A teologia cristã tem uma relação complexa com o trabalho e um entendimento ambíguo deste. Por um lado, o apóstolo Paulo afirma que cada pessoa tem de trabalhar, pois “quem não trabalha não tem o direito de comer”. O livro do Gênesis afirma que o trabalho encontra sua fonte no próprio Deus que trabalhou para criar o mundo. E aqui o judaísmo se diferenciava do pensamento greco-romano, para o qual o trabalho “braçal” era indigno dos cidadãos, devendo ser feito apenas pelos escravos. Por outro lado, o trabalho está colocado debaixo de maldição desde a “Queda” de Adão e Eva - trabalho do homem com suor e canseira; trabalho de parto da mulher com dores e suores. É o castigo pelo pecado original e, portanto, tem muito mais uma dimensão de pena do que de prazer.
O Novo Testamento confirma a visão da necessidade do trabalho que Paulo ratifica com palavras do próprio Jesus: “Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho”. Afinal, de que trabalho se trata, este que o próprio Deus não cessa de executar, e que seu Filho, encarnado e andando pelo mundo, também exerce continuamente? Pode tratar-se de um castigo algo que o próprio Criador executa sem cessar, ao preço de afadigar-se divinamente? Pode ser apenas suplício e dor, algo que o Filho contempla como sendo a atividade constante de seu amado Pai?
Vale meditar em algumas implicações da fé cristã para uma teologia do trabalho. Sobretudo em tempos onde um trabalho enobrecedor e criativo corre o risco de desaparecer, engolido por um ativismo febricitante e louco, onde o emprego tomou o lugar do trabalho e é exercido apenas para sobreviver, enriquecer e consumir, sem nenhuma conotação de criatividade, gozo ou transcendência. Há pessoas que são empurradas para um trabalho que as embrutece porque senão morrem de fome. E há outras que trabalham cada dia mais para poder acumular os bens sem os quais creem não poder viver. O fim de umas e outras é uma morte prematura, seja por infarto, hipertensão ou depressão e suicídio.
A filósofa francesa Simone Weil experimentou na carne as agruras do trabalho operário em fábricas da primeira metade do século XX. Ali sentiu que à medida que passava os dias em frente das máquinas, os pensamentos iam fugindo e escapando de sua mente. As cadências das máquinas e o ritmo da produção eram muito rápidos. Simone havia sido sempre lenta para os trabalhos manuais e não estava habituada a agir sem pensar. Ela fazia a triste descoberta de que a sociedade moderna se edifica sobre trabalhos para os quais o ser humano deve obrigar-se a não pensar. E constatou que se não houvesse o repouso hebdomadário, que fazia as ideias voltarem a circular em sua cabeça, ela estaria logo convertida em uma besta de carga.
No entanto, aconteciam lampejos de solidariedade fraternal que a consolavam. Cada vez que sentia na pele a mordida da queimadura do forno, o soldador que se encontrava à sua frente lhe dirigia “um sorriso triste, cheio de simpatia fraterna”, que lhe fazia “um bem indizível”. E quando o calor, a fadiga e a dor a faziam perder o controle dos movimentos, impedindo-a de baixar a tampa do forno, um metalúrgico baixava-o para ela. Isso a inundava de gratidão e reconforto.
E Simone então reflete sobre esta dupla face do trabalho: “Tenho o sentimento, sobretudo, de haver escapado de um mundo de abstrações e de me encontrar entre os homens reais – bons ou maus, mas de uma bondade ou de uma maldade verdadeiras. A bondade em uma fábrica é qualquer coisa de real quando ela existe; pois o mínimo ato de benevolência... exige que se triunfe da fadiga, da obsessão do salário.”Quando Simone Weil saiu da fábrica, após um ano, sentia que sua juventude havia ficado para trás e ela se encontrava marcada pelo ferro em brasa da escravidão. Escravidão essa que, segundo ela, é “o trabalho sem luz de eternidade, sem poesia e sem religião.” Todo trabalho, para ser criativo e realizador, deve ser ungido por essa transcendência que nos diz que não somos animais nem bestas de carga, mas participantes ativos no trabalho do Criador, que jamais abandona a obra de suas mãos.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário