segunda-feira, 28 de junho de 2021

ÓDIO E AMOR NAS REDES SOCIAIS.

Como diz o Frei Betto: “Diga-me em que nicho da internet se encontra e direi se vou odiá-lo”. Se alguém frequenta uma tribo de Whatsapp ou Twitter de defesa dos direitos humanos e conecta outro de bolsonaristas, será inevitavelmente agredido, ofendido, ou sumariamente excluído dos contatos. E vice-versa.

Como afirma o doutor em Ciências da Comunicação, Moisés Sbardelotto:

“não basta gostar ou desgostar de algo: é preciso também desgostar daqueles que gostam daquilo de que não gosto. A raiva e o rancor se digitalizam e permeiam sites e redes sociais digitais mediante expressões de intolerância, indiferença, desinformação, negacionismo, difamação, discriminação, preconceito, xenofobia. O ódio, assim, ganha forma de bits e pixels, principalmente pela ação dos chamados haters, os odiadores, aqueles que amam odiar”.

Tal situação faz parte de um fenômeno mais amplo e recente caracterizado pela difusão de desinformação e má informação, como as chamadas fake news. De acordo com Claire Wardle e Hossein Derakhshan, essa “poluição de informações em escala global” gera verdadeira “desordem informacional”.

As redes digitais me fazem lembrar o Coliseu, a arena dos gladiadores romanos. Como meros espectadores confortavelmente instalados em nossas casas, assistimos aos confrontos pela telinha do celular e, com frequência, repassamos a terceiros. Isso reforça os atos de violência simbólica, intolerância e fake news, o que acirra os ânimos e se contradiz ao adjetivar as redes de ‘sociais’, já que, nesse caso, não favorecem a sociabilidade, e sim a hostilidade. É o que o papa Francisco qualifica de “excomunicação”, a comunicação que exclui o outro.

Então não devemos denunciar o político que desrespeita as regras do jogo democrático, profere mentiras e viola os direitos humanos? Devemos sim! Mas respaldados por argumentos consistentes e provas inquestionáveis.

A etiologia do ódio demonstra que ele decorre de frustrações reprimidas que descontamos em outra pessoa. Para Freud,

“o eu odeia, abomina e persegue, com intenção de destruir todos os objetos que constituem uma fonte de sensação desagradável para ele, sem levar em conta que significam uma frustração […] da satisfação das necessidades de autopreservação” (Pulsão e seus destinos, 1980 [1915], p.160).

O hater (= aquele que odeia) sente prazer mórbido de descontruir o outro. Fora das redes digitais, uma pessoa que odeia a outra guarda essa amargura no coração e na mente, sem ter como atingir o alvo de seu ódio. É o veneno que ela ingere esperando que a outra morra…

No caso do ódio digital, a amargura encontra vazão imediata e condições de rapidamente atingir o alvo e compartilhar a ofensa com amplo leque de pessoas. O ódio digital fica armazenado nas redes e pode ser reativado a qualquer momento. Assim, o ódio pessoal se transforma em ódio social e global. E estabelece uma “confraria universal do ódio”, sem que haja a contrapartida capaz de fazer refluir essa onda deplorável – a educação para o amor.

Como afirma Sbardelotto, “a internet, assim, torna-se campo fértil para o crescimento de uma ‘cultura do descarte’ digital”. Ou como assinala o papa Francisco, tais atitudes visam a “destroçar a figura do outro, num desregramento tal que, se ocorresse no contato pessoal, acabaríamos todos por nos destruir uns aos outros” 

O ódio digital é covarde. O emissor alardeia ofensas que seria incapaz de proferir cara a cara. E muitas vezes nem sequer se identifica. Assemelha-se àquelas pessoas que, na Idade Média, se deliciavam ao assistir a Inquisição queimar, em praça pública, supostos hereges.

A vida ensina que pessoas impregnadas de ódio são infelizes e trazem infelicidade a quem as cercam. Tentam encobrir sua fragilidade e insegurança sob a atitude de prepotência, arrogância, dono ou dona da verdade, ainda que não haja nenhuma consistência no que afirmam.

O desafio, portanto, é fazer das redes digitais uma escola de amorosidade. Muitos nichos reúnem tribos que se identificam por comungarem a mesma fé, a mesma proposta política, os mesmos objetivos.

A quem nossas crianças e jovens aprendem a admirar? Quais os modelos que abraçam? Muitos se espelham em ídolos de TV, futebol, música, show business. São boas pessoas em geral, mas não majoritariamente exemplos de altruísmo e idealismo. A maioria espelha os “valores” de uma sociedade hedonista e consumista: fama, poder, riqueza e beleza. O que tende a exacerbar o ego, despertar ambições desmedidas e, em consequência, frustrações que suscitam baixa autoestima e inveja impregnada de ódio. Como bem definiu Tomás de Aquino, “a inveja é a tristeza de não possuir o bem alheio”.

Esse mundo de perda de referências éticas e dissolução de valores, no qual tudo é fluido e mutável, é o que Bauman qualifica de “modernidade líquida”. Era em que as relações humanas são voláteis, intangíveis, inconsistentes. Época da globocolonização, que nos impõe o consumo frenético, a competitividade desenfreada, a repugnância (em forma de racismo e preconceito) ao diferente.

A psicologia ensina que pessoas muito inseguras tendem a ser agressivas, a manter relações tóxicas. Ficam ansiosas em transitar nas redes digitais em busca da certeza de que outras pessoas são mais infelizes do que elas ou merecem ser depreciadas. Essa insegurança decorre do medo. Medo de serem rejeitadas, de empobrecer, de não serem devidamente reconhecidas, amadas, admiradas.

A conexão universal com um número infinito de pessoas leva muitos a buscarem se espelhar no próximo, comparar-se aos demais, perseguir a certeza de que suas vidas valem a pena ser vividas. Mas esse espelhamento precisa ter referências positivas em pessoas e atitudes solidárias, idealistas, capazes de fazer de suas vidas um bem e um dom para que outros tenham vida. E isso só se obtém em três escolas: a da arte, a da espiritualidade e a da política, quando abraçadas com espírito crítico.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

RECOMEÇAR DA VERDADE.



