quarta-feira, 18 de maio de 2016

ALGUMAS SELETIVIDADES

Era o fim da década de 1980. O Brasil vivia o fervor do retorno da democracia. Depois das “Diretas Já” que acabaram elegendo indiretamente Tancredo Neves que, ao morrer antes de tomar posse, deixou lugar a José Sarney que com o Plano Cruzado conseguiu eleger uma Constituinte não exclusiva nem democrática, estávamos finalmente vivendo o frêmito da primeira campanha presidencial que, depois de quase 30 anos, iria eleger diretamente o máximo mandatário do país.

Pois foi nesta época que, nas Ilhas do Guaíba em Porto Alegre e nos fundos do Bairro Mathias Velho, em Canoas, começaram as primeiras experiências de Coleta Seletiva de resíduos urbanos no Brasil. A alma da iniciativa – como de tantas outras que nasceram da organização popular – foi o Irmão Antônio Cecchim. Com sua fé inabalável no Deus da vida e na capacidade de organização dos mais pobres, ele começou a organizar os carrinheiros, carroceiros e catadores de materiais. Ao ar livre, sob a sombra das árvores ou em galpões precários, fazia-se a separação dos vários tipos de papel, as muitas categorias de plásticos e, o que era mais valioso, os metais e, entre estes, o alumínio, verdadeira pedra preciosa.

Na Mathias Velho, quem assumiu a causa da coleta seletiva foram os frades capuchinhos e as irmãs de várias congregações que ali atuavam junto aos miseráveis das vilas recém formadas em consequência do êxodo rural. Os freis Volmir Bavaresco e João Carlos Romanini foram, durante anos, os companheiros e assessores daqueles homens e, na maior parte dos casos, daquelas mulheres que, coletando e selecionando materiais, conseguiam dali tirar um sustento para suas famílias e, de lambuja, ajudar no funcionamento da vida das cidades e na preservação do meio-ambiente.

A importância da coleta seletiva iniciada de forma tão artesanal e na base da cara e da coragem foi sendo pouco a pouco reconhecida, ganhou amplitude e qualidade e, em muitas cidades, foi incorporada às práticas de gestão das cidades e transformou-se numa atividade econômica que movimenta milhões.

Lembrei dessa história nestes dias em que nosso País passa por um outro momento importante da sua história de democracia nem sempre tão democrática e o princípio da seletividade está sendo usado com intensidade no campo da justiça e da operacionalidade democrática. No campo da justiça, um mesmo ato, quando cometido por umadeterminada pessoa ou por um membro de um determinado partido, é considerado crime e, quando cometido por outra pessoa ou por membro de outro partidonão levam a nenhuma punição... Ou então, uma eleição, quando vencida por determinado partido, é considerada ilegítima e quando um outro partido toma de assalto o poder sem ter passado pelo crivo das eleições, isso é visto como se fosse a maior normalidade democrática!

Tudo ao contrário do que nos ensinaram nossos mestres catadores. Eles separavam papel, plástico, metal e material orgânico. Mas sabiam que papel é sempre papel, plástico sempre é plástico e metal sempre é metal e que cada um tem um valor inerente que independe da preferência pessoal que eu possa ter por um deles.

Talvez tenhamos que aprender com nossos catadores como se recicla a vida política de um país e possamos aprender com eles o que pode ser reaproveitado ou não daquilo que sobrou de nossa precária convivência democrática.

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