terça-feira, 31 de agosto de 2021

10 MENSAGEM DOS INDIOS AO BRASIL E AO MUNDO.

Eis o que nos diz a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Abip

1) A história dos povos indígenas do Brasil não começa em 1500, nem em 1988

Os povos originários chegaram a esta terra antes mesmo de essa noção de tempo ser inventada. Nós somos herdeiros dos primeiros pés que pisaram nessa terra, e nosso tempo não pode ser medido ou determinado popovosor relógios e calendários que tentam ignorar nossa trajetória ancestral.

2) Nossas terras são nossas vidas, não fonte de lucro

Diferente da forma como os latifundiários, grileiros e exploradores lidam com a terra que eles usurparam e destruíram, nós, povos indígenas, temos uma relação profunda, espiritual e ancestral com nossa terra. Sem terra não há vida, para nós. Nós não exploramos nosso território para lucrar, mas para nos alimentar, manter nossa cultura e preservar nossas tradições e espiritualidade.

3) Nós guardamos as florestas e isso faz bem para todo mundo

Os povos indígenas foram reconhecidos em mais de uma ocasião como os melhores guardiões das florestas. Nossos territórios são preservados. Onde há terra indígena, a floresta permanece em pé, a água pura, a fauna viva. E isso beneficia todo o mundo, principalmente quando as crises climática e ambiental ameaçam a própria sobrevivência da humanidade.

4) Nossa diversidade e nossa ancestralidade nos unem

Os inimigos dos povos indígenas tentam a todo custo construir rupturas e oposições artificiais entre nós. Eles não sabem, no entanto, que nossa ancestralidade é mais forte e mais potente do que qualquer divisão que eles possam tentar nos impor.

5) A maior parte das terras está nas mãos dos latifundiários – e eles as estão destruindo!

O argumento de que existe “muita terra para pouco índio” já se mostrou falacioso mais de uma vez. Na verdade, a maior parte das terras no Brasil já é dedicada à agricultura. Uma parcela reduzida é de terras indígenas, mas as que foram homologadas estão bem preservadas!

6) Nossa luta também é pelo futuro da humanidade

Nós povos indígenas temos uma cultura de alteridade e acolhimento. Nossa luta por nossas terras é também pela preservação ambiental. Temos plena consciência de nosso papel de protetores das florestas e da biodiversidade e estamos dispostos a compartilhar nossos conhecimentos para o bem de todos.

7) Nós indígenas lutamos por nossas vidas há 521, e isso é sinal de que algo está muito errado

Desde que nossas terras foram invadidas, temos de lutar diariamente por sobreviver: às doenças trazidas de fora – como o Covid-19, que matou mais de 1,1 mil parentes, contra o genocídio, contra os ataques. Ainda hoje temos de lutar por nossas vidas, e isso quer dizer que para muita gente, nossas vidas não importam. Isso precisa acabar imediatamente!

8) Nós temos um projeto de mundo e queremos ser ouvidos!

Nós acumulamos tecnologias de produção milenares e isso nos dá condições de pensar um projeto de sociedade sem desigualdades, baseada no bem-viver, no cuidado com a terra e na livre convivência entre os povos. Nosso projeto garante alimento sem veneno, produz sem devastar. E o mundo precisa de um projeto como esse para nos salvar da destruição!

9) Nós estamos aqui e aqui permaneceremos

Sobrevivemos ao ataque colonial, sobrevivemos ao genocídio, sobrevivemos às doenças. Nosso povo é resiliente, e mesmo nas piores condições, soubemos nos proteger e seguir vivos. Permaneceremos vivos e lutando por nossos direitos, e esperamos que cada vez mais o mundo compreenda que nossas vidas importam, e que os povos indígenas querem e precisam e demandam uma vida plena e em paz!

10) O Brasil é terra indígena! A Mãe do Brasil é indígena!

Há 521 anos tentam apagar a ancestralidade indígena desta terra que chamaram de Brasil. Nós pisamos nesse chão antes de todos. Nós cuidamos desse chão, nós moldamos essas florestas, nós cultuamos a ancestralidade milenar desse território. E por mais que tentem esconder, nunca conseguirão, pois somos muitos, e somos fortes e temos orgulho de nossa história!

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

REFLETINDO SOBRE O SALMO 23

Nestes tempos sombrios sob a ação perigosa do Covid-19 um manto de temor e de angústia se estende sobre nossas vidas. Vivemos cansados existencialmente, pelas pessoas queridas que perdemos, pelas ameaças de sermos contaminados e ainda mais por não entrevermos quando tudo isso vai acabar. O que virá depois?

Um israelita piedoso passou pela mesma angústia e nos deixou  a sua situação no famoso salmo 23: ”O Senhor é meu pastor e nada me falta”. Nele há um verso que vem a calhar exatamente para a nossa situação: ”Ainda que devesse passar pelo vale da morte, nada temerei porque tu vais comigo”.

Morte biblicamente, deve ser entendida não apenas como o fim da vida, mas existencialmente como a experiência de crises profundas como grave risco de vida, perseguição feroz de inimigos, humilhação, exclusão e solidão devastadora. Fala-se então, de descer aos infernos da condição humana.

Quando se reza no credo cristão que Jesus desceu aos infernos se quer expressar que ele conheceu a solidão extrema e o absoluto abandono, até por parte de seu Pai. Ele passou, efetivamente, pelo vale da sombra de morte, pelo inferno da condição humana. É consolador, então, ouvir a palavra do Bom Pastor: ”não temas eu estou contigo”.

Nosso grande romancista João Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas bem observou: “viver é perigoso”. Sentimo-nos expulsos do jardim do Éden. Estamos sempre buscando construir um paraíso possível. Vivemos fazendo travessias arriscadas. Ameaças nos espreitam por todos os lados. E nesse momento com o vírus, como nunca antes.

Por mais que nos esforcemos e as sociedades para isso se organizem, nunca podemos controlar todos os fatores de risco. O Covid-19 nos mostrou a imprevisibilidade e a nossa vulnerabilidade Por isso, é dramática e, por vezes trágica, a travessia humana. No termo, quando se trata de assegurar nossa vida, somos forçados a nos confiar, além da medicina e da técnica, a um Maior que pode levar-nos ”a pastagens verdejantes e à fontes tranquilas”, ao Deus-Bom-Pastor. Essa entrega supera a desesperança.

Alarguemos um pouco o horizonte: grande dramaticidade pesa sobre o futuro da vida e da biosfera. Milhares de espécies estão desparecendo por causa da cobiça e da incúria humana. O aquecimento crescente do Planeta unido à escassez de água potável pode nos confrontar com uma crise dramática de alimentação. Milhões poderão se deslocar em busca da sobrevivência ameaçando o já frágil equilíbrio político e social das nações.

Aqui cabe invocar de novo o Pastor do universo, Aquele que tem poder sobre o curso dos tempos e dos climas para que crie situações oportunas e suscite o sentido da solidariedade e da responsabilidade nos povos e nos chefes de Estado.

Hoje o que destrói nossa alegria de viver é o medo. É consequência de um tipo de sociedade que se construiu nos últimos séculos assentada sobre a competição e não sobre a cooperação, sobre a vontade acumulação de bens materiais, o consumismo e sobre o uso da violência como forma de resolver os problemas pessoais e sociais.

O cuidado é também o antecipador prévio dos comportamentos para que seus efeitos sejam bons e fortaleçam a convivência.

Desta forma, nossa vida pessoal ganha certa leveza e conserva, mesmo no meio de riscos e ameaças, serena jovialidade ao sentirmos que jamais estamos sós. Deus caminha em nosso próprio caminhar como o Bom Pastor que cuida para que “nada nos falte”.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

TEMOS QUE OUVIR O GRITO DA TERRA.


Na segunda-feira, 9 de agosto, a ONU publicou o relatório do grupo de peritos formado por 234 cientistas internacionais sobre a realidade da crise ecológica na Terra. De fato, a destruição das condições de vida no planeta avança de forma assustadora. O aquecimento global que já era previsto e esperado alcançou níveis que os cientistas calculavam que não viriam antes de dez anos. Essa realidade já provoca inundações maiores do que as de sempre. Em algumas regiões se traduzirá em secas e outras tragédias ambientais, com intensidade e frequência, como nunca tinham ocorrido. Esse desequilíbrio climático e geológico trará consequências trágicas para as populações, principalmente as mais pobres e vulneráveis.

Pela primeira vez, os cientistas asseguram que tal situação é provocada, em sua maior parte, pela ação humana e pelo modelo de desenvolvimento predatório que ainda prevalece em todos os continentes do mundo. Alguns cientistas ao estudar as eras geológicas, chamam a atual de antropoceno para designar a era na qual a sociedade humana se tornou responsável pela destruição da Terra e pela ameaça que isso significa para toda a vida no planeta.

Desde alguns anos, especialistas da ONU começaram a falar em um dia da sobrecarga da Terra. Esta data marca o momento no qual o nosso consumo anual de serviços e recursos naturais ultrapassa o que a Terra pode regenerar naquele mesmo ano. Essa data que em anos anteriores se colocava em setembro e depois em agosto, neste ano de 2021, conforme os estudiosos, já se deu no dia 29 de julho.

Infelizmente, a imprensa que publica datas que comemoram as mais diversas categorias profissionais e valoriza muitas atividades humanas, não divulga suficientemente o que esta data significa e assim não toma consciência da responsabilidade social nessa sobrecarga da Terra. A coisa certa para todos nós é que tudo isso terá imensa e imediata repercussão no Brasil (Cf. O Estado de São Paulo, 10 de agosto de 2021).

Os governos dos países ricos estão dispostos a tomar alguma medida que possa aliviar ou ao menos adiar um pouco a crise. No entanto, há um limite: essas medidas não podem e não devem afetar o sistema capitalista do qual eles dependem. Ora, cada vez mais, analistas e cientistas percebem que todo esforço para deter as mudanças climáticas que ameaçam o planeta será inútil, se a humanidade não for capaz de superar a economia capitalista que é essencialmente depredadora em função da acumulação de riquezas para uma ínfima minoria de bilionários que dominam o mundo.

sábado, 21 de agosto de 2021

O QUE TEM0S EM COMUM

É notório que há no Brasil um clima de ódio e discórdia, agudizado pela atual disputa eleitoral. Não participo dele. Situações de vida me ensinaram a não ter ódio de ninguém nem somatizar conjunturas políticas. Meditação e oração são meus antídotos.

É óbvio, há pessoas das quais prefiro não ser amigo. Não por querer mal a elas, e sim por discordar radicalmente de suas ideias, que contrariam os princípios que norteiam a minha vida. Isso torna o diálogo quase impossível. E não sou de bater boca. Só lamento o sofrimento que causam quando as teses que defendem são levadas à prática. Como é o caso do racismo, da homofobia, do machismo, da arrogância e da opressão.

Evito também quem naturaliza a desigualdade social e defende estruturas sociais e leis que aprofundam o aviltante abismo entre os pouco ricos e os muito pobres.

Repito, não trago em mim sentimento de raiva ou ódio por qualquer pessoa. Nem a quem repudio, como os torturadores e assassinos dos anos  da ditadura militar.

Isso não me faz melhor do que ninguém. A vida me ensinou que ódio é um veneno que se toma esperando que o outro morra. Portanto, não abro mão deste bem que me é tão precioso e constitui a razão de minha felicidade: a paz de espírito.

Demônios não trafegam em meu mundo interior. Mantenho relações de amizade com amplo espectro de pessoas de diferentes ideologias, religiões e condições sociais. Todos sabem exatamente o que penso, quem sou, o que faço. Pela simples razão de  expor o que penso nos inúmeros artigos que produzo.

Para manter contato com pessoas tão díspares há que reconhecer a importância da virtude da tolerância. Nunca fecho as portas à possibilidade de uma boa amizade. Aliás, condição primeira para ser feliz, frisou o velho Aristóteles há 24 séculos. Sustento-me nas relações de amizade. Quase todas, aliás, parceiras. Porque além da amizade que nos aproxima, com a maioria compartilho projetos e ideais comuns, sejam militantes que lutam por terra e teto, seja gente muito rica.

