quinta-feira, 6 de junho de 2013

UMA HOMENAGEM A HENFIL

13.05.05_Henfil
Este artigo relembra o momento marcante do cartunista Henfil (1944-1988) no veículo pioneiro da imprensa alternativa dos últimos decênios, o saudoso semanário Pasquim. Foi lá, em plena ditadura militar, que este notável artista do traço se projetou nacionalmente viveu uma das fases mais criativas da carreira. O seu humor debochado, cortante e feroz se ajustou como uma luva ao espírito indomável de um jornal que desafiava a cara feia de censores e ditadores e sabia, a cada edição, aquecer nossas esperanças e utopias. Entre Henfil e Pasquimhouve a junção das forças demolidoras do sarcasmo e da ironia para “oxigenar as mentes oprimidas pelo pesadelo diuturno da boçalidade ditatorial”, como magistralmente definiu Janio de Freitas no prefácio de meu livro O rebelde do traço: a vida de Henfil.
Além do espaço precioso para dar vazão ao inconformismo com as injustiças e preconceitos sociais, Henfil ressaltava sempre o valor das transformações de linguagem, de estilo e de conteúdo que o semanário introduziu na cena jornalística. “O Pasquim foi a Lei Áurea da imprensa”, avaliaria em depoimento a Jorge Ferreira (GAM, julho de 1976). “O jornal modificou a linguagem; a gente podia escrever e desenhar de uma maneira muito pessoal – foi essa a chave do negócio – e muito irreverente. Tínhamos liberdade para usar palavrões, se fosse o caso, nos textos. O Pasquim ousava na crítica política no momento em que a imprensa estava toda calada, e fazia crítica de costumes. Era um exercício muito grande de democracia: ninguém pensava igual ao outro, ninguém concordava com ninguém (…), houve, inclusive, grandes paus dentro do próprio jornal.”
Mesmo censurado pelo regime e acossado, até a asfixia, por dificuldades financeiras, o Pasquim impôs-se pela imaginação incontrolável e por alvos claros: a ditadura, a classe média moralista, a imprensa reacionária, os coniventes de plantão. E ainda ocupou o vácuo existente entre a cultura oficial e a tradição de esquerda, discutindo modos de vida, padrões de comportamento e até ecologia. A diagramação valorizava ilustrações, desenhos, caricaturas e montagens fotográficas. As frases no cabeçalho da capa aturdiam: “Pasquim, ame-o ou deixe-o”, “Um jornal que tem a coragem de não se definir”, “O papel da grande imprensa: papelão”, “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
Henfil começou a destacar-se na galáxia de gênios do Pasquim (Ziraldo, Jaguar, Millôr Fernandes, Fortuna, entre tantos outros) com as tiras da dupla de frades dominicanos Baixinho e Cumprido. A série havia sido publicada originalmente de julho a dezembro de 1964, na revista Alterosa, em Belo Horizonte, quando o cartunista tinha 20 anos. O diabólico Baixinho arrastava o comedido Cumprido em suas estripulias nada puritanas. Chutavam latas de lixo pelas ruas; tocavam campainha nas casas e saíam correndo; cuspiam nos pedestres que passavam embaixo das árvores em cujos galhos se escondiam.
Os contornos dos Fradinhos espelhavam um conflito de personalidades que, na realidade, era do próprio Henfil: o lado careta, carola e conservador, representado por Cumprido; e o lado revolucionário, anarquista e utópico, encarnado pelo Baixinho. O primeiro herdado da formação familiar mineira e católica; o segundo inspirado na pregação libertária dos dominicanos e agudizado pela consciência de viver numa sociedade de desigualdades e imposturas.
No Pasquim, Henfil injetou uma overdose de sadismo no Baixinho, reforçando-lhe a índole anárquica. A marca indelével era o gesto obsceno da mão esquerda fechada, formando o punho, e a direita, espalmada, batendo sobre a esquerda. O efeito sonoro – “top, top, top” – equivalia a uma maneira pouco ortodoxa de dizer que o outro estava ferrado. Sem abdicar do hábito dominicano, Baixinho atropelava os mais transcendentes pruridos. Tirava meleca e grudava no corrimão da escada; colocava casca de banana para alguém se arrebentar no chão; atraía um esfomeado cãozinho com um osso e o abatia com um porrete; empestiava um velório com uma essência fétida para espantar os amigos do morto, esperava uma criança na descida do escorrega com uma gilete… A cada crueldade, inacreditavelmente sorria.
A  agonia final do Pasquim, na segunda metade da década de 1980, coincidiu com a doença e a morte de Henfil, por complicações decorrentes da Aids, depois de contrair o vírus HIV em transfusões de sangue exigidas por sua condição de hemofílico. Nos derradeiros anos, o ganha-pão de Henfil vinha das charges que publicava diariamente em O Globo e O Estado de S. Paulo. Por ironia, empregos em jornalões que sempre combatera ideologicamente – e nos quais procurou, a todo custo, preservar os conteúdos críticos de seus desenhos.
A eventual válvula de escape era o combalido Pasquim, no qual publicou uma de suas últimas tiras, tão reveladora da genuína rebeldia que caracteriza seu extraordinário legado. Baixinho e Cumprido caminham juntos. Cumprido discursa: “Meu papel histórico é estancar o pus dos sofredores, absorver o sangue dos injustiçados.” Baixinho vira-lhe as costas, rebatendo: “Isto não é um papel histórico, isto é um Modess…”

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