quinta-feira, 18 de abril de 2019

REENCONTRAR O MEU TESOURO

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Por muitos anos, a infância das minhas fantasias viveu numa casa que tinha um piso de tábuas largas, com fendas pelas quais costumavam cair para debaixo do assoalho, um espelhinho, um pente, uma moeda, um botão, um grampo, uma miçanga, mil coisas assim, que ficavam perdidas na escuridão do porão.

Meninos curiosos como eu gostavam de deitar-se no chão e ficar olhando pelas frestas, perscrutando os mistérios que ali se escondiam. De vez em quando um raio de sol driblava cortinas e janelas fechadas e penetrava lá embaixo. Então, coisas esquecidas e perdidas cintilavam, misteriosas, convidativas, sugerindo que pequenos tesouros estavam à espera de quem tivesse coragem para buscá-los.

Mas o porão era um lugar proibido às crianças, território perigoso, segundo minha avó, abrigo de insetos venenosos, cobras, dragões e fantasmas.

Porém, um dia, uma pérola soltou-se de um pingente da minha mãe, resvalou numa fresta e caiu no porão. Tive, então, autorização para descer até lá, em busca da joia perdida.

Foi difícil abrir o alçapão, emperrado pela ferrugem do tempo. Mas, depois de muito esforço, abriu-se a portinhola revelando uma velha escada.

Desci, trêmulo, com o coração na boca e uma vela na mão...

Aos poucos meus olhos se habituaram à escuridão e pude ver, ao rebrilhar fantasmagórico da vela, um mundo misterioso que, por anos, só podia vislumbrar pelas gretas do assoalho da minha imaginação.

O coração aos saltos ia registrando a silhueta de coisinhas perdidas, agora reencontradas: uma bolinha de gude colorida, aquele alfinete dourado, uma medalha de São José, aquele botão de madrepérola, a pérola da minha mãe...

Surpresas escondidas, acumuladas, camufladas, esquecidas por anos a fio e que a casualidade de uma joia perdida fizera redescobrir.

Ao subir de volta, trazia comigo, além do orgulho da missão cumprida, muito mais que a pérola da minha mãe...

Hoje, menino crescido, continuo olhando pelas frestas da vida como olhava os vãos do assoalho daquela casa da minha infância, cheio de frestas e promessas.

Vislumbro, por vezes, o rebrilhar de alegrias e carinhos que julgava perdidos para sempre. Cintilam para mim, misteriosas e convidativas, as luzes de momentos de ternura que foram caindo pelas frestas dos dias, e se perdendo no fundo dos muitos porões do cotidiano.

A gente costuma perder essas belezas delicadas, frágeis, pelo cansaço da rotina, o peso das obrigações que chegam com a vida, pelas decepções e fracassos que tiram de nós a disposição infantil de perscrutar mistérios.

Por causa do adulto que nos tornamos, muitos tesouros acabam esquecidos nas frestas da infância do tempo.

E aí, vem o mofo da acomodação, o bolor frio e cinzento dos medos, fazendo do coração um território perigosamente previsível, cheio de venenos, mágoas e rancores, onde fantasmas arrastam correntes e dragões cospem fogo queimando nossas esperanças.

É preciso, às vezes, perder uma pérola...

Buscar por ela pode nos fazer reencontrar nossos tesouros mais preciosos.

A Espiritualidade me ensinou a abrir o alçapão da alma, por vezes enferrujado pela falta de uso, descer aos porões do meu espírito, pelos degraus do coração, vela na mão, olhos atentos ao rebrilhar das coisas e sentimentos perdidos, das saudades de mim mesmo.

Naquilo que rebrilha, Deus fala...

Desde então, cultivo o tempo de ouvir. Permito que o menino em mim espie por entre as tábuas do assoalho dos dias, redescobrindo com alegria, às vezes com sustos, pequenas coisas perdidas, indispensáveis ao tempo do amor, necessárias ao risco de viver a vida com seus desafios e exigências.

O porão da memória, inesgotável reservatório de lembranças, minhas e de tantos, guarda tesouros dos quais não posso abrir mão, sob pena de passar a vida apenas olhando pelas frestas da mesmice, temeroso, frágil, impotente, apenas intuindo, paralisado, o rebrilhar de oportunidades e sentimentos perdidos, esquecidos, atrofiados.

Aprendendo a ouvir um Deus que fala na memória do tempo, em busca de uma pérola perdida, tal como o mercador da parábola (Mateus 13, 45-46), um dia vou acabar reencontrando o meu maior tesouro: eu mesmo...

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