sexta-feira, 31 de maio de 2013

MORRER ABRAÇADO.


Amor é sempre sopro de vida, ainda que em meio à morte e aos escombros poeirentos de uma fábrica têxtil devoradora de vidas

 O edifício, que tinha cinco unidades de confecção, desabou no dia 24 de abril, quando quase três mil pessoas trabalhavam no local. A tragédia ocorrida em Bangladesh mobilizou emoções mundo afora, com seu balanço de mais de 1.000 mortos. 
Além de estrutural, a tragédia é também criminal. A polícia de Bangladesh apura as responsabilidades do proprietário do prédio que desmoronou e dos responsáveis pelas fábricas têxteis, onde centenas de pessoas trabalhavam em condições desumanas e foram impedidas de deixar o local apesar das rachaduras constatadas no edifício um dia antes. 
Em meio a todo este luto, a foto clicada pela ativista Taslima Akhter transformou-se em ícone da tragédia e denúncia profética da injustiça terrível que é sua causa direta. O casal abraçado morto sob os escombros transformou-se em símbolo eloquente daquilo que se espera que nunca mais aconteça. O rosto já enrijecido do homem, coberto de pó, apoiado sobre o corpo da mulher, cujo rosto não se vê, serve de rosto e identidade às vítimas sem voz desta tragédia. 
A parte de baixo dos corpos está enterrada no cimento. E do rosto visível do homem escorre sangue como lágrimas. Seguramente se abraçaram no momento em que ruía o prédio e eram soterrados. O abraço derradeiro dá testemunho de sua humanidade, de sua carne que procura em outra carne apoio e ajuda em um momento extremo. É o perfeito retrato da dor de um país inteiro, de um mundo inteiro. Pois quem, dotado de alguma sensibilidade, pode ficar intocado interiormente pela visão desta foto?
Com toda a dor que transmite, com toda a feiura e brutalidade da tragédia que revela, no entanto, a foto possui uma estranha beleza. Trata-se da beleza da humanidade, obra do Criador, que deixa o selo do amor mesmo em meio ao mais assombroso e aterrorizante desamor. Que marca com o selo da vida as situações onde só existe a morte e a destruição. A ternura que emana do abraço do casal não pode deixar de tocar e sensibilizar a todos que a veem e se sentem atingidos e sabem que nunca a esquecerão.
O casal da foto retrata um povo, uma parcela da humanidade que vive e trabalha em condições subumanas. Um povo solidário na opressão e na dor de sua subjugada situação. E que ao ser empurrado para a morte pela injustiça que o oprime só encontra no abraço do outro, da outra, do amor, da amizade ou da proximidade física um canal para expressar sua humanidade. 
Emocionada ao falar sobre a foto que fez, Taslima diz ser assombrada por essa imagem em seu sono e vigília. Sente como se o casal dissesse: “Nós não somos um número. Não somos apenas vidas baratas e mão de obra barata. Somos seres humanos como você. As nossas vidas são tão preciosas quanto a sua, e os nossos sonhos são preciosos também.”
Como na música de Chico Buarque “Futuros Amantes”, o casal da foto foi descoberto e seu abraço na morte trazido à luz não pelos escafandristas que mergulham em cidades submersas. Nem tampouco pelos sábios que se debruçam sobre pergaminhos e documentos antigos para decifrar seu sentido. Mas pelo clic de uma mulher inconformada com a injustiça que existe em seu país e no resto do mundo onde vive. 
Eles e ela hoje nos dizem que a única força capaz de ser sempre amável é o amor. E o amor acolhe e aplaude abraços ternos e amorosos. Mas repudia com veemência estruturas e meios de produção onde seres humanos são massacrados diariamente, expostos a perigos e agredidos em sua chama vital. 
No entanto, como diz ainda o poeta, “amores serão sempre amáveis”. E este também o é, apesar da tristeza que envolve a situação onde foi encontrado. Do fundo de seu abraço infinitamente terno, o homem e a mulher da foto de Taslima Akhter são novo Adão e nova Eva. Atestam que, apesar de tudo, amor é sempre sopro de vida, ainda que em meio à morte e aos escombros poeirentos de uma fábrica têxtil devoradora de vidas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário