segunda-feira, 17 de março de 2014

" CARTA A UMA MENINA".

No Dia Internacional da Mulher pensei a quem homenagear. E só você me vinha à cabeça. Você que é uma menina de apenas nove anos, que tem um corpo frágil e magrinho, cabelinhos compridos atados em rabo de cavalo. Você que deveria estar brincando com bonecas e, no entanto, teve sua infância brutalmente interrompida dentro de sua própria casa. Você de quem não sei o nome, mas de quem acompanhei a tragédia pelos jornais, televisão e toda a mídia disponível neste mundo que se excita de curiosidade com o sofrimento alheio.
Aquele que acabou com sua vida de menina vivia em sua própria casa e era marido de sua mãe. Mas ele não era uma pessoa normal e por isso, às escondidas como costumam agir os criminosos, além de ter sua mãe no leito, também para lá levava você e sua irmã mais velha, que além de ser menor é deficiente física. Abusava de vocês que, por medo ou por inocência, não se queixavam nem o descobriam diante de sua mãe. E o estupro silencioso continuava povoando a casa que devia ser de convivência familiar, transformando-a em bordel sem paga, usando duas menores para saciar a sede de sexo de um homem que não era marido nem padrasto e sim tarado e criminoso.
Você certamente não entendia nada do que estava se passando com seu corpinho de menina. Não entendia por que aqueles seios crescidos, as dores no ventre, o mal estar. Tinha medo de perguntar. Medo de ser mal compreendida, medo de apanhar, de ser castigada. Por isso calou até que as dores se tornaram insuportáveis e você se abriu com sua mãe, que constatou sua gravidez de gêmeos. Sua mãe que nunca desconfiou de nada, porque seu padrasto tratava você muito bem.
Eu acredito nela. São tão indefesas as mulheres diante do homem a quem amam e com quem vivem, muitas vezes. São tão impotentes para reconhecer que muitas vezes eles só querem fazê-las de ponte para usar as filhas menores que estão com elas. Não foi apenas sua mãe que sofreu esse horror. A grande atriz Mia Farrow teve que passar pela dor de ver seu marido, o talentosíssimo diretor Woody Allen, admitir que molestava sexualmente suas duas filhas - uma de 15 anos e outra menor ainda - e que ia separar-se dela para viver com a mais velha, uma linda vietnamita que os dois haviam adotado para criar e proteger.
Eu sei, querida, que mal de muitos não é consolo, a não ser de bobos. Seu caso, infelizmente, apenas engrossa estatísticas que já têm dimensões simplesmente terríveis. Nestas últimas semanas, nosso noticiário esteve cheio de casos de meninas como você, que foram violentadas, sofreram constrangimentos e morreram em consequência da violência de que foram vítimas.
Por isso, quando todos celebram as conquistas da mulher emancipada no mercado de trabalho, na vida sexual e em não sei mais quantos terrenos, eu quero homenagear você. A mídia parecia não se interessar muito por sua pessoa. Estava mais preocupada em confrontar os médicos, o bispo, a polícia etc.
Eu estou preocupada com você. Gostaria de estar perto para poder abraçá-la, beijá-la, dizer-lhe que é uma pessoa amada e querida por Deus que a criou; que toda essa maldade que se abateu sobre você não pode destruir sua identidade de filha de Deus; que com a ajuda dele poderá superar tudo isso e transformar sua dor em ajuda, para que outras meninas não sofram o que você sofreu.
Como estou longe, não posso dar-lhe mais que esse texto. Que você o sinta como um afago, mesmo sem lê-lo. Que seu frágil corpinho nos sirva de ícone para lembrar-nos que enquanto a violência contra a mulher, sobretudo aquela que é menor de idade, for uma realidade tão constante em nosso país, não faz o menor sentido comemorarmos estatísticas que falam de libertação da mulher. As vítimas nos interpelam e a nossos discursos triunfalistas. Voltemo-nos para as prioridades que ainda não estão atendidas. E quando se virem os frutos, aí sim, poderemos celebrar.

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