A sociedade brasileira encontra-se em uma grande encruzilhada, decisiva para a definição dos rumos de seu futuro próximo. Há uma escalada de desencontros que causam prejuízos sobre o conjunto da vida social, econômica e política, pesando sobre os ombros de todos os cidadãos – de modo dobrado e injusto sobre os pobres e vulneráveis. É triste e insano o coroamento destes descompassos, a esgarçar o tecido social brasileiro, com o aumento acelerado dos números dos mortos pela pandemia da Covid-19. Outros muitos números, que aparecem em âmbitos variados, ferindo etapas diferentes da vida, todas igualmente preciosas, estão iluminados pelas sombras da cruel marca dos quase quinhentos mil mortos, vítimas da pandemia. Interpelante, esta cifra contabiliza duas vezes e meia a mais do número de mortos pelas bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945, nefasto acontecimento que abalou o mundo.

Somam-se aos números dessas vítimas fatais, as situações abomináveis de extermínio de pobres e negros, as agressões às mulheres – frutos perversos de preconceitos e discriminações que precisam assombrar o coração de cada cidadão. Uma exigência é inegociável e insubstituível: recomeçar a partir da verdade. 

As representatividades governamentais, políticas, sociais, culturais, também religiosas, devem merecer e honrar a credibilidade conquistada. Não é mais possível suportar representatividades assentadas em psicopatias, produzindo loucuras de todo tipo, comprometendo duramente a identidade institucional. É hora de dar um basta e exigir o estabelecimento de novas lógicas e funcionamentos, alicerçados em percepção clarividente. É incompreensível acompanhar grupos e segmentos arrastados por uma sombra, roubados pela ilusão da defesa de valores parciais, que não passam de discursos vazios sem jamais se assentar na indispensável credibilidade. Não há espaço para diplomacias vazias e comprometedoras dos destinos de um povo, negociando com negacionismos a sua condição. Há de se combater e desmascarar as dissimulações, discursos com duplo sentido, ocultamentos interesseiros da realidade.

Recomeçar a partir da verdade inclui uma memória penitencial capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações, confusões e projeções.  A sociedade brasileira está vivendo uma guerra nesta pandemia, pelos descompassos governamentais, particularmente no executivo nacional, pela baixíssima credibilidade de instituições centrais na sociedade, em razão da falta de lucidez cidadã para escolhas que promovam o novo artesanato da paz. Agora, particularmente, as pessoas precisam saber a verdade a respeito dos acontecimentos. Verdade que nunca será instrumento de vingança, mas caminho da reconciliação e de indispensável reconstrução. O Brasil carece prioritariamente da hora da verdade, sem poupar nenhuma dor resgatadora desta busca.

A verdade está em reconhecer quem são os agentes da violência: dos sofrimentos das mulheres vítimas de agressões e abusos, no tratamento racista a negros e pobres; da vergonha das manipulações por parte de quem está no poder ou possui o poder sedutor do dinheiro. A sociedade brasileira, sob a aparência de um irenismo camuflado, é palco de violências, por meio de agentes que precisam ser legalmente responsabilizados por seus desmandos, atingindo seres humanos, na sua individualidade e na casa comum, como chagas abertas. O brasileiro, com a força de instituições credíveis, deve exigir a correção dos rumos e a implementação de novos processos. A tarefa é tão exigente que não se pode mais perder tempo e recursos de modo a comprometer as ações no horizonte inspirador da arquitetura e do artesanato da paz.

É hora de trabalhar juntos, sem a pretensão falsa de homogeneizar. Não há meios de se avançar sem se trabalhar pelo bem comum. Todos são chamados a contribuir, independentemente das diferenças. Vale o conselho basilar  – perante a sociedade brasileira, lamentavelmente polarizada – ao apontar que o esforço árduo para superar o que divide os cidadãos, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo e atuante um profundo sentido de pertença. A sociedade brasileira tem um longo caminho para recuperar e configurar seu lugar tão necessário como casa de todos, com tarefas exigentes e urgentes na superação da vergonhosa e perversa desigualdade social, com o rompimento da corrupção, enraizada nos seus funcionamentos, privilegiando grupos oligárquicos e sacrificando as grandes porções das camadas pobres. A hora é da verdade. O único caminho para a reconstrução da sociedade é recomeçar da verdade.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

ESTAMOS PERDENDO A GUERRA



A frase me foi dita por um experiente representante da ONU que, ao longo dos últimos 30 anos, foi deslocado para algumas das principais crises sanitárias no planeta para ajudar a vacinar a população, estabelecer protocolos ou simplesmente buscar uma saída para o drama humano.

A guerra que ele citava era a do Brasil, com 500 mil mortos por covid-19 e um futuro adiado para milhões de outros que sobreviveram. Uma guerra que não perde intensidade e que vai no sentido contrário da média mundial nas últimas seis semanas. Uma guerra que já matou cinco vezes a guerra da Bósnia, mais que as duas bombas nucleares sobre o Japão em 1945, mais que a primeira guerra do Iraque nos anos 90, supera a guerra civil em Sierra Leoa ou o conflito em Darfur.

Uma guerra que é dez mais letal que a ação do Boko Haram (grupo terrorista que surgiu na Nigéria), se aproxima da Guerra da Síria e é duas vezes mais intensa em mortes que a guerra no Iêmen.

Por qualquer comparação que se faça, a situação da pandemia no Brasil supera a das mortes violentas pelo mundo. Dados da entidade Small Arms Survey indicam que, em 2018, 105 mil pessoas foram mortas em conflitos armados em todo o mundo, um quinto dos óbitos no Brasil pela covid-19.

Considerando todos os homicídios em todos os países do mundo, os números de 2018 também são inferiores ao impacto da pandemia nas famílias brasileiras. No planeta, cerca de 409 mil pessoas morreram como resultado de homicídios naquele ano, considerando uma população de quase 8 bilhões de pessoas.

Mas a história da guerra do Brasil não é apenas a do colapso do direito à vida. Ela é também a da destruição de 20 anos de avanços sociais, quase ininterruptos, e da reabertura de uma ameaça institucional.

Trata-se de uma guerra sem bombas, sem trincheiras, sem um objetivo militar por parte do adversário e, talvez, por isso ainda mais difícil de ser freada.

Ao longo da pandemia, o Brasil passou de um país pária para uma ameaça internacional. Criticado por governos estrangeiros, atores da sociedade civil, religiosos e empresários estrangeiros, o presidente Jair Bolsonaro se transformou num dos principais símbolos do negacionismo. Hoje, sua imagem está associada ao fracasso de um país em frear a crise.

Aos brasileiros que vivem fora do país, a nova realidade diária é a de ser questionado por todos.

Da porta da escola primária de meus filhos, passando por seguranças de entidades internacionais, jornalistas, amigos, vizinhos, políticos locais, taxistas, faxineira da ONU, palavras como “louco”, “alucinado” e “assassino” são repetidas para designar o presidente brasileiro. Elas são completadas por perguntas enfáticas: “Não há como retirá-lo?” ou “Quem votaria ainda por ele?”.

Se o Brasil assumiu o papel incômodo de um dos “doentes do mundo”, entidades internacionais e especialistas estão preocupados com o impacto que a pandemia terá para os próximos anos no país.

Reconstruir um país exigirá, porém, reconhecer que a guerra existe, que não perdeu força e que suas consequências não se limitam aos mortos.

Ao contrário do que foi a narrativa usada no início da pandemia, o vírus deixou claro que não é democrático. Se ele não distingue classe social, os números revelam que os bairros mais pobres que mais sofreram. Seja por falta de condições nos hospitais, por moradias onde famílias inteiras dividem colchões, por transportes públicos superlotados ou cadeias desumanas.

Nesta guerra, descobriu-se que uma enorme parcela da população não tinha acesso à água e sabão nas escolas, ou latrinas em suas casas.

Ninguém —e nem o vírus— se surpreendeu diante da constatação de que a desigualdade mata.

Hoje, a América Latina soma 20% de todos os óbitos no planeta por causa do coronavírus, apesar de representar apenas 8% da população. Por diversos dias no pico da crise, o Brasil tinha um quarto dos mortos, representando menos de 3% do planeta.

O vírus não é mais letal na região. O que mata é a ausência de políticas públicas, de coesão social e de democracia.

sábado, 19 de junho de 2021

O CORAÇÃO, A RAZÃO E A PESSOA

O coração na história da humanidade não é concebido apenas como o músculo que bombeia o sangue através do corpo em movimentos sistólicos e diastólicos incessantes. Não é apenas a sede das emoções e sentimentos tão utilizados pela literatura romântica para expressar aquilo que faz o coração dos apaixonados bater em diversos e variados ritmos e tons.

A simbologia do coração nas diversas religiões é muito rica. Demonstra que aquilo que é nosso centro vital, situado em plena corporeidade nossa e quando sofre qualquer fragilização põe em risco nossa vida, pode carregar um significado de profunda riqueza espiritual, que vai além do biológico ou mesmo das diversas paixões.

Na mitologia greco-romana, base da cultura ocidental, o coração é símbolo do nascimento, do princípio da vida. Isso se deve a Zeus, o deus mais poderoso do Olimpo, que engole o coração ainda palpitante de Zagreu, gerando daí seu filho Dionísio. Também no Antigo Egito, o Salão do Juízo correspondia ao local onde eram pesados os corações dos mortos. E o órgão que bombeia a vida para toda pessoa era visto e considerado como sede da sabedoria e da inteligência, sendo associado à verdade e à justiça.

Também nas religiões orientais a simbologia do coração se faz presente. Na Índia, se concebe que por assegurar a circulação do sangue e ser o centro vital do ser humano, o coração é o símbolo da morada de Brama, a divindade suprema do hinduísmo.

No Islã, o coração é considerado o trono de Deus, a sede e morada da divindade. E quando aparece um coração alado, aí se reconhece o símbolo do movimento islâmico Sufi, que acredita que o coração se situa no movimento e no espaço entre o espírito e a matéria, entre o corpo e a alma. Simboliza o amor de Deus, o centro espiritual e emocional dos seres.

No Cristianismo, o coração é entendido como centro ou núcleo do ser e dele se originam a oração, ou seja, o impulso da fé que leva ao diálogo amoroso com Deus e também as ações e condutas morais. O coração é a morada de Deus, onde habita seu Espírito que é o Único que pode sondá-lo e conhecê-lo. É o lugar da decisão, no mais profundo das tendências humanas psíquicas. É a sede da verdade, onde o ser humano é chamado a escolher a vida ou a morte.

Como sede da personalidade moral, o coração é o lugar de onde surgem os bons e os maus impulsos, que deverão ser discernidos para tomar as decisões adequadas a uma vida plena e feliz. Porém, o ser humano, criado por Deus, não é constituído apenas de coração. Também a razão pela qual reflete, pondera, avalia, é elemento fundamental e constitutivo de seu ser e de sua identidade.

O grande pensador francês Blaise Pascal refletiu muito sobre o coração. Ainda que dotado de uma inteligência brilhante, atraída pelo pensar e pela atividade intelectual, valorizando portanto muito a razão, Pascal desconfia da razão, apalpando e denunciando frequente e fortemente seus limites. Ainda que defina o ser humano e sua dignidade em conexão com a razão e o pensar, Pascal entende que o conhecimento da verdade não pode ser atingido apenas pela razão que, para ele, anda junto com a fé e reconhece o momento em que deve submeter-se. Apesar de afirmar que a substância do ser humano é feita de uma aspiração e há no fundo de cada pessoa uma espécie de presença divina que ultrapassa a natureza humana – precisamente o contato com o infinito – afirma igualmente que se Deus existe é incompreensível pela razão humana. É neste ponto que ele afirma o conhecimento pelo coração. O coração, portanto, segundo o filósofo francês, não é apenas sentimentalidade, mas sim o que constitui o ser humano mais substancialmente, é sua natureza mais profunda. Ali é onde pode haver uma comunicação por contato com Deus.

A frase mais conhecida de Pascal é: “ O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Assim, opondo-se ao racionalismo e ao fideísmo, Pascal vai situar ao mesmo tempo a importância do coração na concepção de ser humano e seus limites. Pois, se reconhece a primordialidade do coração para um equilíbrio entre o corpo e o espírito, Pascal também admite que excluir a razão é um excesso não admissível, e tão reprovável quanto magnificar-lhe excessivamente a importância.

Dois eventos nos chamam a atenção neste mês de junho. O primeiro é o Dia dos Namorados, quando os corações apaixonados se declararão por enésima vez um ao outro e trocarão presentes e afagos. Outra é a ênfase que a espiritualidade cristã traz neste mês em torno do coração de Jesus. Aos apaixonados de ontem, de hoje e de sempre o coração de Jesus, que pulsou e bateu no peito do galileu que fez a história girar sobre seus gonzos mostra que só se conhece bem – e portanto só se ama verdadeiramente – com o coração. Porém, é inadmissível que um verdadeiro amor seja feito apenas de sentimentos que podem ser superficiais se não passam pela reflexão e a ponderação da razão.




Maria Clara Bengimer

quinta-feira, 17 de junho de 2021

TEMOS QUE SAIR DA ECONOMIA QUE MATA,




A crise sanitária sem precedentes nestas últimas décadas, que tem produzido incidências nefastas e dolorosas no tecido já esgarçado da sociedade brasileira, amentando seus rasgões, com feridas de grande gravidade humanitária.

Situação que torna ainda mais cruel os cenários da secular desigualdade da sociedade brasileira, que deve e precisa provocar os brios dos cidadãos. Esses cenários estão se agravando a tal ponto que exigem o engajamento pleno e prioritário de instituições e segmentos da sociedade. As carências alimentares, na contramão dos indicadores que mensuram e apontam a melhoria da economia, se põem como questionamento humanitário, clamando por novas posturas cidadãs. Há muita gente que acorda sem saber o que terá para comer. A situação extrema não dá a ninguém o direito de repousar sem inquietações. No ar se desenha a necessidade de uma nova lógica presidindo os conceitos da economia, exigidos a sair, celeremente, da economia que mata para uma economia solidária, de um desenvolvimento comprometido para um desenvolvimento integral. Essas metas só serão alcançadas por intermédio de lógicas novas fecundadas pelo tempero insubstituível da solidariedade.

A situação de carência extrema, sofrida por mais da metade da população brasileira, não suporta mais a prevalência da lógica da contrapartida como única possibilidade de abrir as mãos abarrotadas de recursos das pessoas bem situadas financeiramente na sociedade. Não há como exigir contrapartida quando o outro só tem a oferecer a sobrevida da fome e da miséria. Não há possibilidade para barganhas. O socorro é emergencial e urgente sob pena de esmaecer-se, de se provocar uma convulsão social que pode ser silenciosa, mas com peso de guerra.

A sociedade brasileira está desafiada a aprender uma nova lógica que não é marca de nenhuma sigla partidária. O selo é o da solidariedade. Encontrar os vulneráveis e abrir a mão e o coração para socorrê-los, é gesto necessário para possibilitar um recomeço. Embora em continuidade histórica e sobre trilhos de recursos da própria cultura e do próprio potencial, a sociedade brasileira tem que se compreender exigida à necessidade de recomeçar. Há um caos político-social, com incidências humanitárias, que requer um recomeço. Não será um recomeço do zero, mas a humilde aprendizagem a partir de uma economia com lógica completamente diferente da que está vigorando atualmente. Economia que mata muitos e privilegia regiamente uma fatia mínima da sociedade.

Por isso, é hora da prática da humildade de aprendiz, fecundando a mente e os corações com o remédio da sensibilidade singular, que se pode cultivar no gesto diário de socorrer aquele que está precisando porque não tem nada e não pode esperar o depois.

Em sintonia com todas as confissões religiosas e segmentos sensíveis da sociedade, com selo humanitário reconhecido, intensifica a ação emergencial solidária É Tempo de Cuidar, tecendo e fortalecendo redes de solidariedade, socorrendo pobres e vulneráveis e criando oportunidade para o exercício de novas práticas que possam contribuir na recomposição social e política do Brasil. Essa recomposição é o ato de tecer a unidade capaz de curar as divisões entre pessoas e segmentos da sociedade. Inclui-se, nesse processo, a compreensão lúcida do embate e dos cenários políticos, desafiando a cidadania a buscar uma saída ante a encruzilhada nebulosa e sem opções, carente de respostas esperançosas, com escassez de lideranças que possam oferecer soluções aos graves problemas.

Lamentavelmente, brinca-se com a sacralidade do dom da vida. Obscuridades ganham força de convencimento, a mesquinhez do lucro ilude mentes a pensar que, salvando a própria pele, se pode viver num mundo paradisíaco. Sublinha-se a “aumentam as distâncias entre as pessoas, e cresce um revés drástico, tornando lenta e dura a marcha rumo a um mundo mais unido e mais justo.” Há, sem pessimismos ou desânimos, um caos em curso, embora com sinais de saída.

A sociedade brasileira precisa reconstruir-se, intuir novas escolhas políticas e humanitárias, com repercussão na lógica da economia, distanciando-a daquela que mata, para o desabrochar de um novo tempo, num ciclo propício a uma cidadania diferente da atual. Assim, é indispensável a ajuda de analistas para o entendimento da realidade complexa, a abertura ao diálogo e a prática da solidariedade. Por isso, ecoe forte nos corações os clamores dos pobres e famintos para a preparação de uma sociedade mais fraterna e justa. Será agora significativo e determinante compreender, neste tempo, a urgência de que é tempo de cuidar.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

O REENCONTRO DA ÁGUIA E O CONDOR.

O planeta Terra devido à sistemática agressão nos últimos séculos está num franco e perigoso declínio. A intrusão do Covid-19 afetando diretamente todo o planeta e exclusivamente a espécie humana é um entre os severos sinais de que a Terra viva nos está enviando: nosso modo de vida é demasiadamente destrutivo levando à morte a milhões de seres humanos e a seres da natureza. Temos que mudar nosso modo produzir, de consumir e de morar na única Casa Comum, caso contrário podemos conhecer um armagedon ecológico-social.

Foi grande o equívoco dos invasores europeus de chamá-los de “indios” como se fossem habitantes de uma região da Índia que todos buscavam. Eles, na verdade, se chamavam por vários nomes: Tawantinsuyo, Anauhuac, Pindorama entre outros. Prevaleceu o nome de Abya Yala dada pelo povo Kuna do norte da Colômbia e do Panamá que significava “terra madura, terra viva, terra que floresce”. Eram povos com seus nomes como taínos, tikunas, zapotecas, astecas, maias, olmecas, toltecas, mexicas, aimaras,incas quíchuas tapajós, tupis, guaranis, mapuches e centenas de outros. A adoção de nome comum Abya Yala faz parte da construção de uma identidade comum, na diversidade de suas culturas e expressão das articulações que os unem num imenso movimento que vai do norte o sul do continente americano. Em 2007 criaram a Cúpula dos Povos de Abya Yala.

Mas sobre eles pesa uma vasta sombra que foi o extermínio infligido pelos invasores europeus. Ocorreu um dos maiores genocídios da história. Foram mortos por guerras de extermínio ou por doenças trazidas pelos brancos contra as quais não possuíam imunidade, por trabalhos forçados e mestiçagem forçada, cerca de 70 milhões de representantes destes povos. Os dados mais seguros foram levantados pela socióloga e educadora Moema Viezzer e pelo sociólogo e historiador canadense radicado no Brasil Marcelo Grondin. O livro, impressionnte, com prefácio de Ailton Krenak leva como título Abya Yala: genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas (Editora Bambual, Rio de Janeiro 2021). Recolhem os dados do genocídio das duas Américas. Demos um pequeno resumo:

No Caribe em 1492 quando chegaram os colonizadores, havia quatro milhoes de indígenas. Anos após não havia mais nenhum. Todos foram mortos especialmente no Haiti.

