quarta-feira, 11 de agosto de 2010

PASSIONE A MENTIRA VENCEDORA

Passione é veneno puro, alienação pura, maldade pura. E baixaria para todos os gostos, altitudes e latitudes. A galeria de tipos representa o que há de mais miserável na espécie humana. Começa por filho destratando (estou pegando leve) mãe e sempre a um passo da agressão física, já que a agressão verbal ultrapassa todo e qualquer limite do que poderia ser o diálogo entre um filho e uma mãe. Refiro-me a Werner Schunemman com o seu Saulo e a Fernanda Montenegro, com a sua Bete Gouveia. Até o momento a emissora ainda não nos brindou com cenas de espancamento explícito, aquelas em que Bete será surrada impiedosamente pelo filho.
A mulher de Saulo, vivida por Maitê Proença, é um poço de vida vazia e miserável, ninfomaníaca, mulher manipuladora e sem qualquer noção de ridículo, seduz jovens por shoppings da cidade, que obviamente trai o marido Saulo duas a três vezes por semana, trai a própria filha, tem caso com o caso da filha. O ar de sensualidade – com validade vencida – de Maitê permeia toda a novela, seus olhares são sempre fatais e obsessivos. Lembram os poemas de Pietro Aretino, filho de um sapateiro, contemporâneo de Leonardo da Vinci e Michelangelo, autor dos Poemas luxuriosos.
Aliás, não sei o que deu na Globo – todas as mães são vilipendiadas, desrespeitadas, humilhadas e ofendidas. E se forem avós, a possibilidade de serem aquelas que ofendem e humilham os demais será quase certa. Tem a mãe e avó Valentina (Daisy Lúcidi) que é cafetina, sempre apta a arranjar homens maduros para cliente de sua neta (Kelly), ainda adolescente, meio tímida e sempre assustada. A pressão psicológica exercida por Valentina sobre a neta é algo que supera qualquer escala de coisa despudorada, nojenta, asquerosa. Prostituição de menores bancada por membro da família merece ser abrigada no imenso guarda-chuva da liberdade de expressão?
Tem a mãe e avó (Cleide Yáconis) que adentrando seus 105 anos tem como único objetivo trair o marido Antero (Leonardo Villar) com o bonachão vivido por Elias Gleiser. Considerando que a idade somada dos dois artistas beira o bicentenário, há momentos em que o constrangimento nos faz querer mudar rapidamente de canal. A forma insidiosa com que Yáconis ludibria o marido deixa claro que se existe algo que não tem idade é o desejo de ser vulgar, sacana, o gosto irreprimível pela traição. Ajuda a destruir qualquer bom sentimento que as avós costumam inspirar como aquela angelitude espontânea, aquela bondade ilimitada emoldurada por respeitosos cabelos prateados. Tem a mãe que criou a neta como se filha fosse, caso da personagem Candê vivida pela veterana Vera Holtz. Provavelmente é a novela que leva às telas o maior número de pessoas da terceira e da quarta idades. Lastimável que em sua maioria são pessoas quando não patéticas, ao menos muito desmioladas.
Mariana Ximenes é a protagonista. Veste a personagem Clara Medeiros: uma mulher mentirosa, sem escrúpulos, que só quer tirar proveito das situações. Trabalhava como enfermeira do marido de Bete e será a única a escutar a revelação que o empresário faz à esposa antes de morrer. É neta de Valentina, a quem não suporta, e irmã por parte de mãe de Kelly (Carol Macedo), a única pessoa com quem parece ter um vínculo de afeição. Parece ter sido criada a partir da música de Reginaldo Rossi sobre aquela que iria trair o marido em plena lua de mel. E fez isso mesmo. Engana qualquer um que lhe cruze à frente. Mente com tanta naturalidade e sempre vê sua mentira vencedora absoluta. Ilude um e outro, rouba um e outro, simula incêndio para matar marido, incrimina colega de profissão, arquiteta planos mirabolantes, se vende na noite paulistana e mostra falta de caráter de forma cabal e completa.
Pelo que vejo, passar 10 dias assistindo a capítulos de Passione não terá sido de todo em vão. Aprendi que se a liberdade for total, sem qualquer balizamento, sem quaisquer princípios reguladores, viveremos apenas a liberdade dos animais e não a liberdade adequada a nós, humanos. Aprendi que não basta dispor de todos os recursos humanos e materiais, não basta deter tecnologia de ponta para por em funcionamento a fábrica de ilusões que atende pelo nome de núcleo de dramaturgia de nossas principais emissoras de tevê. Há que se lutar por um tipo de arte que eleve a condição humana. Onde foi parar o senso crítico da rapaziada? Será que nenhum anunciante encontrará alguma convergência com os pensamentos ora alinhavados?

Impressiona ver tantos talentos desperdiçados com uma trama que endeusa a pequenez humana, passa ao largo de todo e qualquer valor humano, desses que uma vez vividos nos fazem pensar que a vida humana é o bem mais precioso que podemos ter. Passione é um atestado de falência múltipla dos diversos órgãos que formam o organismo da sociedade atual, onde quanto mais anormal, mais desprezível for um ser humano, maior será sua aceitação pelos demais, e quanto menos virtudes humanas uma trama tiver, maior será seu êxito comercial.
Mas, como levantar o assunto sem ser acusado de tocar as sagradas vestes da... liberdade de expressão? Por que precisamos nos contentar com um banquete faustoso, amplamente publicizado, reunindo a nata da dramaturgia brasileira experimentada nos últimos 50-70 anos, e que nos serve em horário nobre, ao longo de vários meses, nada menos que comida estragada?







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