Portanto, não incorporo a crise brasileira. Conheço suas causas, e não é o acúmulo de emoções que apontará soluções. Considero perda de tempo as discussões virtuais. Uso moderadamente as redes digitais e jamais polemizo com quem me acessa.  Uso parcimoniosamente o Twitter e o WhatSapp. E não gosto de falar ao telefone. Nele sou telegráfico. Jamais o ocupo por mais de dois minutos.

Esta a minha postura nesse conflituoso mapa da diminuta parcela da sociedade brasileira mergulhada nas turbulências desse tempo de intrigas. Diminuta porque há milhões de pessoas que não estão nem aí, não acessam redes digitais, e se encontram muito ocupadas em lutar pela sobrevivência, cuidar dos filhos, de suas lavouras e de seus negócios, levantar cedo para enfrentar dura jornada de trabalho. Não figuram entre os que formam (ou deformam) isso que se denomina “opinião pública”.

Em resumo, a vida é mesmo conturbada. Todos nós, humanos, somos tributários das espécies que nos precederam na escala evolutiva, como os répteis egocentrados. Há, contudo, o esforço civilizado de nos descentrarmos e enxergar o próximo. Sem buscar nele a nossa imagem e semelhança, como se fosse espelho de nosso olhar narcísico. A boa democracia, tão apregoada e pouco praticada, exige que não se converta a diferença em divergência.

O que temos em comum é o que todos almejamos amar e ser amados. A essa experiência denomino Deus. Quase todos concordam comigo, exceto em um detalhe: Deus quer ser amado naqueles que Ele criou à sua imagem e semelhança, incluídos indígenas, negros, gays e empobrecidos.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

INVESTIR NA FAMÍLIA

 O contexto familiar é escola onde se deve aprender a ternura que inscreve, em cada pessoa, o sentido da vida, dom inviolável. A ternura ultrapassa simples consideração melosa. Estrutura a conduta social na lei do amor e capacita cada ser humano para ser um dom na vida de seu semelhante. A missão que Jesus confiou a seus discípulos se efetiva no testemunho de pais e mães que, no dia a dia, permanecem fiéis ao mandamento maior, a vivência do amor, oferecendo as suas vidas pela família. Deste amor brotam a misericórdia e o perdão. O resultado é a fecundação do indispensável tempero da ternura, com a sua luz própria, direcionando corações para o rumo certo. Assim, reconhece-se um Evangelho da família, com capítulos que alicerçam dinâmicas qualificadas no amor. A ternura do abraço guarda, pois, um potencial estruturante – oferece à interioridade o equilíbrio nas relações interpessoais, configurando-as na modulação do amor.

O remédio da ternura leva à cura das dores do cansaço e das feridas, conforme ensina a família de Nazaré – oportuno se lembrar daquele doloroso episódio, a violência praticada pela arbitrariedade de Herodes. A ternura da Sagrada Família projetou luzes nas sombras da perseguição que ainda hoje envolvem tantas pessoas – o sofrimento das famílias de refugiados e dos descartados da sociedade. Há, pois, um Evangelho da família, que deve emoldurar a experiência de cada pessoa, garantindo laços de fraternidade. A família educa para a abertura ao outro, uma grande escola da fé, da liberdade e da convivência humana. Trata-se de uma escola indispensável. Sua ausência representa grande lacuna, que prejudica competências humanas tão necessárias para o bem viver.

A experiência da fraternidade na família possibilita o aprendizado sobre a necessidade do cuidado com o semelhante, desenvolvendo, ao mesmo tempo, o gosto por conseguir ajudar alguém e a humildade para, em momento de necessidade, não recusar a ajuda oferecida. O Evangelho da família inclui o cultivo da solicitude, da paciência e do carinho, possibilitando chegar ao princípio cristão determinante: o outro, para além de sua condição e das suas circunstâncias, é sempre mais importante. Torna-se, pois, evidente que nenhuma experiência pode substituir a singularidade da família com o seu Evangelho. No contexto familiar tem-se a oportunidade de crescer entre irmãos, uns cuidando dos outros, ajudando e sendo ajudados. Essa experiência forte da irmandade, embora com fadigas e desafios, capacita o ser humano para a sociabilidade, alicerçando a configuração das relações político-sociais. O círculo pequeno formado pelos cônjuges e seus filhos se alarga em uma grande família, possibilitando uma comunhão sempre mais profunda.

