terça-feira, 30 de abril de 2019

QUEREM ACABAR COM A FILOSOFIA?


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Querem acabar com a filosofia. Muito bem: acabarão com a veterinária. Acabarão com a engenharia. Acabarão com a medicina. Acabarão com a história e a sociologia, e levarão todo o resto a rodo. É muito fácil entender por que acabar com a filosofia é acabar com o ensino. A epistemologia, que nada mais é que a parte da filosofia que se ocupa do método científico, está na base de qualquer conhecimento estruturado e metodológico, como é o caso da veterinária, da engenharia, da medicina, da história, da sociologia e da própria filosofia quando pensa sobre a sua própria forma de pensar o mundo. Pois é, sem filosofia não há conhecimento.

Sem filosofia, há versões, conversa fiada, interpretação. Há quem pense que assim tudo fica mais fácil, simples, descomplicado: não é preciso nem fazer o esforço de pensar! Basta emitir opiniões e gritar mais alto, caso alguém manifeste elucubração diferente: mas é isso que eu acho!

Sem filosofia, no entanto, prepare-se para dar adeus ao dentista: não adianta fazer sorriso amarelo. Sem filosofia, diga tchau às modernas técnicas de geolocalização. Desapegue-se da tecnologia. Mande às favas os sistemas hidráulicos. Ignore a pesquisa médica. Cultive o desinteresse pela segurança alimentar. Esqueça, enfim, tudo o que requeira método, processos, critérios, conclusões, análise, pressupostos, consequências, efeitos colaterais, riscos, prevenção de desastres. Coloque na conta novas tragédias, desabamentos e resignação diante dos acidentes evitáveis: sem epistemologia a ciência fica desprovida de métodos, somos entregues ao acaso.

E a história? Odeie. Odeie a literatura. Odeie a sociologia. Embora as ciências humanas exijam rigor epistemológico (portanto, filosófico), imagina-se que essas áreas do conhecimento valem-se apenas de filosofia (sic), como se esta palavra tivesse o significado de opinião geralmente contrária (o que quer que seja o contrário) ao que alguém considera absoluto, verdadeiro, imutável e incontestável. Por isso, a história e a sociologia podem, sim, ser odiadas: porque se valem da filosofia. E a filosofia deve ser banida. Não serve para nada.

Na verdade, quando o que nos resta é apenas o ódio, a filosofia já está morta e enterrada. Já estamos no domínio da irracionalidade, da falta de debate. O grito é o anúncio do soco e o soco precede o tiro. Sim, vamos acabar com a filosofia, vamos dar porte de armas para todo mundo. Abaixo a civilização!

Os que se dizem filósofos mas não conhecem a epistemologia mal sabem que ao demonizarem a filosofia não acabam apenas com a história, e portanto com a memória do passado, não apenas reduzem o pensamento humano à barbárie do intelecto e jogam-nos no deserto do tempo; não se resumem a anunciar a caverna do futuro como lugar distante da civilização. Os que não sabem o que é epistemologia também despedem-se do conhecimento científico, do progresso, da tecnologia e de tudo o que requer rigor, sistematicidade, previsibilidade, hipóteses, estudo: fazem isso sem saber que o fazem. Querem acabar com a filosofia: é um perigo! Muito bem!

Agora vejamos a biografia de Sócrates, a sua condenação e o que aconteceu com a sua filosofia ao longo dos séculos. Ah, querem acabar com a filos
ofia.

MEU MODO DE PENSAR

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Tem coisas que não sei se faço certo ou errado, mas simplesmente as faço. Faço num impulso, faço pensando, faço devagar, faço depressa. Elas nascem em mim de diversas maneiras, com as mais variadas construções.

Ao fazê-las, quero descobrir se devia ter dito ou feito. Também se fiz direito ou se poderia ter agido diferente. Recriminações internas ficam a borbulhar, atormentando meu ser. Me remetem ao desconforto de acreditar que existe um só certo e um só errado, e isso vem me confundir. Na procura desse certo/ errado me atrapalho e fico a me questionar.

A palavra que sai, o gesto que se efetua, o sentimento que fica... preciso encontrar maneiras de me acolher diante dessas imposições.

Aos poucos compreendo que naquele momento, ou seja, na hora da decisão fiz o que queria, ou deveria fazer, de acordo com minha construção até ali. Se é assim que enxergo, por que preciso constantemente me recriminar ou achar justificativas para o meu modo de pensar e agir?

Nesse sentido, me construo num fazer que é só meu, e assim me refaço constantemente, à procura do meu certo, do meu aperfeiçoar e do meu continuar...

domingo, 28 de abril de 2019

O DIREITO DE SONHAR

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Há mais de dez anos, Riccardo Petrella, pensador e sociólogo italiano, escreveu: “O direito de sonhar” (2004). Nesse livro, ele propunha “as opções econômicas e políticas possíveis para uma sociedade justa”. Denunciava a forma iníqua como, com a conivência dos meios de comunicação de massa e de muitos governos, a maior parte da humanidade se tornou prisioneira e refém dos bancos e dos banqueiros. Para mais de um bilhão de pessoas humanas, os grandes conglomerados financeiros internacionais agem como verdadeiros “ladrões de sonhos”. Organizam o mundo de forma que impede a maioria das pessoas de viver dignamente. Mesmo em países ainda considerados ricos como Alemanha e França, jovens com mais de 30 anos não podem casar, porque não têm emprego fixo e não conseguem sustentar uma casa. A maioria da população deve aceitar passivamente manter-se nos limites arriscados da mera sobrevivência, para que uma pequena elite se torne cada vez mais rica. Uma pesquisa recente mostrou: Na Itália, de cada três jovens, um está desempregado e sem esperança de conseguir emprego. Enquanto isso, apenas dez pessoas possuem atualmente uma renda equivalente a três milhões de italianos. Essa é a mesma lógica que faz com que, conforme dados da ONU, o Brasil seja o terceiro país no mundo em desigualdade social. Apenas cinco brasileiros detêm uma renda equivalente à metade da população brasileira.

O direito de sonhar implica na decisão de organizar uma sociedade mais justa e igualitária. Para isso, são necessárias opções econômicas e políticas diferentes e novas. Isso tem como base uma confiança que vem do coração humano e está ligada à fé. Para muitos, se trata de fé na vida, confiança na bondade fundamental do ser humano e alegria de ver que existem sinais de uma nova consciência de paz e comunhão de toda a humanidade e entre os seres humanos e a natureza.

A Bíblia diz que isso é o projeto divino para o mundo. É o Espírito quem move a humanidade nessa direção. Transforma o futuro em caminho real de um mundo novo de justiça e paz. Assim, o direito de sonhar não é apenas projeção dos desejos inconscientes. É missão de todas as pessoas famintas e sedentas de justiça. Ao lutar pacificamente para realizar esse sonho coletivo de paz e justiça, não estamos sozinhos. Conosco está Alguém que se manifesta em todo ato de amor e nos dá a força de tornar real a utopia de uma vida verdadeiramente realizada e feliz. Para sonhar e lutar por seu sonho, ninguém precisa ser Dom Quixote ou entoar a clássica canção da peça “O homem de la Mancha”, imortalizada no Brasil pela voz de Maria Bethânia: “Sonhar mais um sonho impossível; lutar, quando é fácil ceder; vencer o inimigo invencível, negar, quando a regra é vender...” Em Chiapas no México, há mais de 20 anos, as comunidades indígenas se rebelaram contra o Estado e proclamaram sua autonomia social e política. Os seus comandantes afirmavam: “Somos um exército de sonhadores. Por isso, somos invencíveis”.

sábado, 27 de abril de 2019

O LADO SAGRADO DAS COISAS

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Tudo que é sadio pode ficar doente. A doença sempre remete à saúde. Esta é a referência maior e funda a dimensão essencial da vida em sua normalidade.

As dilacerações sociais, as ondas de ódio, ofensas, insultos, palavras de baixo calão que estão dominando nas mídias sociais ou digitais e mesmo nos discursos públicos, revelam que a alma brasileira está enferma.

As mais altas instâncias de poder se comunicam com a população usando notícias falsas (fake news), mentiras diretas e imagens que se inscrevem no código da pornografia e da escatologia. Esta atitude revela a falta de decência e do sentido de dignidade e respeitabilidade, inerentes aos mais altos cargos de uma nação. No fundo, perdeu-se um valor essencial, o respeito a si e aos outros, marca imprescindível de uma sociedade civilizada.

A razão deste descaminho se deve ao fato de que a dimensão do Numinoso ficou obscurecida. O “Numinoso” (numen em latim é o lado sagrado das coisas) se revela através de experiências que nos envolvem totalmente e que conferem densidade à vida mesmo no meio dos maiores padecimentos. Ele possui um imenso poder transformador. A experiência entre duas pessoas que se amam e a paixão que as torna fascinantes, configuram uma experiência do Numinoso. O encontro profundo com uma pessoa que no meio de uma grave crise existencial nos acendeu uma luz, representa uma experiência do Numinoso. O choque existencial face a uma pessoa, portadora de carisma, por sua palavra convincente ou por suas ações corajosas, nos evoca a dimensão do Numinoso. A Presença inefável que se faz sentir face à grandeza  do universo ou de uma noite estrelada, suscita em nós o Numinoso. Igualmente os olhos brilhantes e profundos de um recém nascido.

O Numinoso não é uma coisa, mas a ressonância das coisas que tocam o profundo de nosso ser e que por isso se tornam preciosas. Transformam-se em símbolos que nos remetem a Algo para além delas mesmas. As coisas, além de serem o que são, transfiguram-se em realidades simbólicas, repletas de significações. Por um lado nos fascinam e atraem e por outro nos enchem de respeito e de veneração. Elas produzem em nós um novo estado de consciência e perfecionam nossos comportamentos.

Esse Numinoso, na linguagem dos místicos como do maior deles, o Mestre Eckhart ou de Teresa d’Ávila, bem como da psicologia do profundo à la C.G. Jung é representado pelo Sol interior ou pelo nosso Centro irradiador. O Sol possui a função de uma arquétipo central. Como o Sol atrai à sua órbita todos os planetas, assim o arquétipo-Sol sateliza ao seu redor as nossas significações mais profundas. Ele constitui o Centro vivo e irradiante de nossa interioridade. O Centro é um dado-síntese da totalidade de nossa vida que se impõe por si mesmo. Ele fala dentro de nós, nos adverte, nos apoia e como o Grande Ancião ou a Grande Anciã nos aconselha a seguir os caminhos mais certos. E então nunca seremos defraudados.

O ser humano pode fechar-se a este Centrou ou a este Sol. Pode até negá-los mas jamais pode aniquilá-los. Eles estão ai como uma realidade imanente à alma.

Esse Centro ou o seu arquéitipo, o Sol, nos conferem equilíbrio, harmonia pessoal e social e a convivência dos contrários sem se exacerbarem pela intolerância e pelos comportamentos de exclusão.

Ora, foi esse Centro que se perdeu na alma brasileira. Ofuscamos o Sol interior, apesar de ele, continuamente, estar aí presente, como o Cristo do Corcovado. Mesmo escondido por entre as nuvens, ele continua lá com os braços abertos. Assim o nosso Sol interior.

Ao perder nosso Centro e ao ofuscar a irradiação do Sol interior, perdemos o equilíbrio e a justa medida, bases de qualquer ética, da sociedade e de toda convivência. Desequilibrados, andamos errantes, pronunciando palavras desconectadas de toda civilidade e compostura. Apequenamo-nos e abandonamos a lei áurea de toda ética:”trate humanamente a todos e a cada um dos seres humanos.” Nesse momento no Brasil, muitos e muitos não tratam humanamente a seus semelhantes. De eventuais adversários no campo das ideias e das opções políticas ou sexuais são feitos inimigos a quem cabe combater e eventualmente exterminar.

Temos, urgentemente, que curar nossa alma ferida, resgatar nosso Centro e nosso Sol interior, mediante a acolhida das diferenças sem permitir que se tornem desigualdades, através do diálogo aberto, da empatia face aos que mais sofrem. Como dizia o perfil de uma mulher inteligente no twiter:”ao nos colocarmos no lugar do outro, fazemos do mundo (da sociedade) um lugar para todos”. Esta é nossa urgência, caso não quisermos conhecer a barbárie.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

ZELAR POR NOSSA CASA COMUM.

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À incompetência e à ineficácia humanas se junta, porém, outro fator, mais profundo e mais sério. Está na origem destes desastres naturais que constantemente ceifam vidas e encurtam a saúde do planeta. Trata-se da mudança climática, consequência de contínuas e cruéis agressões à Mãe Terra e ao meio ambiente. O aquecimento global decorrente deste estado de coisas faz com que o tempo fique mais quente e as águas do mar igualmente. Assim, quando alguma frente fria se encontra com esse calor maior provoca chuvas em volume superior ao que antes havia.

É a natureza mandando a conta e pedindo contas da irresponsabilidade com que vem sendo tratada ao longo de tanto tempo. Pressionada e sugada em seus recursos, responde com a incapacidade de gerir com suavidade e benevolência o ambiente onde vivem os seres todos e também os humanos. E o resultado é o que vemos: o aumento exponencial dos desastres naturais em paralelo com o crescimento de nosso despreparo para com eles lidar.

Há muitos anos esse estado de coisas vem preocupando intelectuais, estudiosos e ativistas no mundo inteiro. Documentos foram escritos, livros, artigos, bibliotecas inteiras. Encontros e congressos promovidos, suas resoluções publicadas e divulgadas. Há poucos anos atrás, uma voz se levantou para reforçar toda essa preocupação mundial e novamente chamar nossa atenção para o perigo em que estamos jogando o planeta.

A encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, é indubitavelmente um marco qualitativamente novo e de superior importância na história do Ensino Social da Igreja. Nela o pontífice alerta dramaticamente para o absurdo de se persistir com o estilo de vida consumista e predatório que destrói os recursos naturais e ameaça o futuro de todos os seres vivos no planeta.

Ao número 23 do documento, o Papa menciona o aquecimento climático como fonte de inúmeras desordens nocivas e mesmo letais para a sobrevivência na terra. "Há um consen­so científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o re­lacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular."

Aí estamos nós diante de acontecimentos meteorológicos extremos: inundações provocadas por chuvas que levantam asfalto, arrastam carros, deslizam encostas, soltam pedras, afogam vidas, esperanças e enlutam famílias. O Papa indica como agir, de nossa parte, para combater esse perigo: "A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam... numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros), emitidos sobretudo por causa da ativi­dade humana."

Acrescentaríamos na descrição dessa atividade humana tão prejudicial à vida nossos maus hábitos de poluir rios, tratar com descaso a seleção do lixo, consumir água para além do necessário, desmatar e destruir o verde etc. Se, por um lado, é legítimo reclamar das autoridades e denunciar sua incompetência, por outro é bom olhar para si mesmo e conscientizar-se de que uma parte da responsabilidade pelos constantes desastres ecológicos que nos acometem é nossa. Não temos sabido zelar pela casa comum, nossa mãe terra, na qual vivemos à graça da criação divina. Que essas chuvas e o rastro de dor que deixaram possam ser para nós impulso de conversão nessa louca caminhada consumista e predatória. 

terça-feira, 23 de abril de 2019

A IMPORTÂNCIA DO SER COMUM


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Tenho inesgotável admiração pelo ser humano comum. Celebridades, em geral, são previsíveis na sua agônica busca por se celebrizar sempre e mais. Já o ser humano comum, essa criatura que está começando mais uma semana plena de anonimato, pode ser uma permanente fonte de surpresas.

Um Neymar, por exemplo, quando está em campo, é certo que vai dar dois dribles espetaculares e cair. Fora de campo dirá ou fará, com certeza, alguma asneira que vai virar manchete ou meme no minuto seguinte.

A bancada BBB do mundo político (Bala, Boi e Bíblia), em especial nos tempos que vivemos, está repleto de celebridades instantâneas, pródigas em declarações nem tão célebres assim, mas igualmente previsíveis.

Já da boca daquele sujeito no ponto do ônibus, do taxista, do motorista de aplicativo, daquela moça que te atende no balcão da farmácia, na padaria, podem sair frases definitivas, dignas de um Sartre ou de uma Simone de Beauvoir.

Outro dia, na minha confraria do boteco, contava minha desdita em razão de um desarranjo intestinal provocado por um hot-dog consumido num “podrão da madrugada”. Mal engoli, senti como se uma granada tivesse caído no meu estômago. Pronto, cinco dias de carreirinha...

Meu amigo Marcha Lenta, taxista, pós doutor em volante e conversa fiada, pergunta: já melhorou? Ficou livre do desassossego? Respondi: tô melhorando. E ele encerrou a questão, pontificando: ‘um homem só será realmente livre quando puder peidar sem medo de se borrar’...

Com perdão da expressão chula que, pode ofender ouvidos e narinas mais sensíveis, nunca ouvi nada mais filosófico, luftalmente e gastrointestinalmente verdadeiro e profundo. E, em se tratando do assunto abordado, bota profundo nisso.

O ser humano comum é assim. Enquanto celebridades se ocupam em inventar coisas espalhafatosas, como o avião, o ser humano comum inventa o clips e mergulha no anonimato.

Até hoje há um debate candente entre americanos e boa parte do mundo sobre quem efetivamente fez o primeiro voo autônomo com o mais pesado que o ar, mas ninguém se interessa em saber quem inventou o ‘clips’. Nem eu. E esse pedacinho engenhoso de arame faz parte da vida de todo mundo, mesmo nesses tempos digitalizados em que o papel está entrando em extinção.

Nunca na vida serei capaz de sequer sonhar em ter um avião, mas clips? Aos montes.

O ser humano comum se ocupa das coisas simples que fazem parte do nosso dia a dia mais banal. Por isso, observador atento das coisas comezinhas, ele é capaz de produzir objetos, frases e reflexões formidáveis.

Já pensou, por exemplo, na capacidade de síntese da expressão, “mala sem alça”?

Primeiro você tem que se imaginar num aeroporto da era Lula. Filas imensas de gente tagarelando como se estivesse numa rodoviária, no exercício pleno da democracia social. Balcões de check-in lotados, parados, pois o sistema caiu, os pilotos em operação padrão e você puxando a mala do seu cunhado (que está no banheiro há meia hora), sem alça e com a rodinha travada (a mala, não o cunhado).

Pronto: tava inventado o epíteto perfeito pru seu cunhado (e pra todos os cunhados) folgado: mala sem alça! E ele estava ali, à sua frente (ou melhor, a seus pés) era só olhar e constatar.

O território literário perfeito para o ser humano comum é a crônica que, não por acaso, é considerada por muitos a prima pobre da literatura. Não acho. Enquanto o peso de obras clássicas enchem prateleiras, o cronista enche o cotidiano.

Aliás, penso que é observando o cotidiano mais chinfrim que o grande escritor se torna capaz de arriscar os grandes voos literários. Quem quer se enveredar e se encantar na densidade abissal das veredas do ‘Grande Sertão’, do Guimarães Rosa, precisa, antes, ler os contos de Sagarana.

Quem se delicia com as ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ ou compartilha as dúvidas de Bentinho com relação à Capitu, em Dom Casmurro, tem que arriscar um passeio pelas ‘Crônicas do Dr. Semana’, publicadas em jornais de 1864.

Mas, talvez, o ser humano ordinário, comum, tenha vislumbrado seu encontro mais profundo com o extraordinário através da Espiritualidade Inaciana, quando Inácio de Loyola, a partir de sua experiência místico/mundana, tirou Deus do céu longínquo, distante, inalcançável, e o colocou ‘no meio de nós’.

Na espiritualidade de mosteiro, que vigorava naqueles tempos (sec. XVI), o homem tinha que rejeitar o mundo, fugir do mundo com suas tentações para se encontrar com Deus. Inácio inverte o caminho. É Deus que vem até nós e se mistura conosco. Deus ama o mundo. Rejeitar o mundo é exilar-se de Deus. Na visão de Inácio, desde a encarnação, o mundo se faz altar. É no cotidiano comum que se celebra a vida.

O Deus terrível, assustador e vingativo, do mundo enciclopédico do Velho Testamento, ganha outro rosto e sentido nas crônicas dos evangelhos, dos atos dos apóstolos, das cartas paulinas.

Quer coisa mais banal que uma carta...???

Mas há um outro detalhe que desvenda e acrescenta mistérios aos já muitos mistérios da nossa fé: o ‘evangelho silencioso’, não escrito, da vida da Jesus.

Os evangelistas não são biógrafos. Infelizmente. Eles se restringem a narrar episódios que jogam luz à mensagem da Boa Nova, trazida por Jesus. Alguma coisa do seu nascimento, nada da sua infância, um episódio isolado na adolescência e um grande silêncio a partir daí. Só vamos reencontrar Jesus já adulto. Dos trinta e poucos anos de sua vida ‘encarnada’, cerca de trinta foram de absoluto anonimato, quando ele foi um homem absolutamente comum.

Quando mergulhou no que chamamos de vida pública, Jesus chamou para estar com ele os lideres e as celebridades do seu tempo? Não. Cercou-se de gente mais que comum; pescadores, cobradores de impostos, os desprezados e excluídos do seu tempo.



Tenho inesgotável admiração por um Deu
s assim, tão humano e comum...

segunda-feira, 22 de abril de 2019

ACALME O SEU CORAÇÃO.

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Alguém ouviu: Aguente firme!, vindo do outro lado do rádio, e num ímpeto as lágrimas resolveram aparecer em seu rosto. Era o conselho vindo aleatoriamente, não era para ele, mas servia-lhe naquele instante, providenciado de um longínquo espaço e com um profundo significado.

Aquelas palavras ditas eventualmente eram as que ele precisava ouvir. Que faziam sentido no que estava vivendo. Ele necessitava sintonizar-se com a ideia de se sentir forte para estar realmente fortalecido. Reconhecer-se como tal faria diferença na contradição de sentimentos e dificuldades pelas quais passava.

Em alguns momentos, tudo de que precisamos é alguém que nos diga: Aguente firme! Aguente a pressão, o não ter o que fazer com o que aconteceu, o não saber para onde ir, não saber o que falar, os olhares equivocados. Aguente seu olhar inocente, aguente a maldade alheia, aguente a atrapalhação do outro, aguente o distanciamento que se construiu.

Enfim, aguente sua dor e a não compreensão do outro. As aflições que fazem parte até que tudo se clarifique. 0 outro também talvez não saiba como lidar com a situação, e ao ouvir aguente firme nos apropriamos do momento difícil pelo qual estamos passando, nos fortalecendo diante das adversidades.

Alguém precisa olhar para sua dor, amparar seu íntimo, diluir a pressão que você vive e sente, nem que seja a voz anônima vinda de um lugar estranho.

Acalme seu coração, deixe eu segurar sua mão, mas enquanto isso aguente firme!

domingo, 21 de abril de 2019

O TROTE & FACKE NEWS

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Trote

- Alô. Podem mandar uma viatura aqui na rua Mendes de Oliveira. Tá tendo um assalto num bar, em frente ao número 475.

- Alô, é do Corpo de Bombeiros? Tá havendo um incêndio num prédio, na rua Sete Lagoas, no bairro Bonfim...

- Alô, tá tendo uma briga de gangues aqui na entrada do morro do Papagaio. Tiro prá todo lado...

O efeito trote.

Daniela Eduarda Alves, de 23 anos, foi morta a facadas pelo companheiro em Fazenda Rio Grande, Região Metropolitana de Curitiba. A Polícia Militar recebeu diversas chamadas de vizinhos, denunciando a agressão em andamento. A primeira viatura chegou ao local mais de uma hora depois do crime consumado. Os atendentes do 190 disseram que recebem muitas denúncias de briga entre marido e mulher, ocorrência que não é prioridade se comparada com outros crimes. Além do mais, grande parte dessas e de outras denúncias são trotes.

O trote vira Fake.

"Padre Anchieta, né? Massacre escolar agendado"!

A mensagem, acompanhada da foto de uma arma, circulou entre alunos e pais de diversos colégios do interior de São Paulo, no dia seguinte à chacina na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano. A suposta ameaça, é claro, causou pânico entre alunos, familiares e professores. Era Fake.

Fakenews vira tragédia.

Moradores de um bairro do Guarujá, SP, lincharam Fabiane Maria de Jesus, após boatos na internet de que havia uma mulher tentando roubar bebês que seriam usados em rituais de magia negra. Fabiane era deficiente, tinha dificuldades de comunicação e não conseguiu explicar que não era uma criminosa. Casada, mãe de uma criança de nove anos, foi espancada até a morte. As cenas do linchamento foram filmadas por inúmeros celulares e postadas nas redes sociais.

A morte em Rede

O assassino que, na semana passada, matou dezenas de pessoas em duas mesquitas, na Nova Zelândia, transmitiu sua loucura brutal pelo Facebook. Milhões de pessoas, no mundo inteiro, acompanharam, em tempo real, o que parecia ser um videogame. Era a morte, ao vivo...

Nosso mundo

Levantamentos feitos pela Polícia Militar e pelo Corpo de Bombeiros indicam que estudantes são os principais autores de trotes e Fakenews. Estatísticas mostram que grande parte das ligações e postagens coincide com o horário de saída das escolas. Os números são assustadores. De cada quatro ligações com denúncias ou chamadas de emergência, uma é trote. Já as Fakenews nem dá pra mensurar. Você, que lê agora esse texto, deve ter recebido várias, só hoje, sem nem saber.

Num país em que há mais celulares que habitantes - segundo Anatel o Brasil terminou dezembro de 2018 com 229,2 milhões de celulares - dá pra imaginar o dano potencial que essa prática pode gerar.

Danos.

As Redes Sociais facilitaram a comunicação direta entre as pessoas, democratizaram a informação, mas também abriram espaço pra muita merda.

Principalmente em campanhas eleitorais, são montados esquemas através dos quais são contratadas empresas especializadas em publicar notícias falsas na Rede, usando robôs. Um vale tudo em que vale a máxima malufista que diz: “em eleição, o feio é perder”.

Mesmo fora do universo político, as Fakenews proliferam feito erva daninha. A notícia falsa avulsa, postada via celular ou no computador, em casa, tem o mesmo potencial destrutivo, ou mais.

Efeitos colaterais

Todo dia tem alguém se informatizando, entrando pela primeira vez nesse cenário deslumbrante que é a Internet. E o novato deslumbrado, empolgado, capricha. E vamos todos ficando viralizados.

Quem repassa uma Fakenews pode não ter noção da gravidade desse gesto, que é neto do trote. Na maioria das vezes parece ser só uma brincadeira, uma piada inocente. É aí que está a ponta do iceberg, ou pior, da merda...

Antídoto

Tem antídoto pra essa praga? Sim.

Se você receber uma mensagem suspeita, não repasse, a não ser que tenha ABSOLUTA CERTEZA da veracidade do seu conteúdo. Se você não tem como comprovar a história, não confie nem na idoneidade de quem enviou. Pessoas honestas, respeitáveis, confiáveis também vão ao banheiro e, portanto, também fazem merda! Às vezes sem querer, mas fazem. Repassam bobagens e mentiras achando que estão ajudando a salvar o mundo. É a merda altruística.

Há sites na Rede onde é possível conferir a veracidade de informações. Quer conferir? É só clicar:

( https://www.techtudo.com.br/…/como-identificar-fake-news-oi… )

Concluindo, mas nem tanto...

Hoje, com o mundo vivendo em plena Idade Mídia, crianças, adolescentes e jovens têm capacidade de distinguir quando estão fazendo algo errado. Muito errado. Adultos, educadores, tem o papel insubstituível de mostrar que, via tecnologia, podemos até ter o mundo nas mãos, ao alcance de um click, mas o uso irresponsável desse poder pode ter consequências trágicas.

Trotes e Fakenews pertencem à mesma família de crimes. E matam! Esperanças, verdades e pessoas...


    sábado, 20 de abril de 2019

    UM POUCO DO DOMINGO DE PÁSCOA

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    A Páscoa é a principal festa das Igrejas cristãs: celebra a ressurreição de Jesus. Em sua origem, a grande festa judaica comemora a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, em 1250 a.C., sob o reinado do faraó Ramsés II. Curioso é que, ao contrário das religiões persas e mesopotâmicas, babilônicas e gregas, o judaísmo e o cristianismo não celebram mitos, e sim fatos históricos.
    Malgrado as obras de Feuerbach e Renan e, posteriormente, o rasteiro ateísmo stalinista, hoje nenhum historiador de respeito nega a existência histórica de Jesus, atestada por historiadores não cristãos que lhe foram contemporâneos, como Flávio Josefo e Tácito.
    Aliás, há mais documentos científicos sobre a existência de Jesus que de Sócrates, que só conhecemos via Platão. O que ultrapassa a historiografia é a crença em sua ressurreição, que pertence à esfera da fé.
    Os evangelhos registram a presença de Jesus em Jerusalém por ocasião das festas pascais. Foi numa delas, a do ano 30, que ele, preso por blasfêmia e subversão, recebeu a pena capital e morreu crucificado. Tinha 36 ou 37 anos de idade, pois hoje sabemos que o monge Dionísio, o Pequeno, se equivocou, no século VI, ao calcular o início de nossa era. Dionísio não conhecia o zero e está comprovado que Jesus já havia nascido quando Herodes morreu, no ano 4 antes de nossa era.
    A visão do tempo como processo histórico marca profundamente a nossa cultura. A Bíblia herdou-a dos persas e, assim, quebrou a circularidade grega. Três grandes pilares de nossos atuais paradigmas o demonstram: Jesus, Marx e Freud. Todos três judeus. Para Jesus, a nossa felicidade (salvação) decide-se por nossa capacidade de amar no terreno da história. O Reino de Deus não é algo “lá em cima”, mas sim lá na frente, no futuro onde a história atinge a sua plenitude, em um mundo livre de opressões, e também o seu limite, pela irrupção da presença divina entre nós.
    Um dos efeitos mais nefastos do neoliberalismo está condensado no famoso vaticínio de Fukuyama: “A história acabou”. É claro que o nipo-americano sabe muito bem que as empresas transnacionais não pensam em deter seu ganancioso processo de acumulação do capital e, portanto, sua história de cobiça e espoliação. O que ele pretende sugerir é que nós, pobres mortais, devemos, como diria Dante hoje, abandonar à porta do mercado toda esperança.
    A Páscoa cristã sinaliza que, malgrado tanta miséria e desesperança, em Cristo temos a certeza da vitória da justiça sobre a injustiça e da vida sobre a morte. Aceitar que “a história acabou” é cair no engodo da eternização do presente: a malhação que nos promete eterna juventude; o apego aos bens como se fôssemos imortais; a acumulação como se levássemos terras e tesouros para o além-túmulo; as drogas como sucedâneo diabólico de uma geração que não aprendeu a sonhar com Jesus, Gandhi, Luther King e Mandela.
    É isto que a Igreja celebra hoje: Cristo vive e sua vitória sobre os poderes deste mundo é a garantia de que os sonhos brotados do coração e da fé são sementes de “um novo céu e uma nova Terra”, como prenuncia o Apocalipse. E, como diz a canção, um sonho que muitos sonham se faz realidade.

    quinta-feira, 18 de abril de 2019

    REENCONTRAR O MEU TESOURO

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    Por muitos anos, a infância das minhas fantasias viveu numa casa que tinha um piso de tábuas largas, com fendas pelas quais costumavam cair para debaixo do assoalho, um espelhinho, um pente, uma moeda, um botão, um grampo, uma miçanga, mil coisas assim, que ficavam perdidas na escuridão do porão.

    Meninos curiosos como eu gostavam de deitar-se no chão e ficar olhando pelas frestas, perscrutando os mistérios que ali se escondiam. De vez em quando um raio de sol driblava cortinas e janelas fechadas e penetrava lá embaixo. Então, coisas esquecidas e perdidas cintilavam, misteriosas, convidativas, sugerindo que pequenos tesouros estavam à espera de quem tivesse coragem para buscá-los.

    Mas o porão era um lugar proibido às crianças, território perigoso, segundo minha avó, abrigo de insetos venenosos, cobras, dragões e fantasmas.

    Porém, um dia, uma pérola soltou-se de um pingente da minha mãe, resvalou numa fresta e caiu no porão. Tive, então, autorização para descer até lá, em busca da joia perdida.

    Foi difícil abrir o alçapão, emperrado pela ferrugem do tempo. Mas, depois de muito esforço, abriu-se a portinhola revelando uma velha escada.

    Desci, trêmulo, com o coração na boca e uma vela na mão...

    Aos poucos meus olhos se habituaram à escuridão e pude ver, ao rebrilhar fantasmagórico da vela, um mundo misterioso que, por anos, só podia vislumbrar pelas gretas do assoalho da minha imaginação.

    O coração aos saltos ia registrando a silhueta de coisinhas perdidas, agora reencontradas: uma bolinha de gude colorida, aquele alfinete dourado, uma medalha de São José, aquele botão de madrepérola, a pérola da minha mãe...

    Surpresas escondidas, acumuladas, camufladas, esquecidas por anos a fio e que a casualidade de uma joia perdida fizera redescobrir.

    Ao subir de volta, trazia comigo, além do orgulho da missão cumprida, muito mais que a pérola da minha mãe...

    Hoje, menino crescido, continuo olhando pelas frestas da vida como olhava os vãos do assoalho daquela casa da minha infância, cheio de frestas e promessas.

    Vislumbro, por vezes, o rebrilhar de alegrias e carinhos que julgava perdidos para sempre. Cintilam para mim, misteriosas e convidativas, as luzes de momentos de ternura que foram caindo pelas frestas dos dias, e se perdendo no fundo dos muitos porões do cotidiano.

    A gente costuma perder essas belezas delicadas, frágeis, pelo cansaço da rotina, o peso das obrigações que chegam com a vida, pelas decepções e fracassos que tiram de nós a disposição infantil de perscrutar mistérios.

    Por causa do adulto que nos tornamos, muitos tesouros acabam esquecidos nas frestas da infância do tempo.

    E aí, vem o mofo da acomodação, o bolor frio e cinzento dos medos, fazendo do coração um território perigosamente previsível, cheio de venenos, mágoas e rancores, onde fantasmas arrastam correntes e dragões cospem fogo queimando nossas esperanças.

    É preciso, às vezes, perder uma pérola...

    Buscar por ela pode nos fazer reencontrar nossos tesouros mais preciosos.

    A Espiritualidade me ensinou a abrir o alçapão da alma, por vezes enferrujado pela falta de uso, descer aos porões do meu espírito, pelos degraus do coração, vela na mão, olhos atentos ao rebrilhar das coisas e sentimentos perdidos, das saudades de mim mesmo.

    Naquilo que rebrilha, Deus fala...

    Desde então, cultivo o tempo de ouvir. Permito que o menino em mim espie por entre as tábuas do assoalho dos dias, redescobrindo com alegria, às vezes com sustos, pequenas coisas perdidas, indispensáveis ao tempo do amor, necessárias ao risco de viver a vida com seus desafios e exigências.

    O porão da memória, inesgotável reservatório de lembranças, minhas e de tantos, guarda tesouros dos quais não posso abrir mão, sob pena de passar a vida apenas olhando pelas frestas da mesmice, temeroso, frágil, impotente, apenas intuindo, paralisado, o rebrilhar de oportunidades e sentimentos perdidos, esquecidos, atrofiados.

    Aprendendo a ouvir um Deus que fala na memória do tempo, em busca de uma pérola perdida, tal como o mercador da parábola (Mateus 13, 45-46), um dia vou acabar reencontrando o meu maior tesouro: eu mesmo...

    NÃO É UMA TRAGÉDIA, É UM PLANO.


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    Não. O incêndio de Notre-Dame não pode ser comparado ao problema das mudanças climáticas. Não pode ser comparado à tragédia dos imigrantes mortos no Mediterrâneo. Não pode ser comparado à destruição voluntária de monumentos por motivos ideológicos, como vimos em Palmira e em Tombuctu anos atrás. Li nos jornais comparações desse tipo: as pessoas choram por Notre-Dame, mas não lamentam a destruição do meio ambiente. Está errado.

    Quando fazemos tais associações de ideias também provocamos um curto-circuito lógico: elas funcionam como figura de linguagem, como comparação, mas não podem ser afirmações a serem levadas ao pé da letra. Alimentar esses paralelismos é não apenas confundir as esferas, mas promover a linguagem seletiva, que no fim das contas acaba por nivelar ao mesmo patamar o que tentamos evidenciar.

    O incêndio de Notre-Dame, até prova contrária, é uma tragédia: haverá um evento que causou o fogo e que pode ser chamado de negligência, superficialidade, erro humano (toda tragédia começa com um erro humano - e trágico, pois quem comete o erro não tem consciência das consequências). Dificilmente irá emergir dessa história a mão sórdida de um piromaníaco ou de um terrorista que cometeu o gesto propositalmente.

    As mudanças climáticas são efeito do progresso industrial. É o efeito colateral das nossas comodidades. Como todo e qualquer problema, deve ser enfrentado e resolvido. Nada a ver com Notre-Dame.

    Os mortos no Mediterrâneo são vítimas da política do ódio, da hostilidade, do egoísmo econômico, do desejo de controlar as próprias populações infundindo o medo diante do estrangeiro e provocando deliberadamente a guerra entre os pobres para melhor governar a nossa pobreza. Divide e impera. Não é uma tragédia, é um plano.

    As destruições de Palmira e de Tombuctu foram crimes cometidos para destruir símbolos culturais e fragilizar os povos guardiães das tradições que aqueles lugares representavam. Não podem ser comparadas a Notre-Dame. A destruição da cultura pode ser uma tática de guerra, a exportação da cultura pode ser uma estratégia de domínio, a imposição da cultura pode ser um plano de controle, o uso da cultura pode ser um gesto de manipulação. O incêndio de Notre-Dame não tem nada a ver com isso.

    Notre-Dame tem a ver com a nossa capacidade de reconhecer o valor da cultura, de valorizar o papel da beleza, de perceber o significado histórico dos monumentos que tornam a vida de cada lugar e de cada sociedade um fato único e inigualável. Notre-Dame tem a ver com a nossa capacidade de se emocionar diante daquilo que destrói o nosso patrimônio comum. Enquanto pudermos chorar e lamentar a perda de um monumento, seja em Paris, seja na floresta amazônica, onde os cemitérios sagrados dos nossos índios estão sendo destruídos por catástrofes naturais e crimes ecológicos causados pela mão humana, bem, enquanto houver esse tipo de reação, podemos ter esperança no ser humano. Ser humano é ter desenvolvido uma linguagem complexa, simbólica, artística, cultural, é ter memória, é refletir de maneira coerente, estabelecendo relações plausíveis entre os elementos analisados. E é chorar, lamentar e perceber o significado da perda, da morte, bem como a importância da vida, do respeito, da verdade.

    terça-feira, 16 de abril de 2019

    QUEM NÃO ESTIVER EM PECADO ATIRE A PRIMEIRA PEDRA

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    Os fariseus e doutores da Lei trazem até Jesus uma mulher flagrada em adultério. Diferentemente do que se diz em muitos sermões, não se trata de uma prostituta, mas de uma mulher, casada, que traiu seu marido com outro homem. O detalhe da acusação é que os homens que trazem a mulher até Jesus viram, com os próprios olhos, a mulher adulterando. Por consequência, viram também o homem com o qual a mulher estava a adulterar. E, assim como prenderam a mulher e a levaram até Jesus, poderiam também ter apreendido o adúltero e tê-lo trazido até Jesus para ser apedrejado. Mas não! Eles trazem só a mulher... E a Lei de Moisés, no capítulo 20 do Livro do Levítico, mandava que o homem fosse apedrejado junto com a mulher. Dentro da mentalidade patriarcal e machista, era o homem o sujeito principal do adultério e ele deveria ser apedrejado por primeiro. A mulher devia ser apedrejada junto com ele. Mas por que apedrejar a mulher pelo simples fato de ter sido vítima do adultério?

    Jesus desmascara essa prática quando, depois de rabiscar sobre a areia num suspense sem fim para a mulher e para seus algozes, afirma calmamente: “quem não estiver em pecado, atire a primeira pedra”. Certamente passou pela cabeça dos presentes os muitos adultérios que cada um deles tinha praticado e que mereciam a morte antes mesmo da lapidação daquela mulher jogada ao chão no meio do círculo de mãos levantadas e armadas com 80 pedras. Ao assassinar aquela mulher – e Jesus com sua fala calma lhes aponta isso – eles não queriam primeiramente fazer justiça à mulher flagrada em adultério, mas apagar a memória viva de seus próprios adultérios. A vítima é perigosa porque lembra ao assassino de seu crime. É preciso eliminá-la porque sua presença fala por si mesma e é uma acusação contra os crimes daqueles que se pretendem inocentes.

    Pergunto-me na noite do Quinto Domingo de Quaresma: qual a razão que levou a um grupo de militares a assassinar, com 80 tiros, um pai de família que se dirigia, junto com sua esposa, seu sogro e seu filho, para um chá de bebê na favela de Guadalupe. Foi apenas um engano, como alegado imediatamente pelas autoridades? Um tiro por engano, até poderia ser. Dois ou três, ainda vai... Mas 80 tiros por engano? E ainda debochar da esposa que pede para que ajudem o marido que está a morrer? O que fazia com que esse homem se tornasse um possível suspeito para a polícia? Simples: ele era preto e estava num carro que não condizia com seu “lugar social”.

    No mesmo domingo, na mesma cidade do Rio de Janeiro, um jovem de 17 anos foi morto, a tiros, pelas costas, por policiais militares. E, se abrirmos os jornais e as páginas da internet, veremos isso a cada dia. E veremos mais: comandantes das polícias, governadores e até o Ministro da Justiça propondo a legalização e a despenalização dos assassinatos cometidos por policiais, mesmo quando os mortos são inocentes e em circunstâncias que não justificam tal violência. Tal “lei do abate” é apresentada como uma forma de defender os policiais e suas vidas. Se tal argumento tivesse base real, o Brasil não seria o país onde mais a polícia mata e onde mais policiais são mortos em serviço. Se a polícia matar os supostos bandidos fosse uma real solução, não haveria mais crimes no Brasil e nenhum policial mais seria morto. Infelizmente, no entanto, a realidade nos mostra que as coisas não são assim.

