terça-feira, 12 de março de 2024

UMA HISTÓRIA PARA PENSAR...

A globalização representa uma etapa nova no processo de cosmogênese e de antropogênese. Temos que entrar nela. Não do jeito que as potências controladoras do mercado mundial querem -mercado competitivo e nada cooperativo-, apenas interessadas em nossas riquezas materiais, reduzindo-nos a meros consumidores. Nós queremos entrar soberanos e conscientes de nossa possível contribuição ecológica, multicultural e espiritual.


Conto uma história que vem de um pequeno país da África Ocidental, Gana, narrada por um educador popular, James Aggrey, nos inícios deste século, quando se davam os embates pela descolonização. Oxalá os faça pensar.

Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro, a fim de mantê-lo cativo em casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto às galinhas. Cresceu como uma galinha.

Depois de cinco anos, esse homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista: “Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia”.

“De fato”, disse o homem. “É uma águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais águia. É uma galinha como as outras.”

“Não”, retrucou o naturalista. “Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.”

“Não”, insistiu o camponês. “Ela virou galinha e jamais voará como águia.”
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e, desafiando-a, disse: “Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!”.

A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.

O camponês comentou. “Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!”.
“Não”, tornou a insistir o naturalista. “Ela é uma águia. E uma águia sempre será uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.”
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou-lhe: “Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!”.
Mas, quando a águia viu lá embaixo as galinhas ciscando o chão, pulou e foi parar junto delas.

O camponês sorriu e voltou à carga: “Eu havia lhe dito, ela virou galinha!”.
“Não”, respondeu firmemente o naturalista. “Ela é águia e possui sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.”

No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a água, levaram-na para o alto de uma montanha. O sol estava nascendo e dourava os picos das montanhas.

O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe: “Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!”.
A águia olhou ao redor. Tremia, como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então, o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, de sorte que seus olhos pudessem se encher de claridade e ganhar as dimensões do vasto horizonte.

Foi quando ela abriu suas potentes asas. Ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto e a voar cada vez mais para o alto. Voou. E nunca mais retornou.

Povos da África (e do Brasil)! Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. E nós ainda pensamos que somos efetivamente galinhas. Mas nós somos águias.
Por isso, irmãos e irmãs, abram as asas e voem. Voem como as águias. Jamais se contentem com os grãos que lhes jogarem aos pés para ciscar.

sábado, 2 de março de 2024

PORQUE EXISTEM POBRES E OPRIMIDOS.


 
A mim sempre me impressionou uma pequena história relatada no livro do Eclesiastes do  Primeiro Testamento (ou o Antigo). O Eclesiastes se assume como sendo o sábio rei  Salomão. Seria o que chamaríamos hoje um acadêmico ou um professor universitário (em hebraico Qohelet), É conhecido pela expressão “vaidade, pura vaidade; tudo é vaidade”(1,2). Algumas traduções modernas traduzem: “ilusão, pura ilusão; tudo é ilusão”.

Todo livro é uma busca incansável pela felicidade mas se confronta com a morte inevitável que torna todas as buscas ilusões, puras ilusões. Nem por isso deixa de ser temente a Deus e ético ao se indignar face às opressões: ”quantas são as lágrimas dos oprimidos sem ninguém que os console quando estão sob o poder dos opressores…feliz é aquele que não chegou a nascer porque não viu a maldade que se comete debaixo do sol”(4,1.3).

 Um pouco da pequena história que reza assim:

Havia uma cidade de poucos habitantes.Um rei poderoso marchou sobre ela, cercou-a e levantou contra ela grandes rampas de ataque. Havia na cidade um homem pobre, porém sábio, que poderia ter salvo a cidade com sua sabedoria. Mas ninguém se lembrou daquele homem pobre. A sabedoria do pobre é desprezada e suas palavras nunca são ouvidas”(9,14-16).

Essa constatação me reporta à teologia latino-americana da libertação. É uma teologia cujo eixo articulador é a opção não excludente pelos pobres e por sua  libertação”. Ela confere centralidade aos pobres como está no evangelho do  Jesus histórico: "felizes os pobres porque de vós é o Reino de Deus”(Lucas 6,20). Mas há algo de inédito na Teologia da Libertação que supera o assistencialismo e o paternalismo tradicionais que faziam caridade para com os pobres  mas os deixavam em sua situação de pobres.

A Teologia da Libertação acrescentou algo singular: reconhecer a força história dos pobres. Eles começaram a se conscientizar de que sua pobreza não é querida por Deus ,nem é natural, mas consequência de forças sociais e políticas que os exploram para se enriquecerem à custa deles, fazendo-os assim pobres. Então não são simplesmente pobres, são oprimidos. Contra toda opressão vale a libertação. Conscientizados deste fato e organizados, constituem-se forças sociais, capazes, junto com outras forças, de mudarem a sociedade para que seja melhor, não tão injusta, opressora e desigual.

Os cristãos se inspiraram na tradição do Êxodo (“ouvi o clamor de meu povo oprimido, desci para libertá-lo:” naquela dos profetas que contra os opressores dos pobres e das viúvas  denunciavam as elites dominantes e os reis (Isaías, Amós, Oséias, Jeremias), fazendo Deus dizer: “quero misericórdia e não sacrifícios; procurai o direito, corrigi o opressor, julgai a causa do órfão e defendei a viúva”(Isaías, 1,17). Mas principalmente na prática do Jesus histórico que claramente estava sempre do lado da vida sofrida, especialmente dos pobres, dos doentes ,dos marginalizados, das mulheres, curando e exercendo uma prática verdadeiramente libertadora dos padecimentos humanos. Anunciava-lhes o projeto de Deus, uma revolução absoluta: um Reino de amor, de paz, de perdão, de compaixão e também de domínio sobre a natureza rebelada.

A Teologia da Libertação deu um voto de confiança nos pobres, considerando-os  protagonistas de sua própria libertação e atores na sociedade como a nossa que cria mais e mais pobres e vergonhosamente os despreza e relega à marginalidade. Ela se funda sobre exploração das pessoas, sobre competição e não sobre a solidariedade e sobre depredação irresponsável da natureza e não sobre o cuidado.

Para mim era a confirmação da verdade da história do Eclesiastes: temos que ouvir os pobres que antes de ler as letras, leem mundo com acerto. Sem a sabedoria deles e dos povos originários não salvaremos nossas sociedades e também não evitaremos as catástrofes de nossa civilização.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A SUPERAÇÃO DO EGOÍSMO E DO INDIVIDUALISMO.



A Quaresma é tempo de penitência e conversão. No Brasil, ela inclui a cada ano uma Campanha que nos incentiva a crescer no amor ao próximo, mandamento essencial para o cristão. “Fraternidade e Amizade Social” é o tema da CF 2024; e o lema é “Vós sois todos irmãos e irmãs”.

O que é amizade social? O Papa Francisco responde: É o amor presente nas relações sociais; é o amor como base da relação entre as pessoas e os povos.

É a vida em comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros, superando as inimizades. A amizade social é um valor precioso, é um dom de Deus aos seres humanos.

A CF 2024 é um forte convite a um profundo exame de consciência e a uma sincera conversão, ao nos fazer refletir sobre o quanto podemos e devemos melhorar em nossa vida pessoal e comunitária.

Olhando para dentro de nós e ao nosso redor ficamos espantados ao constatar o quanto a divisão e a indiferença estão nos afetando. Nosso País é extremamente desigual, com “ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres”. Nossa sociedade padece de uma brutal divisão, erguendo muros de separação entre as pessoas, e muitas vezes considerando o diferente como um inimigo que é preciso eliminar.

Todos os dias, vemos crescer a violência e o crime que colocam em perigo comunidades inteiras. Quanta gente está sofrendo com divisões dentro da própria família por causa de escolhas políticas! É lastimável ver como as pessoas têm difundido ódio e intolerância, espalhando preconceitos e falsidades nas redes sociais.

E ainda tem aqueles que sugerem como solução o porte de armas, “como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos”, como disse o Papa Francisco.

Felizmente, vemos também em nossa sociedade frequentes manifestações de amor solidário, sobretudo em emergências naturais ou em grandes tragédias. Sempre aparecem voluntários que logo se mobilizam, oferecendo bens e serviços necessários para o socorro às vítimas.

São muitos os passos que devemos dar, nos níveis pessoal, comunitário e social, para criarmos espaços de encontro verdadeiro, onde se vive a empatia e a compaixão. Que tal, por exemplo, cultivar, por meio da oração, uma espiritualidade de comunhão, uma mística do encontro, da ternura, da misericórdia, aprendendo do Mestre como ser mais acolhedores e compreensivos ao lidar com as pessoas?

O cristão procura reagir como o bom samaritano: vê, sente compaixão e cuida. Tudo isso levará Você a uma mudança de vida, a uma superação do egoísmo e do individualismo, e a uma vida de amor fraterno e de engajamento comunitário.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

SÓ DEUS PODE NOS SALVAR.

Há ninguém passa pela cabeça que a situação mundial seja boa. O que assistimos pela mídia digital/social são cenas de guerra, crianças inocentes sendo assassinadas pela fúria dos ataques contra o Hamas, sacrificando ilegitimamente todo um povo de palestinos da Faixa de Gaza, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia que dura já três anos e outros 18 lugares de violência e crimes de guerra na África e alhures.

Segundo a famosa ONG Oxfam, em 2024, se considerarmos a fortuna pessoal dos 36 indivíduos mais ricos do mundo,  ela equivale  à renda de mais da metade da humanidade, concretamente, dos 4,7 bilhões de pessoas. No Brasil os 3.390 mais ricos (0.0016%) detêm 16% de toda a riqueza do país, mais do que 182 milhões de brasileiros (85% da população).

 A mesma fonte nos afirma que a cada cinco segundos, uma criança com menos de dez anos morre de fome ou de suas consequências  mais imediatas. Quem não se comove, em sua humanidade mínima, com tais cenas dramáticas, verdadeiras tragédias humanas? Parece que tocamos nos limites do final dos tempos. São cenas que poderiam estar no livro do Apocalipse.

Para entender a crise atual, devemos retroceder ao século XVII/XVIII com o advento do paradigma da modernidade os pais fundadores, Francis Bacon e especialmente René Descartes e outros romperam com uma larga tradição da humanidade. Esta entendia a natureza, a Terra e o próprio cosmos como algo vivo  e carregado de propósito.

. A Terra e a natureza só tem algum sentido na medida em que se ordenam ao ser humano que as trata ao seu bel-prazer. Essa concepção materialista do mundo não humano abriu espaço para todo tipo de uso e abuso e da própria  investigação científica, sem qualquer preocupação ética das consequências que daí se poderiam derivar.

Face à voracidade do sistema mundial de exploração/devastação da natureza, a Terra viva reagiu de várias formas: com eventos extremos, com a liberação de vírus, alguns misteriosos, o vírus X, dez vezes mais letais que o Coronavírus, cobrindo toda o planeta. Tornou obsoletos os limites entre as nações e afetou perigosamente a  inteira humanidade.

Ultimamente a mudança climática parece ter alcançado um ponto irreversível. A Terra mudou devido às práticas irresponsáveis (antropoceno) dos que detém as decisões políticas, controlam o curso mundial dos capitais e das finanças e persistem na devastação da natureza. Seria injusto atribuir simplesmente essa mudança climática à atividade das grandes maiorias empobrecidas que, comparadas com as citadas, pouco contribuem. Estamos mundialmente assistindo os efeitos deletérios dessas mudanças: os eventos extremos. A ciência e a técnica não poderão mais reverter esta mutação, apenas advertir da chegada dos eventos ameaçadores (enchentes, vendavais, tsunamis, estiagens prolongadas e aterradoras nevascas) e minorar seus efeitos danosos.

Agora podemos responder: por que chegamos aonde chegamos? Porque já há três séculos, os países dominantes,  situados no Norte Global, decidiram habitar desta forma perigosa e devastadora a única Casa Comum que temos. Impuseram a todo mundo seu modo de viver, de produzir, de concorrer e de consumir. Não somos vistos como cidadãos mas com clientes e consumidores.

Agora chegamos ao momento em que, devido ao acúmulo de crises planetárias e à nossa capacidade de nos autodestruir com armas atômicas atingimos um ponto em que o retorno se torna praticamente impossível. A seguir o caminho inaugurado há séculos, estamos a caminho de nossa própria sepultura.

Concordo com o velho Martin Heidegger: “Só um Deus nos poderá salvar”.


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

RACISMO AMBIENTAL.


 A injustiça ambiental no Brasil tem cor e a opressão e exploração do capital tem um alvo bem definido.


Quando o reverendo protestante e ativista afro-americano, Benjamin Franklin Chavis Jr, que foi secretário de Martin Luther Kink durante a luta pelos direitos civis dos negros nos USA, cunhou a expressão “racismo ambiental”, ele denunciava que a degradação ambiental tinha um alvo preferencial, que era a população negra norte-americana, negligenciada pela falta de investimentos em saneamento básico nas regiões onde eram maioria. Essas áreas também eram utilizadas para despejos de resíduos tóxicos e nocivos à saúde daquela população. Quando falamos em grilagem ou exploração ilegal de terras indígenas, por exemplo, também estamos falando de racismo ambiental. A omissão do Estado diante do aumento das comunidades em regiões periféricas e a sua ausência administrativa frente a construção de casas em área de risco, também é racismo ambiental, pois ignora as consequências que tais edificações podem trazer ao meio-ambiente e às pessoas que nelas irão habitar.


Observemos com atenção qual a cor predominante das pessoas que aparecem nas imagens, praticamente submersas, sendo arrastadas pelas águas das chuvas ou desabrigadas após uma enchente no Rio de Janeiro. A explicação é simples e continua sendo reflexo da política escravocrata que aqui vigorou por quase quatro séculos, culminando com um pós-abolição onde os africanos escravizados tiveram que se abrigar em regiões precárias e distantes dos grandes centros, por não ter havido uma política de reparação aos danos sociais e humanos que a escravização lhes causou. É inegável que algumas comunidades sofrem mais com a crise climática do que outras, e os impactos dos desastres ambientais provocados por essas mudanças acabam pesando sobre elas. Qual o número de desabrigados em Copacabana, Leblon e adjacências, em comparação com bairros da Zona Norte e Baixada Fluminense? Quantos moradores ou lojistas das ruas da zona sul carioca perderam seus móveis ou tiveram suas propriedades invadidas pelas enchentes?

Ainda sob a égide das causas naturais, os danos ambientais são desiguais entre as classes. Algo que escracha a desigualdade socioambiental e racial na estrutura do país. Quando as escolas municipais e colégios estaduais das zonas mais pobres e periféricas das cidades deixam de receber investimentos do Estado, provocando um sucateamento proposital na educação pública dessas localidades, isso é racismo ambiental. Basta observarmos a diferença de tratamento destinado às escolas públicas situadas em áreas mais nobres. O mesmo vale para hospitais e outros serviços públicos que funcionam melhor em regiões onde o IPTU é mais alto. Quantas ruas sem asfalto temos na Zona Leste de São Paulo e quantas temos em Alphaville? Quantos postes sem lâmpadas temos em Nova Iguaçu e quantos temos em Ipanema? Quantos aterros sanitários ou indústrias poluentes temos em São Conrado e quantos tempos em Queimados? Como a Polícia trata os moradores dos jardins e como ela trata os moradores da periferia?


Enquanto deveriam estar preocupados com o número de desabrigados em função das fortes chuvas, muitos estão preocupados em questionar a existência do racismo ambiental na sociedade ou classificá-lo como mais uma forma de vitimismo identitário. Precisamos debater certas questões de modo mais sério, abrindo mão da infantilidade ideológica que a quinta série deixou em nossa capacidade de interpretar textos e respeitando os fatos que estão bem diante dos nossos olhos. A injustiça ambiental no Brasil tem cor e a opressão e exploração do capital tem um alvo bem definido. É importante demarcar essa questão para que não caiamos no mito da democracia racial (e também ambiental) que visa esconder a natureza do racismo produzido no país. É preciso também falar do processo de gentrificação de alguns bairros e localidades urbanas, de onde as populações pretas e indígenas são retiradas para que o branqueamento da área a torne mais valorizada. O racismo ambiental é mais uma maldita herança do colonialismo nesse país estruturalmente racista.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

NÃO PODEMOS PERDER A ESPERANÇA.

 

A razão moderna se mostrou irracional ao construir o princípio de autodescrição. As próprias religiões, fontes naturais de sentido, participam da crise de nosso paradigma civilizacional e, em muitas delas, vige o fundamentalismo violento.

Em que se agarrar.? O espírito humano recusa o absurdo e sempre busca um sentido que torne a vida apetecida. Resta-nos um único sustentáculo: a esperança. Ela é como uma árvore: ela se verga mas não se quebra. Como nos foi mostrado antropologicamente, a esperança é mais que uma virtude ao lado das outras. Ela representa, independentemente do espaço e do tempo histórico, aquele motor interior que sem cessar nos faz projetar sonhos de dias melhores, utopias viáveis, caminhos ainda não andados que podem significar uma saída para um outro tipo de mundo.

É atribuída a Santo Agostinho, o maior gênio intelectual e cristão do Ocidente, africano do século V da era cristã, a seguinte afirmação que nos poderá, eventualmente, alentar:


Todo ser humano é habitado por três virtudes: a fé, o amor e a esperança. Diz o sábio: se perdemos a fé nem por isso morremos. Se fracassamos no amor, sempre podemos arranjar outro. O que não podemos é perder a esperança. Pois a alternativa à esperança é o suicídio por absoluta falta de sentido de viver.

Entretanto, a esperança possui duas formosas irmãs: a indignação e a coragem. Pela indignação rejeitamos tudo o que nos parece mau e perverso. Pela coragem, empenhamos todas as nossas forças para mudar  o que é ruim em bom e o que é perverso em benéfico.

Não temos outra alternativa senão nos enamorarmos destas duas formosas irmãs da esperança:  indignarmo-nos  e rejeitar firmemente esse tipo de mundo que impõe tantos sofrimentos à Mãe Terra a todos da humanidade e da natureza Se não podemos superá-lo pelo menos resistir a ele desmascarar sua desumanidade. E ter a coragem de abrir caminhos, sofrer pelo parto de algo novo e alternativo. E crer que a vida tem sentido e a ela cabe escrever a última página de nossa peregrinação por esta Terra.

Pense nisso enquanto de digo até o próximo texto.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

NATAL EM GAZA

Jesus nasce em Gaza e, agora, já não podem matá-lo, pois haverá de ressuscitar em cada criança, em cada jovem, em cada cidadão palestino  

Neste Natal, Jesus nasce em Gaza. Não na manjedoura exposta em um curral, mas entre escombros do que resta das moradias de seus habitantes. Não nasce cercado de animais, e sim de bombas detonadas, balas de fuzis Tavor Ctar atiradas contra a população civil (950 tiros por minuto), granadas e gases letais. E os voos assassinos dos caças F-35.


Jesus nasce e ignora que seus pais, que pretendiam se refugiar no Egito, foram atingidos mortalmente por uma chuva de bombas “bunker buster” jogadas pelas tropas israelenses.

Jesus e seus pais não encontraram acolhida em Belém. Tiveram que se abrigar em um curral. Do mesmo modo, famílias palestinas foram sumariamente expulsas de seus lares para dar lugar aos colonos sionistas que não reconhecem o direito de a nação palestina instituir o seu legítimo Estado. Escorraçadas, essas milhares de famílias foram confinadas nos estreitos limites de Gaza e da Cisjordânia, controladas por tropas israelenses como se fossem subumanas, sobrevivendo em condições análogas a campos de concentração a céu aberto.

Não há coro de anjos nem cânticos de glória a Deus, e sim o grito estridente de sirenas de alarme e o silvo aterrorizante de projéteis disparados pelos canhões mortíferos dos tanques Merkava.

Jesus nasceu sob o selo da discriminação: por ser palestino, por ser filho bastardo de um casal nazareno (tanto que José quis abandonar Maria ao sabê-la grávida), por ser um sem-teto, por sua família ter ocupado a terra de uma chácara em Belém, por ser considerado blasfemo e usurpador do título de Filho de Deus.

mais uma vez, é rechaçado em sua própria terra. Se seus conterrâneos são impedidos de formar seu Estado, qualquer ação de autodefesa que desencadeiem será qualificada de “terrorista”. Epíteto que jamais explodiu, em Jerusalém, o Hotel King David e matou 91 pessoas. Nem quando mais de 200 mil pessoas, todas inocentes, foram cruelmente assassinadas no maior atentado terrorista de todos os tempos – as bombas atômicas atiradas pelo governo dos EUA sobre as populações civis de Hiroshima e Nagasaki.
 A grande mídia utilizou quando Menachem Begin, em 22 de julho de 1946, Sim, o Hamas rompeu a linha da “guerra justa” ao sequestrar mais de 200 pessoas, a maioria delas civis. Mas quem reage às “detenções administrativas” feitas pelo governo de Israel e que mantém nas prisões cerca de cinco mil pessoas sem acusações formais?

Jesus nasce em Gaza e, agora, já não podem matá-lo, pois haverá de ressuscitar em cada criança, em cada jovem, em cada cidadão palestino consciente de que a terra das vinhas e das oliveiras guarda em seu solo as cinzas de seus mais longínquos ancestrais.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A ESPERANÇA ESPERANTE.

 



Ocorre um fenômeno que nos fez colocar a questão : será que  nos não estamos acercando de nosso próprio fim? Alguns notáveis biólogos como A.Meredith e a própria Lyn Margulis, pensam que o recente e fantástico sucesso do ser humano no povoamento do planeta não passaria de “um fenômeno de ocaso”, quer dizer, do grande jogo de luzes antes do inevitável fim do espetáculo. A expansão populacional nos faz, realmente, pensar.

Somente em 1800 chegamos a um bilhão de pessoas; em 1930 já éramos 2 bilhões; em 1974 alcançamos a cifra de 4 bilhões; em 1987 éramos 5 bilhões; em 1999 emergimos como 7 bilhões e em 2022,finalmente chegamos a 8 bilhões de pessoas.

Se bem observarmos há um crescimento exponencial. Comenta Margulis, uma das maiores especialistas em microbiologia:”De acordo com dados históricos sabe-se que as espécies se reproduzem frequentemente com considerável profusão momentos antes de se extinguirem”(Microcosmos,p.213). Outro grande cientista John R.Plat comenta: Ficamos atemorizados quando observamos estes exemplos de aceleração evolutiva”(The Acceleration of Evolution,em The Futurist,1981).

O argumento que mais me convence e funda minha hipótese (não é mais que hipótese) de que nosso fim não está distante é fornecido pela própria Margulis. Ela usa o exemplo do que ocorre com os micro-organismos colocados dentro da cápsula de Petri. Cito: “A cápsula de Petri são placas redondas dotadas de alimento transparente que permite ao investigador ver as colônias bacterianas sob a forma de pontos mesmo a olho nu. Alimentados com nutrientes os micróbios revelam-se quase sempre muito prolíficos…Ao esgotarem todas as substâncias nutritivas e ao atingirem as bordas da placa de  Petri, os múltiplos bilhões de bactérias deixam de se desenvolver e de súbito morrem por falta de alimento e de espaço vital. Para a humanidade, o mundo pode mostrar-se idêntico a uma cápsula de Petri”(p.214).

Em outras palavras, os organismos da ONU tem mostrado anualmente a Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot). Chegamos a ela neste ano de 2023, no dia 22 de julho. Isto quer dizer: constatou-se o esgotamento dos nutrientes essenciais que a Terra nos fornece para garantir a continuidade da vida. Como, particularmente os países ricos, não diminuem seu suntuoso consumo, a Terra viva não pode mais dar o que não tem. Então responde com mais aquecimento global, mais eventos extremos, mais vírus letais e outros fenômenos que podem colocar o futuro da vida humana e da natureza em situação de dissolução e até desaparecimento. O citado cientista Plat estima que a vida na Terra se avizinha de sua maior viragem depois de 4 bilhões de anos de existência. Não há consciência coletiva acerca deste risco na população, nem nos “decisions makers” nem nos chefes de Estado.

Todos os anos milhares de espécies vivas desaparecem depois de permanecerem por milhões de anos sobre o nosso planeta. Chegando ao seu clímax desaparecem para dar lugar a outras. Pergunto: será que não chegou a nossa vez de desaparecer deste planeta? A Terra continuará pacificamente girando ao redor do sol. Mas sem nós.

Não desejaria que o prognóstico de um dos últimos grandes naturalistas Jacob Monod chegasse a se realizar. Em seu livro “E se a aventura humana viesse a falhar”(2000) observa: ”somos capazes de uma conduta insensata e demente. A partir de agora se pode temer tudo, realmente tudo, inclusive a aniquilação da espécie humana. Seria o justo preço de nossas loucuras e de nossas crueldades”(p.246). Com esperança confiamos que ainda daremos um salto em nossa consciência, despertaremos, mudaremos de rumo e assim salvaremos a vida, nossas culturas e nosso futuro. É a esperança esperante.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A VOZ DO BEM.

É preciso, ecoar de onde nascem os sentimentos, palavras que possam devolver a esperança, restaurar os relacionamentos, produzir entendimentos, especialmente quando há grande urgência em refazer escolhas nos âmbitos pessoal, familiar, político, religioso e econômico também. Refazer escolhas norteadas pela voz do coração emoldurada pela claridade da razão, o que nos impede de perder o rumo, o sentido do viver – para não cair no ardil existencial de desistir do dom da vida. Ou, ainda, viver o dom da vida desconsiderando toda grandeza que o viver carrega em si. Deixar falar a voz do coração, assim nos lembra a poesia da canção, indica ser oportuno e urgente priorizar “a voz do bem” ante os cenários e a avalanche de “falas” facilitados, sobretudo, pela velocidade das redes sociais.

O bem traz intrinsecamente no seu âmago a verdade que liberta e corrige, denuncia e anuncia, com propriedades que passam longe dos destemperos patológicos multiplicados por interesses de todo o tipo, fazendo do falar uma ancoragem perigosa e perversa que jamais conseguirá atingir a mais importante propriedade da palavra, a geração de entendimentos, próprio da demanda de tecer relacionamentos que promovam a paz.

A avalanche de crises, em curso no conjunto da grande mudança civilizatória envolvendo a humanidade neste momento, aponta grandes e complexas transformações impedindo a voz do bem. É assustadora a dimensão de hostilidade dos discursos, não só político, mas também o religioso, promotor de lutas fratricidas e demolidoras de reputações, com grosserias e manipulações lesivas, produzindo na vivência religiosa tudo o que se pode imaginar, menos a promoção da voz do bem. De modo semelhante se cultiva uma odiosidade na política e na religião, desvirtuando-a dos pilares de suma importância na construção da história e, particularmente, neste momento de transição civilizatória, com reconstruções a se operar, recuperação de perdas em tempo e em vidas, consideradas as suas etapas todas.

Não deixar falar a voz do coração, componente intrínseco do viver humano, está empurrando a sociedade ao precipício do ódio. Deixar falar a voz do coração é um chamado que perdeu o rumo e precisa ser recuperado com o exercício primeiro de deixar falar a voz do bem. Deixar falar a voz do bem é compromisso e garantia da possibilidade de se produzir uma profecia indispensável na construção de uma sociedade justa e solidária. Diminuta, tem se configurado a possibilidade de avanços civilizatórios, por causa do ódio que se propaga e dissemina a desestabilização das instituições, para tomar seu lugar com ilusória proposta. Caminho sem factibilidade enquanto resposta às demandas e urgências para qualificadas correções de rumos, claridade nas escolhas e balizamentos humanísticos que impulsionem, urgentemente, a humanidade à condição de, ao menos, administrar melhor o conjunto de crises que a destroem. E, assim, desenhar por este humilde passo a passo um novo tempo, usufruindo de condições propícias advindas das conquistas tecnológicas e avanços científicos. Compreende-se, pois, as multiplicadas inadequações no mundo da política e no interno da vivência religiosa, agravadas por misturas, ora inconsequentes e inconscientes, ora perversas e calculadas.

O momento atual, caracterizado por crises sobre os ombros arqueados da humanidade, precisa ser vivido e entendido com uma lucidez que permita aprendizagem e possa exercitar a resiliência fazendo nascer modos novos nos modelos de sociedade, pautada pelo falar a voz do bem, longe de ataques figadais e demolidores, nos trilhos da fraternidade universal e da solidariedade. Uma outra lógica de funcionamento, com força de superação de divisões odiosas, dando lugar à nobreza da igualdade fraterna, superando desigualdades sociais e raciais, pondo fim aos cenários vergonhosos e inaceitáveis de discriminações, violências e homicídios.

Deixar falar a voz do bem, sem dissimulação ou conivências, dizendo a verdade, é caminho fecundo na produção de entendimentos lúcidos que possam fazer ver o despropósito produzido por ódios políticos e religiosos. A voz do bem é remédio terapêutico para recuperar a voz do coração, desmontando manipulações ilegítimas para articular em riqueza as diferenças, iluminando escolhas inadiáveis para produzir entendimentos indispensáveis de processos e mecanismos que libertem a sociedade dos artífices do mal, em razão de conveniências, de submissão ou de lucros a todo preço.

 Uma súplica: Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz; onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver discórdia que eu leve a união, onde houver dúvidas que eu leve a fé; onde houver erro que eu leve a verdade; onde houver ofensa que eu leve o perdão; onde houver desespero que eu leve a esperança, onde houver tristeza, que eu leve alegria, onde houver trevas, que eu leve a luz. Deixar falar a voz do bem.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

O QUE É O TEMPO?


Meus caros jovens,

Considerem a vida, o valor supremo, acima do qual só há o Gerador de toda vida, aquele Ser que faz ser todos os seres. Os cientistas, especialmente o maior deles que se ocupou do tema da vida, o russo-belga I.Prigogine afirmou: podemos conhecer as condições físico-químico-geológicas que permitiram o irromper a vida há 3,8 bilhões de anos. O que ela seja, no entanto, permance um mistério.

Mas podemos seguramente dizer que o sentido da vida é viver, simplesmente viver, mesmo na mais humílima condição. Viver é realizar, a cada momento, a celebração desse evento misterioso do universo que pulsa em nós e quiçá em muitas olutras partes do universo.

A vida é sempre uma vida com e uma vida para. Vida com outras vidas, com vidas humanas, com vidas da natureza e com vidas que por acaso existirem no universo e que um dia puderem se comunicar conosco. E vida para dar-se e unir-se a outras vidas para que a vida continue vida e sempre se perpetue.

Mas a vida é tomada por uma pulsão interior que não pode ser freada. A vida quer irradiar, se expandir e se encontrar com outras vidas. A vida é só vida quando é vida com e vida para.

Sem o com e sem o para a vida não existiria como vida assim como a conhecemos, envolta em redes de relações includentes e para todos os lados.

A pulsão irrefreável da vida faz com que ela não queira só isso e aquilo. Quer tudo. Quer até a Totalidade, quer o Infinito. No fundo, a vida quer ser eterna.

Ela carrega dentro de si um projeto infinito. Este projeto infinito a torna feliz e infeliz. Feliz porque encontra, ama e celebra outras vidas e tudo o que está ao seu redor, mas é infeliz porque tudo o que encontra, ama e celebra é finito, lentamente se desgasta, cai sob o poder da entropia e acaba desaparecendo. Apesar dessa finitude em nada enfraquece a pulsão pelo Infinito e pelo Eterno.

Ao encontrar esse Infinito repousa, experimenta uma plenitude que ninguém lhe pode dar, mas que só ela pode desfrutar e celebrar. O infinito em nós é o eco de um Infinito maior que sempre nos chama e nos convoca.

A vida é inteira, mas incompleta. É inteira porque dentro dela está tudo: o real e o potencial. Mas é incompleta porque o potencial ainda não se fez real. E como o potencial é ilimitado, o nosso tipo limitado de vida não comporta o ilimitado. Por isso nunca se faz completa para sempre. Permanece como abertura e espera para uma completude que quer e deve, um dia, acontecer. É um vazio que reclama ser plenificado. Caso contrário a vida não teria sentido.Como disse alguém: “a vida é oceânica demais para caber num doutrina petrificada no tempo”. Não seria a morte o momento de encontro do finito com o Infinito?

Eis que com a vida, surge o tempo. Que é o tempo? O tempo é a espera daquilo que pode vir a acontecer. Essa espera é a nossa abertura, capaz de acolher o que pode vir, fazer-nos mais inteiros e menos incompletos.

Viva intensamente cada momento do tempo! O passado já não existe porque passou, o futuro não existe porque ainda não veio. Só existe o presente. Viva-o com absoluta intensidade, valorize cada momento, ele traz o futuro para o presente e enriquece o passado.

Cada momento é a irrupção do eterno. Só pode ser vivido. Não pode ser apreendido, aprisionado e apropriado. Só ele é. Um dia foi (o passado) e um dia será (o futuro). Do tempo nós só conhecemos o passado. O futuro nos é inacessível porque ainda não é. Nós, no entanto, vivemos o “é” do presente que nunca nos é concedido prendê-lo.Ele simplesmente passa por nós e se vai. Ele possui a natureza da eternidade que é um permanente “é” O tempo assim significa a presença fugaz da eternidade. Nós estamos imersos na eternidade.

Viva esse “é” como se fosse o primeiro e o último. Assim você mesmo se eterniza. E eternizando-se participa Daquele que sempre é sem passado nem futuro. Um é eterno.

Podemos falar do tempo, mas ele é impensável. Esse é eterno está vinculado ao que as tradições espirituais e religiosas da humanidade designaram como Mistério, Tao, Shiva, Alá, Olorum, Javé, Deus, nomes que não cabem em nenhum dicionário e estão para além de nosso entendimento. Diante dele afogam-se as palavras. Só o nobre silêncio é digno.

