sexta-feira, 13 de julho de 2012

A ESCRITA DE SÍ.

Um escritor francês de quem muito gosto, Gilbert Cesbron, dizia que o único critério de verificação para alguém saber se é realmente ou não um escritor é perguntar-se se pode viver sem escrever. Fiz a mim mesma esta pergunta algumas, várias, muitas vezes. E a resposta foi sempre a mesma. Não, não consigo viver sem a página em branco – agora tela em branco - que me convoca e a pena na mão que treme, hoje substituída pelos dedos no teclado... que também tremem.
Por que o tremor? Por causa do temor... íntimo, profundo e quase santo da responsabilidade que é criar um texto, formar palavras, agrupar letras, encadear sílabas que outros lerão. E quando o leitor ou leitora é apenas o eu que treme não é menor o temor, nem menos avultada a responsabilidade.
Pois escrever é fixar, é guardar, é inscrever no tempo e no espaço da folha ou da tela algo que, mesmo desconhecido para a maioria, passará a fazer parte da história da humanidade como síntese única e experiência irrepetível. E porque sabiam disso, os grandes mestres espirituais da história sempre disseram a seus discípulos que escrevessem.
Pois ao lado da escolha por escrever para dar sentido à vida está presente igualmente a pulsão pela escrita de si para salvar-se da morte. Quem escreve um diário busca, além de entender-se e ao mundo que o rodeia, colocar-se protegido do caos e do tempo que passa, inexorável. E assim, como afirma Maurice Blanchot, salvar o vivido no escrito e salvar a vida mediante a escrita.
Em todo caso, exercício ascético, literário ou filosófico, o fato é que escrever-se é uma prática recorrente e viva por parte da humanidade. Testemunhas disso são os preciosos diários e livros confessionais e de memórias que brotaram da experiência e da pena de tantos gênios e santos (como Inácio de Loyola, Etty Hillesum, Pedro Nava, Walter Benjamin e inúmeros outros e outras).
Michel Foucault, em seu memorável texto “A escrita de si”, reflete sobre a escrita dos movimentos interiores como exercício ascético. Escrever os próprios desejos, pensamentos, impulsos, é aprender a conhecê-los e, consequentemente, poder dominá-los e exercer controle sobre eles. Assim também escrever tentações, pensamentos destrutivos, arranca o desejo do anonimato em que se encontra, escondido ao fundo da liberdade humana, e o expõe no código da escrita.
Refletindo sobre o citado por Foucault - exalta as virtudes da escrita como disciplina excelente que descobre os maus pensamentos, tentações e pecados ao próprio indivíduo e exerce papel semelhante ao da comunidade que corrige fraternamente o homem religioso que busca a perfeição. “Aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade, sê-lo-á o caderno de notas para o solitário”
No fundo, toda essa reflexão vai demonstrando que por mais objetiva que seja a escrita e por maior neutralidade que pretenda o escritor, escreve-se sempre para si mesmo e a partir de si mesmo. Não escreve quem não passou pelo crivo da experiência a narrativa que constrói, os personagens que cria, as situações que inventa. E tampouco as definições, argumentações e teses que rigorosamente encadeiam no texto acadêmico, dirigindo-se à razão alheia, mas não deixando de tocar nos elementos vitais sem os quais essa razão não merece o nome de humana.
Em um tempo em que a narrativa – como experiência, como exercício, como prática lúdica ou docente – parece estar em crise ou mesmo desaparecendo, a escrita de si adquire o cunho de resistência, resiliência, de quem não desiste de permanecer na contramão do tempo cronológico.

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