terça-feira, 3 de setembro de 2013

MEGA-EVENTOS, MEGA-NEGÓCIOS, MEGA-PROTESTOS


Desnecessário dizer da importância das lutas e manifestações dos últimos dias. Elas expressam uma extraordinária vontade não apenas de mudar as políticas de transporte, educação, saúde, etc, como pretendem alguns analistas que buscam reduzir o significado dos acontecimentos dos últimos dias, mas de transformar de modo radical a sociedade brasileira e as formas de exercício do poder político.

Aqueles que acompanham ou estão diretamente envolvidos nas lutas quotidianas e no esforço de organizar essas lutas, sabem que, há muito tempo, multiplicam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. Por quantas vezes nos vimos, nas reuniões e conversas, a analisar ou lamentar a fragmentação, assim como a tentar encontrar os caminhos – políticos, organizacionais – que poderiam propiciar convergências, unidades, frentes e articulações que abrangessem o conjunto de conflitos setoriais e localizados? Há quanto tempo nos vemos às voltas com as dificuldades de fazer convergir lutas micro-localizadas, experiências de luta com diferentes focos e bases sociais?

A arrogância e brutalidade dos detentores do poder realizaram, em poucos dias, aquilo que muitos militantes, organizações populares e setores do movimento vinham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. Não é a primeira vez que isso acontece na história. Mas o que ocorreu foi além do que se poderia imaginar, em virtude da prepotência das coalizões políticas governantes, assim como do cartel de interesses que associou, em torno dos mega-eventos, a mídia, os interesses de grandes corporações nacionais, especuladores e o cartel empresarial internacional articulado pela FIFA e COI. Sua cegueira, autossuficiência e violência trouxeram para a esfera da ação coletiva centenas de milhares, milhões de jovens até ontem distantes da experiência política, jovens e outros não tão jovens, que embora descontentes, até ontem achavam que nada se podia fazer … a não ser aceitar a reprodução do status quo.

Nos primeiros momentos, sociólogos e cientistas políticos conservadores chamados pela imprensa a “explicar os acontecimentos”, assim como cronistas políticos de plantão na grande mídia, mostraram-se céticos e proferiram empolados seu veredicto inapelável: “rebeldes sem causa”, “arruaceiros”. Não estavam entendendo nada. Como também a Presidente Dilma Roussef e o Sr. Blatter não estavam entendendo nada ao serem vaiados na abertura da Copa das Confederações, como deixavam claro a expressão de perplexidade da primeira e o sorriso amarelo do segundo. Imaginavam ser saudados por terem construído, ao custo de mais de R$ 1 bi, um estádio para 70 mil pessoas, em cidade no qual o público médio das partidas de futebol é de 2 mil? Estavam esperando os agradecimentos do distinto público na inauguração do Estádio do qual tentam apagar o nome Mané Garrincha e emplacar o novo nome de Estádio Nacional – triste e infeliz evocação do 11 de setembro chileno, que a pancadaria deflagrada pela polícia do DF, no entorno do estádio, reafirmava?

Esta perplexidade, esta incompreensão da origem de tantos e tão diversificados protestos só têm uma explicação: o autismo social e político do poder. Em outras palavras, os dominantes não apenas difundem sua ideologia, como acreditam nela. A Rede Globo não apenas projeta um mundo fictício através de suas mensagens como, ela também, é envolvida pela mistificação que produz. Por incrível que pareça, a Rede Globo acredita na Rede Globo. Os marqueteiros acreditam em sua marquetagem política e social. E não conseguem conectar-se e compreender o mundo que escapa a suas construções imagéticas e suas mitologias.

O fato é que foram rapidamente ultrapassados. Tiveram que reconhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e abrangente manifestação política de protesto contra o status quo. Fora dos partidos, incapazes de canalizar e expressar a vitalidade e a diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso trata-se de um processo “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem olha para a árvore e não vê a floresta: transporte, saúde, educação, corrupção, democracia, desperdício dos recursos públicos, participação política, direitos humanos. Algum partido, nos últimos anos, produziu alguma pauta ou agenda mais precisa e concreta? Sob alguns aspectos, chega a ser surpreendente o altíssimo nível de consciência política expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estão indo às ruas.

Este movimento não foi casual. Embora não estivesse escrito desde o início dos tempos que ele ocorreria, não ocorreu por acaso. E se a violência repressiva o deflagrou, não o explica. Mao Tse Tung, hoje em dia pouco lido, incluiu na coletânea do Livrinho Vermelho, que foi a bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural, um texto de 1930 intitulado “Uma fagulha pode incendiar uma pradaria”. Esta pequena frase nos adverte para o engano daqueles que tentaram, e ainda tentam, reduzir o movimento à luta pela redução das passagens, ou por melhores transportes públicos. Essa é uma reivindicação dentre muitas outras. E se o Movimento Passe Livre teve a iniciativa, não é a fagulha que explica o incêndio, mas as condições em que se encontrava a pradaria. A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se. E o vento soprava de maneira intensa para espalhar o primeiro fogo.

Para tentar entender este movimento é necessário considerar, de um lado, a multiplicidade de insatisfações e lutas fragmentárias que o antecederam e que constituem, por assim dizer, seu próprio fundamento. De outro lado, há que entender as características de uma conjuntura marcada pela abertura do ciclo de mega-eventos esportivos. Se os mega-eventos, por si, também não explicam a explosão social e política, por outro lado seria difícil imaginar tal explosão fora de um contexto marcado pela farra do dinheiro público e a entrega de nossas cidades às corporações, empreiteiras e cartéis organizados em torno da FIFA, em primeiro lugar, e do COI.

Mega-eventos, mega-negócios, mega-protestos. E aqui merece menção um outro importante elemento: como muitos devem ter percebido em várias cidades, mesmo naquelas em que não haverá jogos, há uma clara consciência acerca do significado, sentido, objetivos e resultados a esperar desses mega-eventos. É possível considerar que, de maneira não desprezível, o trabalho realizado nos dois últimos anos pelos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas e pela sua Articulação Nacional (ANCOP) contribuiu de maneira marcante para construir uma consciência coletiva, mais generalizada do que se poderia imaginar, de que os mega-eventos constituem um ônus insuportável para nosso povo, desviam recursos de setores prioritários e beneficiam os mesmos poderosos de sempre.

É indispensável ter esses elementos claramente identificados, inclusive para estabelecer os próximos passos a serem dados pelos diferentes movimentos e organizações populares. Tanto mais que, as grandes manifestações abriram uma nova conjuntura de luta e reconfiguraram de maneira expressiva a correlação de forças, abrindo novas e grandes possibilidades de avanços e conquistas para os movimentos populares.

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