quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

VOU TIRAR O POVO DA MERDA EM QUE SE ENCONTRA

Vamos aos fatos. O presidente disse literalmente a situação em que o povo se encontra. Não estou me referindo ao povo que mora na Avenida Atlântica ou na Delfim Moreira, no Rio de Janeiro, nem ao povo que mora em São Paulo na região dos Jardins. E muito menos ao povo que mora nos casebres de 1.500m2 de área construída no Lago Sul de Brasília. Se a fala presidencial fosse dirigida a este público-alvo seria, sim, um engano colossal, pois erraria o presidente tanto na forma quanto no conteúdo. Mas, a bem da verdade, o chefe de Estado e governo foi certeiro: o povo realmente encontra-se na merda já que apenas 42% dos cidadãos brasileiros são atendidos por coleta de esgoto. É que há um atraso gigantesco a ser zerado.

E mesmo com todos os recursos reservados pelo governo federal para tornar factíveis projetos de saneamento básico nos últimos anos, a verdade é que com o atual ritmo de investimentos em obras de coleta de esgoto o Brasil só terá universalizado esse serviço público essencial daqui a nada menos do que 62 anos. Se não fosse a percepção dessa realidade, que tanto escandaliza a mídia do centro sul do país, talvez fossem necessários 109 anos para que os brasileiros pudessem desfrutar de uma atmosfera, vamos dizer assim, minimamente amena.

De qualquer forma, a expressão usada pelo presidente – que até meu teclado não se sente confortável para ficar digitando a torto e a direito – não é das palavras mais pesadas do repertório do baixo calão em português. Temos outras e muito piores. Acontece que esta – em especial – é de uso corrente no cotidiano dos brasileiros. É verdade também que não ecoa em salões nobres da academia com frequência e nem é recorrente em falas presidenciais. É fato que presente no evento maranhense encontrava-se o senador José Sarney, membro da Academia Brasileira de Letras, ex-presidente da República e presidente do Senado Federal. De qualquer forma não é palavra-tabu. Longe disso.

Raivas passageiras, pequenas barbeiragens no trânsito são capazes de se fazer ouvir a palavra. Será que ninguém sabe que quando um espetáculo se apresenta os artistas de teatro usam a expressão "merda" para desejar boa sorte? A tradição se sustenta na fantasia de que desejar boa sorte pode dar azar. Funciona como espécie de reversão do desejo, como se os deuses punissem a ambição. E há quem diga que a nossa tradição vem da francesa "merde".

"Merda" é nome de música composta por Caetano Veloso. Destaco estes versos:

"Gente que pôde inverter/ Para sempre o sentido/ Da palavra `merda´/ Merda! Merda pra você!/ Desejo/ Merda!/ Merda pra você também/ Diga merda e tudo bem/ Merda toda noite/ E sempre a merda..."

O mesmo Caetano que há algumas semanas chamou Lula de analfabeto, grosseiro e cafona. Recebeu repreensão de todo lado, inclusive de sua centenária mãe, dona Canô. 

"Ato espontâneo"

Chico Buarque, o grande autor de "Construção" em entrevista à revista TPM (2006) denunciou o adjetivo, supostamente dirigido ao então candidato Lula:

"Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial [do FHC]... mas qualquer um vai no jornal e manda que o Lula é um merda. Se os candidatos forem Lula, Alckmin, Garotinho, voto no Lula." 

Oscar Niemeyer usa essa expressão para designar o nosso mundo e ao mesmo tempo fazer sua profissão de fé:

"Se eu fosse jovem, em vez de fazer Arquitetura, gostaria de estar na rua protestando contra este mundo de merda em que vivemos. Mas, se isso não é possível, limito-me a reclamar o mundo mais justo que desejamos, com os homens iguais, de mãos dadas, vivendo dignamente esta vida curta e sem perspectivas que o destino lhes impõe".

Ante a celeuma levantada o assunto terminaria na alçada do bispo. E coube ao presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Geraldo Lyrio Rocha, minimizar já no dia 11/12 o "palavrão" dito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante o agora famoso discurso no Maranhão. Dom Geraldo disse que, apesar de não falar palavrão, não pode tornar "grave" um gesto "espontâneo" do presidente da República.

"Eu acho que isso [palavrão] pode ter sido um ato espontâneo. Não devemos minimizar coisas graves, nem tornar graves as coisas mais simples. Eu não falo palavrão, mas prefiro não julgar. Palavrão não cabe em contexto nenhum, mas não cabe a mim julgar. Só Deus é quem pode julgar", disse. 

Portanto, o assunto é de alçada mais elevada, está na esfera mesma... da divindade. É o que o bispo diz.

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