terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

UMA HOMENAGEM A ELIS REGINA

A Pimentinha, o furacão de voz potente e aveludada. Jeito de menina e coração maduro de mulher. Sorriso maroto escondendo dores e amores. Temperamento forte, que picava feito pimenta na boca, fazendo língua arder e olhos chorarem. Arte que explodia em beleza e maravilha, fazendo a baixinha ganhar estatura de gigante e os ouvintes vibrarem em uníssono, arrastados por seu canto.

Arrastar... era isso que Elis mais sabia fazer. Arrastar a plateia com seu canto, com os movimentos de seu corpo, sua vibração única e incontida. Arrastar a imaginação dos que a ouviam e imaginavam, inspirados por sua voz única e inconfundível, praias e redes cheias de peixes, águas caindo em março e fecundando terra e fechando os caminhos.
Sou da geração que Elis “arrastou”. Arrastou com sua voz, com seu canto, com seu repertório impecável, com sua voz inigualável a experiências de plenitude de vida e gozo musical. Arrastou para um novo tempo, uma nova etapa de viver. Nós e o Brasil estávamos passando por profundas transformações. E a força vulcânica da arte de Elis Regina ajudou a nos “arrastar” para uma esperança que, para muitos de nós, já não parecia possível. Ouvir a vibrante voz da Pimentinha conclamando a entrar no mar e acreditar numa pesca milagrosa quando o mar parecia literalmente “não estar para peixe” foi algo inesquecível.
Tive a oportunidade de acompanhar toda a sua trajetória. Conscientizei-me com suas canções de protesto: Upa Neguinho, Estatuinha, Deus com a família. Chorei muito e sentidamente com Eu preciso aprender a ser só. Vivi romance empolgante com Falso Brilhante. Rezei tanto e tantas vezes ao som de Romaria, que até hoje facilita o encontro de tantos e tantas com Deus. E vibrei, com tantos, com quase todos, quando O bêbado e a equilibrista nos fez lembrar que não havia que deixar de sonhar com a “volta do irmão do
Henfil e de tanta gente que partiu num rabo de foguete”.
Depois, tão cedo, tão prematura, a notícia de sua morte. Notícia triste, tão triste que não apenas o Brasil chorou, mas o mundo inteiro. Perder tão cedo uma artista assim completa, assim agraciada, assim vital, era um empobrecimento cruel que nos golpeou duramente. E do qual até hoje não nos recuperamos completamente. Outras artistas vieram simultânea ou posteriormente a Elis. Mas há um lugar ocupado por ela, onde até hoje existe um vácuo. Sua unicidade ainda é um fato na constelação privilegiada que ilumina a arte brasileira.
Pois que artista algum dia pensou em inscrever a própria voz, como se fosse um instrumento, na Ordem dos Músicos do Brasil? Ela o fez. E bem o fez, pois sua voz era em realidade um instrumento, puro e melodicamente afinado pelo próprio Criador, que conhecia os sons corretos e absolutamente adequados a emitir a cada instante e momento. A voz de Elis era algo por demais precioso para não figurar ao lado de oboés, violinos, cellos etc.
Aos 36 anos ela se foi. Certamente ficaria triste se soubesse que hoje quando se fala em arrastão não se pensa na vibração de alegria da canção de Vinicius e Edu Lobo que ela imortalizou. Arrastão hoje, Elis, infelizmente significa algo feio e triste. São muitos meninos pobres e infelizes, descendentes diretos do neguinho com o qual você fazia Upa, que não encontram sentido para suas vidas vergadas pela injustiça e pela opressão que herdaram.
E, então, encontram no furto e no roubo o gesto com o qual expressam sua raiva, sua não conformidade. Arrastão é sinônimo de violência, de desordem, de caos, não da alegria esfuziante que você cantou. O “Brazil” que não conhece o Brasil e que nunca foi ao Brasil que você denunciou com seu canto continua ativo. Infelizmente. São necessários mais talentos como o seu para exorcizá-lo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário