho e o mar e Os lusíadas. Dezessete anos de idade. Não conseguia separar-me da ficção que condensava uma vida: o mistério do bem e do mal, as ideias fixas: o mundo sombrio e luminoso de cada personagem. E logo me apresento ao capitão Ahab: “Olá, meu nome é Rui”. E vogo em alto mar, preso ao convés, de olhos bem abertos, a sondar o horizonte.

Se alguém disser que saiu do romance, não acredite, leitor. Quem bebe dessas águas não é capaz de abandoná-las. Um clássico passa a fazer parte de nossa biografia, amizade que reconheço, cinco décadas depois, na mesma praia. Não tenho dúvidas de que Moby me engoliu. Quem sabe me tornei um novo Jonas, apaziguado no corpo da ba
leia.