    Fica então a pergunta: a quem interessa tantas vítimas da violência, seja entre a população, seja entre os policiais? Seguindo a lógica da fala de Jesus, surge poderosa a suspeita de que a eliminação das vítimas – homens pretos das favelas e policiais na sua maioria também pretos - interessa apenas aos que produzem as vítimas: a pequena parcela da sociedade – os 5% que detém renda equivalente à soma dos outros 95% - que, para manter seus privilégios e requintes, precisa produzir milhões de empobrecidos e marginalizados e, para defender-se deles, necessita a força das armas e da polícia.

    É nesse contexto que a pergunta de Jesus é dirigida a cada um de nós: quem não participa ou não é conivente com essa situação de injustiça e violência da sociedade brasileira, que dê o primeiro tiro.

    segunda-feira, 15 de abril de 2019

    NÃO SOMOS PERFEITOS

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    Preado leitor: Assim é a escalada de quem deseja aprender. Devagar, mas seguro vai subindo degrau por degrau; aprendizado após aprendizado vão se estruturando nesse crescer.

    Ter coragem de entrar em contato com suas limitações e de se colocar como humano é o início desse verdadeiro avançar.

    Não somos perfeitos! Conseguir enxergar-se dessa maneira é o grande desafio para poder crescer. O questionamento “O que eu faço com isso?” é o caminho da continuidade desse crescimento; é o querer alcançar outros lugares, novos olhares.

    Ocasionalmente temos pressa demais. Queremos num salto ir de um estágio para outro, ou seja, do início ao fim da escada num só passo, suprimindo dificuldades e aprendizados. Partindo de uma ideia, ir à perfeição do projeto sonhado.

    Às vezes não é simples assim, o planejamento acontece e reacontece incansavelmente, até se transformar numa solução viável de ser empreendida. Outras ficam como projeto para sempre; incapazes de encontrar saídas permanecem como nunca concretizadas. Em outras ocasiões, transformam-se na firmeza de encontrar passos certos para o avanço, construindo um futuro.
    Seguir um passo de cada vez é, aos poucos, saber onde se está diante da fragilidade, e entendê-la como uma conhecida de tempos de outrora. Essa transformação vai acontecer se estivermos dispostos a enxergá-la e a aprender a ser feliz apesar dela.

    domingo, 14 de abril de 2019

    TEVE INÍCIO COM O MEU OLHAR.

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    Um dia um grande mestre que passou por mim disse que eu deveria me apaixonar por alguém, intensamente, ou pela vida, para dar conta das muitas coisas que eu precisaria realizar e que se revelariam. Na ingenuidade daquele momento não compreendi direito, mas isso pouco a pouco se desvendou diante de mim.

    Mesmo sem assimilar completamente o que ouvi, tamanha era minha confiança nele e no que ele estava dizendo que procurei olhar para tudo que me cercava com mais paixão, mais transborde, numa entrega sem igual.

    Mergulhei no meu ser e no universo que me cercava. Fui conquistando novos lugares e incríveis olhares dentro de mim, numa profunda riqueza.

    Me reapaixonei pelas pessoas que amo e isso fez nascer em mim uma nova forma de ser, de compartilhar com elas e de os enxergar. Isso foi fácil, elas já estavam no meu coração, precisava somente polir o amor que sentia e desacomodá-lo.

    E sim, me reapaixonei pela vida, e isso me alimentou e me alimentará até meu último instante, em todas as passagens, pelos ciclos dessa nova/velha vida que se iniciou pelo meu olhar.

    sexta-feira, 12 de abril de 2019

    DIFICULDADE SE VENCE COM SORRISO E FELICIDADE


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    A felicidade se parece com a inércia vegetal. Não podemos ser felizes com o instinto animal que se defende mostrando os dentes ou foge diante da ameaça. Não podemos ser felizes com a consciência humana dos nossos erros, dos nossos problemas e da nossa impotência. Não podemos ser felizes com a força incontrolável da natureza, que nos concede o bem como nos castiga sem piedade. Podemos aprender com a inércia das plantas: a felicidade é cíclica, hiberna, germina, explode em infinitas cores. Depois se recolhe novamente, apodrece, renasce.
    Contra a beleza da flor pode agir apenas a fúria do vento e a tesoura do jardineiro. Contra o perfume do alecrim pode agir apenas a seca implacável e os incêndios. A floresta pode ser atacada pela ganância humana e pelo desmatamento.
    Mas depois do temporal o verde retorna mais verde, as cores voltam a ser mais coloridas, os perfumes tornam-se mais intensos. Depois da destruição, as plantas são as primeiras a dar sinal de vida.
    É preciso um esforço metamórfico para encontrar dentro do nosso corpo o silêncio das plantas, que acolhe a tenacidade das raízes na terra escura. É preciso despojar-se das amarras intelectuais como as árvores que se despedem das folhas para chegar à essência e sobreviver ao inverno. É preciso esquecer a dor para recompor as marcas de agressão no tronco e fazer brotar novos ramos onde se buscava a ferida mortal. É preciso sentir o peito batendo, que significa vida, não alerta de morte. 
    É preciso viver a nossa natureza vegetal, essa sintonia que nos faz perceber que somos parte do ecossistema e não donos dele. É preciso agregar esses valores que aliviam o peso dos nossos equívocos e das nossas certezas. É preciso ter a humildade dos sistemas simples,  da beleza geométrica e frágil da flora. É preciso aprender a usar a bússola dos girassóis e deixar-se guiar pela luz e pelo calor. É preciso ter uma reserva de felicidade vegetal para combater o animal que somos e que deixamos emergir com a irracionalidade que dizemos controlar. 
    É preciso aprender com as flores na primavera, com os cactus no deserto, com os pinheiros no inverno, com os plátanos no outono. É preciso saber que as dificuldades se vencem com o sorriso, com a felicidade, ainda que efêmera.