segunda-feira, 29 de agosto de 2011

RODA DA FORTUNA II

Vivemos agora no novo mundo em que tudo é continuamente deletável e descartável. Do meu computador ao carro, do estilo de vida à arte, tudo que é in hoje será out amanhã. Resta-me manter atento nesse esforço permanente de atualização. E não me cobrem coerência! Se minha própria aparência física sofre frequentes modificações por força de malhações e tratamentos estéticos, por que minha identidade deve permanecer imutável?

Sim, ontem eu me alinhava ideologicamente à esquerda, assumia a causa dos oprimidos, engajava-me em protestos, expressava a minha indignação frente a esse mundo injusto. Ora, ninguém é de ferro! Se ouso mudar minha aparência para manter-me eternamente jovem e sedutor, por que não haveria de também mudar minha postura ideológica, meus princípios e ideais de vida, de modo a não perder o bonde da contemporaneidade?
Bem sei: a cabeça pensa onde os pés pisam. Conheço antigos companheiros – eles também obsoletos – que não tiveram a mesma sorte que eu e continuam a lidar com o calvário de pagar contas e aluguel, conservar o velho carro. Entendo que ainda conservem valores obsoletos e sonhem com um outro mundo possível.
Comigo, felizmente, a vida foi generosa. Graças àqueles princípios obsoletos, alcei funções de poder, destaquei-me do vulgo, adquiri prestígio e visibilidade. Troquei de moradia, guarda-roupa e mulher. Passei a dispor de uma conta bancária que engorda mês a mês e me permite desfrutar de prazeres jamais sonhados anos atrás. Hoje sou amigo, e até parceiro, de muitos que ontem eram meus inimigos e alvos de minhas contundentes críticas.
Isto é obvio: o mundo gira e a lusitana roda. Não posso correr agora o risco de despencar dos píncaros que alcancei após árdua escalada e retornar à vida anônima castigada por dívidas e dificuldades. Se perco a minha posição social, se retorno ao mundo obsoleto, como haverei de manter meu confortável padrão de vida, o sítio, a casa de praia, as férias no exterior, a troca anual de carro? Como haverei de propiciar a filhos e netos o conforto que jamais tive na infância e na adolescência?
A vida dá voltas, e é preciso, nesse mundo de competitividade, ter sempre à mão o Manual de Sobrevivência na Selva. Esforço-me para, na disputa feroz por um lugar ao sol, não me tornar, também eu, um ser descartável, deletável, obsoleto.
Cultivo hoje a meridiana clareza de que só vale a pena sofrer riscos quando se vive uma vida medíocre, anódina, de gado no rebanho. Agora que alcancei a singularidade nesse mundo de anônimos, e me tornei uma pessoa diferenciada do vulgo, só me resta estar atento para não me tornar também um ser obsoleto.
Não devo mais olhar para o passado, onde jazem esquecidos meus ex-heróis, nem para o futuro, como se ali houvesse um ideal histórico. Basta-me olhar para dentro de mim mesmo e saber explorar ao máximo o que tenho de melhor: a astúcia de minha inteligência, a força de minha vontade e o poder de traficar influências.










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