No México em 1500 havia 25 milhões de indígenas (Astecas, toltecas e outros) depois de 70 anos restaram apenas dois milhões.

Nos Andes existiam em 1532 15 milhões de indígenas, em poucos anos restou apenas um milhão.

Na América Central em 1492 na Guatemala, Honduras, Belize, Nicarágua, El Salvador, Costa rica e Panamá havia entre 5,6-13 milhões de indígenas, dos quais 90% foram mortos.

Na Argentina, no Chile, na Colômbia e no Paraguai morreram em média, em alguns países mais em outros menos, cerca cerca de um milhão de indígenas.

Nas Antilhas menores como nas Bahamas, Barbados. Curaçao, Granada, Guadalupe, Trinidad- Tobago e Ilhas Virgens conheceram o mesmo extermínio quase total.

No Brasil quando os portugueses aportaram nestas terras, havia cerca de 6 milhões de povos originários de dezenas de etnias com suas línguas. O desencontro violento os reduziu a menos de um milhão. Hoje, infelizmente, devido ao descuido por parte das autoridades, esse processo de morte continua, vítimas do coronavírus. Um sábio da nação yanomami, o pajé Davi Kopenawa Yanomamy relata no livro A Queda do Céu o que os xamãs de seu povo estão entrevendo:a corrida da humanidade está rumando na direção de seu fim.

Nos Estados Unidos da América viviam em 1607 cerca de 18 milhões de povos originários e tempos depois sobreviveram apenas dois milhões.

No Canadá havia em 1492 dois milhões de habitantes originários e em 1933 se contavam apenas 120 mil.

O livro não narra apenas a incomensurável tragédia, mas especialmente as resistências e modernamente as várias cúpulas organizadas entre esses povos originários, do sul e do norte das Américas. Com isso se reforçarem mutuamente, resgatam a sabedoria ancestral dos xamãs, as tradições e as memórias.

Uma lenda-profecia expressa o reencontro desses povos: aquela entre a Águia, representando a América do Norte e o Condor a América do Sul. Ambos foram gerados pelo Sol e pela Lua. Viviam felizes voando juntos. Mas o destino os separou. A Águia dominou os espaços e quase levou ao extermínio o Condor.

No entanto, quis esse mesmo destino que a partir da década de 1990, ao se iniciarem as grandes cúpulas entre os distintos povos originários, do sul e do norte, o Condor e a Águia se reencontraram e começaram a voar juntos. Do amor de ambos, nasceu o Quetzal da América Central, uma das mais belas aves da natureza, ave da cosmovisão maia que expressa a união do coração com a mente, da arte com a ciência, do masculino com o feminino. É o começo do novo tempo, da grande reconciliação dos seres humanos entre si, como irmãos e irmãs, cuidadores na natureza, unidos por um mesmo coração pulsante e habitando na mesma e generosa Pachamama, a Mãe Terra.

Quem sabe, no meio das tribulações do tempo presente em que nossa cultura encontrou seus limites intransponíveis e se sente urgida a mudar de rumo, esta profecia possa ser a antecipação de um fim bom para todos nós. Ainda voaremos juntos, a Águia do Norte com o Condor do Sul sob a luz benfazeja do Sol que nos mostrará o melhor caminho.





Leonardo Boff.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

ECOLOGIA INTEGRAL


É preciso que cada vez mais pessoas se convençam sobre a importância urgente e inegociável de se pautar a vida por uma ecologia integral. Isto significa reconhecer a interrelação entre as dimensões ambiental, econômica, social e cultural. Nessa compreensão está inscrita a exigência de reflexões sobre as condições de vida e de sobrevivência na sociedade, com honestidade, para questionar e substituir modelos de desenvolvimento, de produção e de consumo prejudiciais ao planeta e, consequentemente, à humanidade. Compreende-se, pois, que promover educação e espiritualidade ecológicas é tarefa, intrinsecamente vinculada à fé cristã.

A humanidade precisa passar por mudanças, caso contrário avançará com um desenvolvimento ilusoriamente lucrativo, mas, na verdade, suicida, por produzir irreversíveis prejuízos, com pandemias e outras catástrofes pesadas demais. Há um grande desafio cultural, espiritual e educativo a ser assumido por todos, oportunidade para viver longo processo de regeneração. Esse processo, para ser exitoso, demanda estudos técnicos com convincente lucidez e, especialmente, atitudes cada vez mais balizadas por princípios ético-morais inegociáveis. As discussões, os confrontos científicos, a coragem de se questionar marcos regulatórios e legislativos ineficazes para a proteção ambiental são indispensáveis à recuperação da casa comum.

A mudança no estilo de vida poderá influenciar, a partir de pressão salutar, aqueles que detêm poder político, econômico e social. Por isso, toda a sociedade deve enfileirar-se em uma constante luta pela Ecologia Integral. Um percurso pedagógico que contempla sensibilizar-se pelos clamores dos pobres da Terra. Amanhã, esta luta pela Ecologia Integral será presencial, com as suas restrições em razão da necessidade de se respeitar o distanciamento social, e, particularmente, congregando pessoas pelas redes tecnológicas de comunicação. Mas todos, a cada dia, sintam-se convidados a participar da grande luta pela Ecologia Integral, motivados a encontrar nova compreensão que permita fazer surgir renovado jeito de viver, impulsionando, assim, o desenvolvimento sustentável.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

A OUTRA PESSOA E SEUS DIREITOS.

 

No mundo atual, a sociedade dominante perdeu a noção de que a relação social se baseia nos dons e direitos de cada pessoa e no bem comum. Hoje, esta dimensão de direitos vai além do humano e abrange os direitos dos animais, dos seres vivos, direitos da Terra, das águas e da natureza. A atual sociedade é especialmente incapaz de perceber direitos das pessoas que pertencem a minorias sociais e que vivem à margem do poder.

Nos Estados Unidos, desde o dia 25 de maio de 2020, quando George Floyd morreu asfixiado por um policial branco, houve mais de oito mil manifestações contra o racismo. No entanto, o país continua tão racista quanto antes. Já em 2021, na mesma Carolina do Norte, no dia 21 de abril, o jovem negro Andrew Brown foi morto por um policial com um tiro na nuca. Alegando que foi em legítima defesa, o policial foi inocentado.

Lá e aqui, policiais continuam mais violentos caso a vítima da repressão seja negra. No Brasil, o massacre de Jacarezinho, defendido pelo vice-presidente da República, já se tornou notícia antiga. A polícia civil mantém o inquérito em segredo. Ao que parece, ninguém será condenado.

Por falar em crime, em países da Europa como Itália, França e Espanha, pessoas são condenadas à prisão e sofrem pesadas multas pelo “crime de solidariedade”. Incorre neste crime quem tenta salvar a vida de migrantes que se afogam no mar ou atravessam os Alpes sem abrigos adequados. É proibido acolher, alimentar e salvar suas vidas. Os tribunais condenam pessoas por terem facilitado a entrada ilegal de migrantes e clandestinos, mesmo se esse era o único modo de lhes salvar a vida.

Até hoje, no norte da África, em pleno território de Marrocos, a Espanha mantém dois enclaves: Ceuta e Melila. Isso revela que o velho colonialismo europeu continua com a pretensão de dominar o mundo. É mais um acinte aos africanos. Os ricos não apenas defendem o seu direito de esnobar luxo e desperdício, enquanto milhões morrem de fome, mas querem viver isso diante dos pobres que não têm nada para comer.

O problema é que os africanos, asiáticos e latino-americanos têm o mal costume de não se resignarem à triste sorte que os impérios lhes impõem. Assim, entre a segunda-feira (17/05) e a terça (18/05), de repente mais de oito mil pessoas tentaram atravessar o braço de mar que separa o Marrocos do território espanhol de Ceuta. Dessas pessoas que tentaram atravessar um braço de mar revolto, mais de mil pessoas eram menores – havia crianças de 7 e 8 anos desacompanhadas. Isso não teria ocorrido se as forças de segurança de Marrocos não tivessem facilitado e fingido que não viam. Assim se vingavam da Espanha por esta ter abrigado Brahim Ghali, líder da Frente Polisario que, desde os anos 1970, luta contra a ocupação de Marrocos no Sahara Ocidental. Migrantes se transformaram em moeda de troca e peças de jogo entre as potências do mundo.

Luna Reyes é uma jovem espanhola de 20 anos, voluntária da Cruz Vermelha Internacional. Ela se deslocou a Ceuta para ajudar a acolher migrantes africanos que chegam à praia e são perseguidos pela polícia. Nestes dias, a internet mostrava um rapaz negro, vindo do Senegal. Ele chegou ao litoral de Ceuta, depois de ter enfrentado o mar aberto e perigoso em um dos pontos mais violentos do Mediterrâneo. Saiu do mar chorando. Ao ver que seria recebido com armas pelos soldados e levado de volta à fome e à miséria. Luna correu e o abraçou como dizendo: “Sou sua irmã”. Por isso, ela está atacada e ameaçada por grupos racistas e extremistas da Espanha.

É preciso que a sociedade civil se mobilize em solidariedade aos grupos de migrantes que arriscam as suas vidas nas fronteiras da selvageria da Europa e da América do Norte. É urgente expor ao mundo que países que se dizem os mais civilizados do mundo mantêm verdadeiros campos de concentração. Cada vez mais, o mundo se transforma em câmara de tortura mantida pelos donos do capital que multiplicam suas riquezas.

 Pede-se à humanidade e especialmente às pessoas de paz que pratiquem a espiritualidade que nos chama a acolher, proteger, promover e integrar os(as) migrantes. Quem é cristão escuta Jesus nos dizer: “Tornei-me migrante e você me acolheu” (Mt 25).

terça-feira, 8 de junho de 2021

JÁ PINTOU ALGO PARECIDO PARA VOCÊ?

 


Não reconheci o número na tela do celular. Devia ser telemarketing, mas resolvi arriscar. Atendi e murmurei qualquer coisa, para ver quem estava do outro lado da linha.
– Senhor Rui? – perguntou uma voz desconhecida.
– Sim.
– Boa tarde. Meu nome é Luana, somos do Portal do Servidor e estamos atualizando nosso cadastro.
– Deve haver algum engano.
– Mas o senhor não trabalha no serviço público, senhor Rudi?
Pensei em deixar para lá, já que todo mundo confunde meu nome, mas resolvi corrigir.
– Rui. O certo é Rui. Mas a verdade é que não trabalho no serviço público, não.
– Mas aqui no nosso sistema consta o senhor como ativo no governo. E aí estou ligando pra enviar o link com o passo a passo pro senhor atualizar seu cadastro. Com isso, o senhor poderá fazer empréstimo consignado. O valor será debitado diretamente do seu contracheque todo mês.
– Mas realmente não é o caso. Nunca trabalhei no serviço público.
Ela se surpreendeu:
– Em nenhuma área do serviço público municipal, estadual ou federal?
Ao escutá-la, caiu a ficha.
– Tem razão – lembrei-me. – Trabalhei como Diretor de Comunicação na Prefeitura.
Ela pareceu contente.
– É isso!
Tratei de esvaziar seu otimismo:
– Mas já tem mais de oito anos que saí.
Ela ficou decepcionada.
– Peço desculpas pelo incômodo, então. É que consta como se você ainda estivesse trabalhando no serviço público.
Nessa altura, já estávamos íntimos e ela me chamava de você.
– Eram outros tempos. Tempos de bonança, Luana.
A moça insistiu:
– E como você está hoje, Rui? Aposentado, autônomo, na iniciativa privada?
– Desempregado mesmo. Faço parte dos 14 milhões de brasileiros – respondi.
Ela se mostrou solidária:
– Ah, a pandemia, né?
– Na verdade, não. Estou sem emprego desde que saí da Prefeitura. Não sei o que é contracheque faz tempo.
Ela não perdeu a oportunidade:
– Mas se você está desempregado pode estar precisando de dinheiro. Podemos arrumar um empréstimo pra você.
Luana era bem treinada, há que se reconhecer. Mas eu também tenho meus truques:
– Não preciso de empréstimo, preciso de emprego.
Ela riu. É que eu havia falado em tom bem-humorado. Aproveitei o clima amistoso e disse:
– Aliás, se você souber de alguma coisa me avise. Aí na sua empresa não tem lugar pra mim, não?
– Nosso setor está enxugando – desculpou-se ela.
– Eu entendo.
Luana precisava desligar, deu para perceber, tinha que sair à caça de outros clientes, já que a conversa com o senhor Rui não dera em nada.
– Agradeço sua atenção, Rui. Você é muito gentil.
– Você também, Luana. E não esquece de mim se pintar alguma coisa.
– Pode deixar.
– Tchau, Luana. Boa sorte.
– Tchau, Rui, pra você também.
Quantas vezes caro leitor  já aconteceu algo parecido com você? Isso chama-se Telemarketing. Eles sabem quase tudo sobre a gente. Nossa individualidade está indo para as cucúias. Modernidade?

sábado, 5 de junho de 2021

QUE TAL SE NO LUGAR DO PIB E GENTE TAMBÉM UTILIZASSE A FIB?

Medir a felicidade é uma aventura difícil, complexa, desafiante, apaixonante, indescritível, bem diferente da mensuração de metas e resultados econômico-financeiros. Tempos atrás ouvi falar do Butão, pequeno país de tradição budista encravado nas montanhas do Himalaia, e busquei conhecer um pouco mais as suas peculiaridades. Preocupado com a transição para uma economia de mercado, o governo decidiu criar sua maneira própria de medir a qualidade da saúde mental e do bom humor do seu povo. Para isso tomou a incrível decisão de criar o Ministério da Felicidade, cujo objetivo é planejar o bem-estar de todos os cidadãos da nação.

No lugar do Produto Interno Bruto (PIB), o Butão utiliza o índice FIB: Felicidade Interna Bruta. Hoje, o país, cujo PIB não passa de US$ 2,5 bilhões, é considerado o mais feliz do mundo. A FIB é avaliada pelo governo por meio de uma gama de critérios: desenvolvimento econômico sustentável, preservação das tradições, conservação do meio ambiente, além de considerar se o governo é participativo, transparente e confiável. Hoje, o Butão figura entre os 10 países mais felizes do mundo, com baixíssimos índices de violência, sem mendigos ou miseráveis, com uma população na sua grande maioria vegetariana, entre outros resultados impressionantes.

O cuidado das pessoas é um imperativo ético de promoção do nosso capital humano, porque, de fato, se as pessoas são felizes, portadoras de saúde mental e de qualidade de vida, e a instituição é igualmente saudável, isso comprova que organizações felizes são mais produtivas, eficazes e com resultados de vitalidade, de solidariedade e de sustentabilidade relevantes e reconhecidos. Nosso objetivo é poder contar em nossas instituições com lideranças que acreditam naquilo que acreditamos, pois, se partilham do mesmo propósito, hão de cuidar de si e dos outros, impactando os liderados e suas equipes, para que sejam igualmente geradores de felicidade ao conjugar trabalho, saúde e paz.

Nossa trajetória tem comprovado a importância, a influência e os benefícios da felicidade no trabalho, na performance, na motivação, na satisfação e engajamento das lideranças e das equipes. Isso envolve colaboradores, educadores e profissionais da saúde de nossas Frentes de Missão. Sim, a felicidade no trabalho influencia positivamente a performance, a motivação, a satisfação e o engajamento de todos os nossos trabalhadores.

É conhecido o ditado: “Tudo o que não nos mata, nos torna mais fortes”. Mas nem sempre essa é uma máxima verdadeira. Já nos alertava com propriedade Martin Luther King: “Aprendemos a voar como pássaros e a nadar como peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos. A verdadeira medida de um homem não é como ele se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas como se mantém em tempos de crise, controvérsias e desafios”.

Estamos atravessando tempos difíceis. Partilhamos angústia, incerteza, insegurança com o emprego, preocupação com os idosos e doentes, solidão no furor das redes sociais, medo e morte. Experimentamos um turbilhão de sentimentos, o friozinho na barriga ao entrar em casa e reencontrar todos bem após um dia de trabalho ou no retorno das saídas e das viagens.

A crise aguda que humanidade enfrenta não se deve apenas ao coronavírus, mas também à falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar uma pandemia, as pessoas precisam confiar nos organismos sanitários, na medicina e em seus especialistas; os cidadãos precisam confiar nos poderes públicos; e os países, instituições e prestadores de serviços públicos e privados precisam confiar uns nos outros.

Nos últimos anos, políticos e instituições irresponsáveis contaminaram e corromperam deliberadamente a confiança na ciência, na cooperação nacional e internacional, no desenvolvimento social como expressão máxima do exercício da solidariedade. Como resultado, enfrentamos a crise da falta de líderes capazes de inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada em termos sanitários, econômicos e sociais. Como bem sabemos, o antídoto para uma pandemia não é segregação, mas a cooperação.

Cada pessoa traz em si um fragmento do mistério de Deus. Pela via do desenvolvimento espiritual podemos ajudar, ser solidário, amar os outros. Daí o necessário exercício de maior lastro fraternal e da criação de laços de união, justiça, paz e solidariedade uns com os outros, com nossos entes queridos, com os companheiros de trabalho, com os pobres e doentes, com os que sofrem, com os que morrem vítimas da pandemia, com os infelizes, com os que choram na solidão, com os que perderam a esperança e até com os inimigos, como afirma a Sagrada Escritura. Somente assim será possível assistir a milagres, pois nosso Deus é o Deus da compaixão, da proximidade, da ternura, da fraternidade universal.

Em nosso ambiente de trabalho, fomentemos e maximizemos as potencialidades e as capacidades da felicidade: o cuidado, a qualidade de vida e a saúde mental das pessoas.

Oxalá as provações, aprendizados e bênçãos da pandemia da Covid-19 nos tornem mais fortes e melhores, nos ajudem a esperançar e nos tragam serenidade e um “novo normal”, em que nosso objetivo seja a felicidade de todos!

sexta-feira, 4 de junho de 2021

CORPUS CRISTI

 


Na festa do Corpo de Cristo, deixarei meu corpo flutuar em alturas abissais. Acariciarei uma por uma de minhas rugas, desvelarei histórias, apreenderei, na ponta dos dedos, meu perfil interior.

Não recorrerei ao bisturi das falsas impressões. Nem ao espectro da magreza anoréxica. O tempo prosseguirá massageando meus músculos até torná-los flácidos como as delicadezas do espírito.

Suspenderei todas as flexões, exceto as que aprendo na academia dos místicos. Beberei do próprio poço e abrirei o coração para o anjo da faxina atirar pela janela da compaixão iras, invejas e amarguras.

Pisarei sem sapatos o calor da terra viva. Bailarino ambiental, dançarei abraçado a Gaia ao som ardente de canções primevas. Dela receberei o pão, a ela darei a paz.

Acesas as estrelas, contemplarei na penumbra do mistério esse corpo glorioso que nos funde, eu e Gaia, num único sacramento divino. Seu trigo brotará como alimento para todas as bocas, suas uvas farão correr rios inebriantes de saciedade.

Na mesa cósmica, ofertarei as primícias de meus sonhos. De mãos vazias, acolherei o corpo do Senhor no cálice de minhas carências. Dobrarei os joelhos ao mistério da vida e contemplarei o rosto divino na face daqueles que nunca souberam que cosmo e cosmético são gregas palavras, e deitam raízes na mesma beleza.

Despirei os meus olhos de todos os preconceitos e rogarei pela fé acima de todos os preceitos. Como Ezequiel, contemplarei o campo dos mortos até ver a poeira se consolidar em ossos, os ossos se juntarem em esqueletos, os esqueletos se recobrirem de carne e a carne se inflar de vida no Espírito de Deus.

Proclamarei o silêncio como ato de profunda subversão. Desconectado do mundo, banirei da alma todos os ruídos que me inquietam e, vazio de mim mesmo, serei plenificado por Aquele que me envolve por dentro e por fora, por cima e por baixo.

Suspenderei da mente a profusão de imagens e represarei no olvido o turbilhão de ideias. Privarei de sentido as palavras. Absorvido pelo silêncio, apurarei os ouvidos para escutar a brisa de Elias e os olhos para admirar o que extasiou Simeão.

Não mais farei de meu corpo mero adereço estranho ao espírito. Serei uma só unidade, onda e partícula, verso e reverso, anima e animus.

Recolherei pelas esquinas todos os corpos indesejados para lavá-los no sangue de Cristo, antes que se soltem de seus casulos para alçar o voo das borboletas.

Curarei da cegueira os que se miram no olhar alheio e besuntarei de cremes bíblicos o rosto de todos que se julgam feios, até que neles transpareça o esplendor da semelhança divina.

Arrancarei do chão de ferro os pés congelados da dessolidariedade e farei vir vento forte aos que temem o peso das próprias asas. Ao alçarem o topo do mundo, verão que todos somos um só corpo e um só espírito.

Farei do meu corpo hóstia viva; do sangue, vinho de alegria. Ébrio de efusões e graças, enlaçarei num amplexo cósmico todos os corpos e, no salão dourado da Via Láctea, valsaremos até que a música sideral tenha esgotado a sinfonia escatológica.



Na concretude da fé cristã, anunciarei aos quatro ventos a certeza de ressurreição da carne e de todo o Universo redimido pelo corpo místico de Cristo. Então, o que é terno tornar-se-á, nos limites da vida, eterno quando a morte nos transvivenciar.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

ECOLOGIA.

O Dia Mundial da Ecologia, 5 de junho, reacendem luzes no horizonte da humanidade, interpelando, particularmente, os cristãos. O cuidado com a casa comum é dever cidadão e tarefa cristã. Trata-se de obediência amorosa e reverente ao Criador, que se desdobra na fraterna dedicação a todas as criaturas. A moral cidadã e o sentido profundo da fé exigem responsável consideração de grave cenário: a irmã terra está clamando contra o mal que a ameaça, consequência da apropriação irresponsável e abusiva dos bens que são dádivas de Deus ao planeta. A fé cristã, com a sua doutrina que incide na conduta moral, revela ser equívoco pensar que a humanidade seja proprietária e dominadora da Terra, podendo saqueá-la, depredá-la, sob impulso da ganância e do lucro. Essa triste situação interpela a cidadania, iluminada pela fé cristã, a reagir, pois as feridas do coração humano estão adoecendo o planeta.
Entre os pobres mais abandonados e maltratados está a casa comum oprimida e devastada. O cenário mundial é preocupante, não raramente emoldurado por demagogias que envolvem interesses escusos e mesquinhos de nações e governos. Nesse contexto, a situação da sociedade brasileira é muito preocupante quando se considera, particularmente, o tratamento do meio ambiente. Uma realidade que, para ser transformada, necessita de qualificada cidadania e também da atuação assertiva dos cristãos. Merece redobrada atenção o que está em curso no âmbito da conjuntura política nacional: aponta-se para um grave desmonte dos mecanismos de proteção ambiental.

As casas legislativas precisam assumir com urgência, protagonismo e mais zelo, as suas responsabilidades na busca pelo indispensável equilíbrio ambiental, para garantir saúde ao planeta e, consequentemente, à humanidade. Ao mesmo tempo, é inadmissível o tratamento inadequado, sem debate público e entendimentos amadurecidos, de assuntos com ampla incidência no contexto socioambiental, a exemplo dos licenciamentos para a exploração de recursos naturais. Ouvir a sociedade e dialogar com autoridades técnico-científicas sobre questões ambientais é imprescindível. Nessa perspectiva, merece amplo estudo e debate social as discussões relacionadas aos Projetos de Lei 3729/2004, 2633/2020, 510/2021 e 191/2020 – todos com potencial para impactar o meio ambiente. Mudança nos critérios para licenciamentos ambientais, os riscos de se facilitar a grilagem de terra e as consequências da abertura de terras indígenas para a mineração merecem consideração responsável.

As decisões não podem ser pautadas simplesmente por princípios que apenas buscam o lucro, desconsiderando a necessidade de um desenvolvimento integral. O ponto de partida não pode ser o dinheiro, mas a desafiadora consideração da condição humana que é raiz da crise ecológica. O Papa Francisco recorda que há um modo inadequado de compreender a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até a ponto de arruiná-la. “Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua ação no mundo”, diz o Papa Francisco, na Carta Encíclica Laudato Si’. É preciso refletir sempre à luz de parâmetros mais humanizados, e não meramente tecnocráticos, pois não se pode alimentar a ilusão de um “crescimento econômico” ilimitado e infinito.

É urgente investir na cultura ecológica, com amparos legislativos inteligentes e não suicidas, com amplo processo educativo, para se conquistar novo modelo civilizatório, mais humano e em harmonia com o planeta. Espera-se que o Projeto de Lei 1.070/2021, aprovado no Senado Federal, trilhe o mesmo caminho na Câmara dos Deputados, e se institua o “Junho Verde”, uma campanha educativa. Trata-se de passo importante para contribuir na efetivação de novas legislações e compromissos que busquem constituir uma cultura ecológica. Essa cultura é urgente necessidade para que haja mais respeito à vida, dom de Deus que precisa ser sempre defendido e promovido, em todas as suas etapas, da concepção ao declínio natural. Os cristãos têm a urgente tarefa de buscar, exemplarmente, um novo estilo de vida, balizado por dinâmicas da necessária cultura ecológica.