A ternura do abraço é muito mais do que uma simples situação de aconchego envolvendo pais e filhos. Trata-se de lição que amadurece o ser humano na experiência insubstituível da reciprocidade. Permite desenvolver a competência para o exercício da solidariedade, se sacrificando pelo bem do próximo, vencendo a mesquinhez. Quando não se aprende a reciprocidade carrega-se o peso do isolamento, do egoísmo, da inabilidade para seguir princípios morais. Reciprocidade não se aprende conceitualmente, mas a partir de vivências, particularmente aquelas que caracterizam a vida em família. Investir na família é, assim, imprescindível, oferecendo as condições materiais e humanas, espirituais e morais para que todos tenham a oportunidade de alicerçar a vida na rocha invencível do amor – experimentado na fé e na grandeza da alma, na ternura do abraço.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

CUIDAR UM DO OUTRO.




Quem vive os valores da justiça, da solidariedade, da compaixão e do cuidado de uns para com os outros incluindo a natureza está mais próximo de Deus do que aquele piedoso que frequenta a igreja, faz suas rezas e comunga mas que passa ao largo dos pobres que encontra na rua.

O presidente norte-americano Busch Jr usava frequentemente Deus bem como Bin Laden. Em nome de seu Deus fizeram guerras e promoveram atentados aterradores. Era um Deus belicoso, inimigo da vida e impiedoso destruidor de inteiras cidades com inumeráveis vítimas, particularmente inocentes crianças.

Entre nós o presidente Jair Bolsonaro coloca Deus acima de tudo, mas nega-o praticamente a todo momento com ódio aos negros, aos quilombolas aos indígenas, aos homoafetivos e a seus adversários políticos que os transforma não em adversários mas em inimigos a quem se deve perseguir e difamar. Acostumou-se à mentira direta, ao fake news a ponto de nunca sabermos quando diz a verdade o simplesmente diz mais uma mentira.

O mais grave, entretanto, que o Deus que continuamente tem em seus lábios não o moveu a um gesto de solidariedade às milhares de famílias que choram seus entes queridos, parentes e amigos. Nunca visitou um hospital para ver a dramática situação da falta de oxigênio e a morte por sufocamento de centenas de pessoas como ocorreu em Amazonas. Se pelo menos fizesse uma obra de misericórdia que é visitar os enfermos. Sua prática nega Deus e o torna um ateu prático, antiético e perverso.

O ódio que destila, a falta de qualquer respeito e veneração face à sacralidade da vida incorpora traços que as Escrituras atribuem ao anti-Cristo. É próprio do anti-Cristo usar o nome de Deus e de Jesus para enganar e seduzir as pessoas para o caminho da perversidade. Marca do anti-Cristo é seu desprezo pela vida e sua pulsão pela morte.

Mas esse Deus é um ídolo porque não é possível que o Deus vivo e verdadeiro queira o que ele quer. O ateísmo ético tem razão ao negar esse tipo de religião com o seu Deus que justificou outrora as cruzadas, a caça às bruxas, a inquisição, o colonialismo, a Shoah judaica e atualmente o genocídio provocado pelo Covid-19, particularmente entre os indígenas e os pobres sem proteção nas grandes periferias das cidades.

É possível ainda crer em Deus num mundo que manipula Deus para atender a interesses perversos do poder? Sim, é possível, à condição de sermos ateus de muitas imagens de Deus que conflitam com o Deus da experiência dos praticantes religiosos sinceros e consequentes e dos puros de coração.

Então a questão hoje é: Como falar de Deus, sem passar pela religião? Porque falar religiosamente como Jair Bolsonaro e antes Bin Laden e Busch falaram é blasfemar Deus.

Mas podemos falar secularmente de Deus sem referir seu nome. Como bem dizia o grande profeta já falecido Dom Casaldáliga: se um opressor diz Deus eu lhe digo justiça, paz e amor, pois estes são os verdadeiros nomes de Deus que ele nega. Se o opressor disser justiça, paz e amor eu lhe digo Deus pois sua justiça, paz e amor são falsos.

É uma força misteriosa que está em nós mas que é também maior que nós. Nós não a possuímos, é ela que nos possui. Estamos à mercê dela. O entusiasmo é isso, o Deus interior. Vivendo o entusiasmo, neste sentido radical, estamos vivenciando a realidade daquilo que chamamos Deus.

Essa representação é aceitável porque Deus se tornou íntimo e dentro de nós, embora também sempre para além de nós. Bem dizia Rumi, o maior místico do Islã: “Quem ama a Deus, não tem nenhuma religião, a não ser Deus mesmo”. Deus mesmo não tem religião.

Nestes tempos de idolatria oficial há que se resgatar este sentido originário e existencial de Deus. Seu nome é amor, é justiça, é solidariedade, é gratuidade, é capacidade de renunciar para o bem do outro, é ter compaixão e infinita misericórdia. Quem vive nesta atmosfera de valores, está mergulhado em Deus. Somos habitados pelo Deus interior através do entusiasmo que confere sentido às nossas lutas.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A ÉTICA DA SITUAÇÃO.

 

A concepção de pecado atrelada a uma visão individua­lista, aliada a um moralismo desencarnado e a uma casuística policialesca, foi objeto da mais severa repulsa de Jesus. Os escribas e fariseus pagavam religiosamente os impostos previstos. Não tocavam nos objetos considerados impuros. Prescreviam a pena de morte para a mulher adúltera. No entanto, transgre­diam os pontos mais importantes da lei: a justiça, a miseri­córdia e a fidelidade (Mateus 23, 23).

Por sua atitude amorosa, Jesus desafiava todos os falsos moralismos. Para os judeus, a mulher era um ser inferior ao homem, os samaritanos eram tidos como hereges e as prostitutas, apedrejadas em público. Mas, à beira do poço de Jacó, Jesus se abriu em longa conversa com uma mulher samaritana que já havia vivido com cinco maridos! (João 4, 1‑42).

Na tentativa de fugir a essa casuística que, por tanto tempo, perturbou mentes delicadas e escrupulosas, os tratados de moral passaram a abordar a questão do pecado segundo a concepção conhecida por “ética de situação”. Os atos da pessoa deixam de ser tomados isoladamente. Considera‑se agora o contexto em que ela vive, sua história pessoal, os fatores que a induziram a fazer isto ou aquilo, as consequências para si e para os outros. Um mesmo ato pode ser praticado por diferentes pessoas sem que, necessariamente, tenha o mesmo peso moral. Não se parte do ato em si, como se objetivamente ele fosse “bom” ou “mau”, mas da situação concreta em que a pessoa foi levada a praticá‑lo.

Nos últimos anos, a psicologia e as demais ciências que tratam da mente e do espírito humanos passaram a ter influência decisiva na noção de pecado. Podemos considerá‑lo como um ato livre e consciente, praticado por uma pessoa responsável, em ofensa a Deus e ao próximo. Ou mesmo à natureza.

Mas, quem é essa pessoa? A liberdade não é algo que a pessoa conquista ao completar 7, 14 ou 21 anos. Nenhuma idade, nem a da razão, determina o momento a partir do qual a pessoa se torna um ser plenamente responsável por todos os seus atos. A vida é um aprendizado de liberdade. É sempre inacabado, pois a pessoa vive também presa aos mecanismos de seu inconsciente, aos fatores biogenéticos de seu desenvolvimento, aos determinismos fisiológicos, psicológicos e sociais, dos quais nem tem consciência, porém moldam a sua maneira de pensar e viver.

As ciências que têm por objeto a psique humana vieram em socorro da teologia moral apontar, lá no fundo do nosso inconsciente, a complexidade do ser humano. Essa complexidade não pode, contudo, ser justificada, em última instância, por fatores meramente psicológicos.

Experiências realizadas em hospitais psiquiátricos revelam que muitos desequilíbrios biopsíquicos têm sua origem nos desequilíbrios da própria ordem social. Quando um sistema social determina a discriminação entre os seus membros, fundada no antagonismo entre as classes, cria‑se um consenso – para o qual não faltam “bases científicas” – de que certos elementos são irremediavelmente desajustados e irrecuperáveis: os criminosos, os psicopatas, os homossexuais, os esquizofrênicos, as prostitutas, os neuróticos, os agressivos, os depressivos, enfim, todo o conjunto de “loucos” condenados a viver marginalizados e desprezados.

Isso ocorre em menor escala, mas na mesma proporção discriminatória, entre os membros de uma família ou de um grupo específico que avaliam o comportamento de seus integrantes segundo o modelo ideologicamente padronizado adotado. Qualquer um que não se enquadre nesse modelo corre o risco de ser obrigado a suportá‑lo ao preço de graves conflitos internos e de tornar‑se suspeito de, no mínimo, estar doente. Assim, será convidado a submeter‑se a um tratamento para curar‑se de seus “desequilíbrios” e de suas “neuroses”, a fim de readaptar‑se ao modelo que dita as regras de convívio e relacionamento entre os demais.

Mas para Jesus essa gente “diferente” são os filhos e filhas preferidos de Deus. E devem ser amados assim como são amados por Deus.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

TUDO MUDOU COM O COVID

 

Com o avanço da vacinação no Brasil, mesmo que ainda muito lento, algumas pessoas têm retomado sua rotina. Mas, tanto entre aqueles que ainda estão em casa, como os que já saem para trabalhar, e também aqueles que nunca puderam ficar em casa, há um consenso: ninguém está como antes. Isso porque todos parecem ter um sentimento de tristeza, um nó na garganta por tudo que viram e vivem nestes tempos. Muitas pesquisas já têm apontado e quantificado esses sentimentos na população, como a realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da qual participou a professora Celia Szwarcwald. Para ela, há múltiplos fatores para o entristecimento. “Em primeiro lugar, as incertezas sobre a doença, a perda e o medo de perder pessoas queridas pela Covid-19”, destaca.

Porém, há ainda outros fatores que têm impactado a saúde mental, como o isolamento e outros que ainda parecem perdurar. “Citamos as perdas de trabalho, emprego e rendimento familiar, o que trouxe, além dos problemas emocionais, questões relacionadas à insegurança sobre o sustento da família, incluindo a insegurança alimentar”, acrescenta a doutora em Saúde Pública pela Fiocruz.

Ou seja, significa que de um modo ou outro, essa tristeza e seus impactos na saúde mental têm atravessado as mais variadas classes sociais e pessoas das mais distintas idades. “Os adolescentes foram os que mais sofreram durante a pandemia. Com a falta da escola e as restrições dos espaços físicos para esportes coletivos, os adolescentes perderam as oportunidades de se socializarem com os amigos e professores”, exemplifica.

Já entre os mais velhos, além da solidão, há casos em que membros da família têm de largar o trabalho em atenção aos idosos. “Familiares, filhos e netos acabaram se distanciando dos idosos, como medida de proteção, o que trouxe muita solidão e tristeza. Por outro lado, familiares tiveram que cuidar de idosos com dificuldades nas atividades de vida diária, com sobrecarga de trabalho nessas famílias e mudanças importantes na vida das pessoas”, afirma a especialista em Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde.

No entanto, se nesse ponto o impacto na saúde mental é horizontal e ataca a todos, os acessos a diagnósticos e tratamentos adequados revelam mais uma face das desigualdades no Brasil. Como aponta Celia, muitas pessoas nem conseguem perceber seu próprio adoecimento. “A manifestação dos problemas de saúde mental pode ocorrer de forma diferente entre as pessoas. Por exemplo, as mulheres relatam mais os problemas do que os homens, mas os homens reagem mais frequentemente com atitudes de irritabilidade, agressão e violência, mais difíceis de entender como problemas emocionais”, observa.

Além disso, há um grande preconceito quando se fala em problemas de depressão e tristeza nos mais pobres, como se não tivessem motivos e direito de adoecerem. Por isso, além de enfrentar o preconceito, é preciso assegurar o acesso a atendimentos. “Pessoas de todos os estratos sociais relataram problemas emocionais durante a pandemia. O que ocorre é menos acesso ao diagnóstico de doenças mentais na população em desvantagem social”, resume.