Mesmo assim cada um deve dar-lhe o nome que é o nome de sua participação nEle e de sua total abertura a Ele. Esse nome fica inscrito em todo o seu ser temporal, mas principalmente pulsa em seu coração. Então o seu coração e o coração dAquele que eternamente é, formam um só e imenso coração

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

ESCRAVIDÃO NÃO ACABOU. RACISMO EXISTE.




O primeiro objetivo da criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, foi eliminar todas as formas de trabalho escravo. Mais de cem anos depois, escravizar pessoas continua um negócio altamente lucrativo. A própria OIT estima em 40,3 milhões de pessoas submetidas ao trabalho escravo no mundo.

No Brasil, seriam 400 mil pessoas. O trabalho em regime de escravidão foi oficialmente abolido em 1888. Quatro séculos de escravidão deixaram marcas profundas. Não se restringe aos africanos e indígenas, mas afeta brancos pobres, imigrantes, mulheres e até crianças.

O fim da CLT deixa o trabalhador às portas do trabalho escravo. A reforma trabalhista de 2017, a crescente desigualdade e a pobreza que atinge 4 em cada 10 brasileiros, o descaso do governo que reduziu o auxílio emergencial aos mais pobres, deixou vulnerável boa parte da população.

Alto nível de analfabetismo e o baixo índice de desenvolvimento humano caracterizam as regiões da maioria dos trabalhadores escravizados. A miséria se traduz numa enorme quantidade de pessoas que, de tão pobres, se tornam vulneráveis à escravidão. Diante da fome os invisíveis aceitam qualquer serviço.

No Brasil a prática do trabalho escravo é criminalizada pelo Código Penal desde 1940. Mas a impunidade tem sido o maior entrave no combate a este crime. O Brasil, condenado em 2016 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) por tolerar a escravidão (Fazenda Brasil Verde/1989), começou 2022 regatando 271 trabalhadores rurais submetidos ao trabalho escravo em 3 fazendas do Vale do Paranaíba (MG). Eram do norte e nordeste do país. É a luta por sobrevivência.

A primeira denúncia de trabalho escravo foi feita em 1971, por Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia. Somente em 1995 o Brasil reconheceu diante da ONU a existência do trabalho escravo. Desde então, quase 60 mil pessoas foram resgatadas, mais de 2 mil pessoas/ano.

Operações da Polícia Federal contra trabalho escravo cresceram 470% em 2021, ano em que o Brasil resgatou 1.937 pessoas em situação de escravidão. 89% em atividades rurais. O número é o maior desde 2013. 90% dos resgatados eram homens e 80% se autodeclararam negros. A escravidão não perdeu a cor! Apesar da lei Áurea de 1888 homens, mulheres e crianças brasileiras ainda são submetidos ao trabalho escravo. Em Minas Gerais 99 operações resgataram 768 trabalhadores, entre eles duas crianças e uma adolescente. As verbas indenizatórias também foram as maiores desembolsadas pelos ditos empregadores, R$ 10.229.489,83.

O trabalho doméstico as vezes serve de camuflagem do trabalho escravo. “Mulher é resgatada da casa de pastor após 32 anos de trabalho escravo e abusos sexuais”.

Em 2021 foram resgatadas 27 vítimas, contra apenas três em 2020. O número de denúncias aumentou. Segundo o IBGE, dos 6,2 milhões de brasileiros que se dedicam a serviços domésticos, apenas 28% têm carteira assinada. 92% são mulheres, entre elas, 68% são negras. Em 2013, a PEC das Domésticas estabeleceu direitos trabalhistas aos trabalhadores domésticos. O único a votar contra foi o deputado Jair Bolsonaro.

Tratar seres humanos como escravos aparece como opção barata para aumentar as margens de lucro. Desesperados, os trabalhadores são coagidos a aceitar condições de trabalho indecentes em troca de salários de fome. A juventude da periferia, as mulheres e os negros são os mais afetados. Para maioria, a inserção no mercado de trabalho é um sonho distante.

Quando os direitos humanos são violados, as pessoas são tratadas como ferramentas descartáveis por empresários que só querem ganhar dinheiro. As vítimas do trabalho escravo sofrem todo tipo de violação dos direitos humanos.

Crime. Monstruosidade. Pecado. Escravizar pessoas é crime de lesa humanidade, uma agressão ao próprio Deus. Cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus e deve ser tratada com amor e respeito. Quem ama a Deus deve lutar contra a opressão.

O problema não é impossível de ser resolvido. Os governos devem fazer mais, e a sociedade deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para acabar com a escravidão moderna. “É importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem” (Papa Francisco).

Os cristãos, o que fazem para combater o trabalho escravo? Denunciam? Ou são indiferentes. Ou covardes? A omissão é pecado. O compromisso de erradicar todas as formas de escravidão deve ser de todos. “A Igreja deve se comprometer nessa tarefa […]. “Que haja trabalho para todos, e trabalho digno, não de escravo” (Papa Francisco).

Não normalizemos a barbárie. São tempos de violência. Moise Kabagambe, jovem negro trabalhador foi espancado até a morte por reivindicar seu salário atrasado.

Élio Gasda – Dom Total