segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

MOFO

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Viver em uma cidade milenar permite que a gente descubra certas tendências que as arquiteturas modernas não podem cultivar no nosso coração. De repente, percebe-se um encantamento especial por uma ruína, e não falo dos monumentos mais conhecidos, mas de construções em estado de quase abandono, vigiadas pelo olhar comovido de quem vive Roma em cada ruazinha, em cada esquina, e que salva o património do esquecimento.

Deve ser por isso que fiquei tão chocada quando uma vereadora da cidade criticou uma associação que propõe a projeção de velhos filmes. Tempos atrás, num artigo que não publiquei por achar que havia temas mais importantes a tratar, escrevi sobre Ladrões de Bicicleta, um clássico do neo-realismo italiano que revi, reconhecendo as ruas e os prédios, não apenas nas cenas que enquadram o centro, mas também nas que mostram a periferia.

Decidi que não falaria do assunto e que o filme podia esperar para outra ocasião. Mas a mente não perdoa e reelabora a seu modo o que nos assusta e o que evitamos comentar. Eu tinha prometido não falar sobre isso, então o meu cérebro se vingou produzindo este pesadelo:

Eu morava em uma cidade altamente tecnológica. Nenhuma ruína, nenhum Coliseu a que meus olhos já se acostumaram. Nenhum prédio antigo. Também não havia árvores. Todos os residentes precisavam produzir novidades e só novidades importavam. Quem não inventava algo novo era preso e colocado fora da cidade. Eu tentava me adaptar, não tanto por convicção como pelo terror de acabar numa prisão. E assim, o medo me levava adiante e me dava a oportunidade de ver um rio de gente a ser detida e sumindo nessa prisão nunca vista, mas temida só por ouvir dizer. Acordei sobressaltada, um minuto antes que o pesadelo me conduzisse ao epílogo óbvio: seria presa por não ser suficientemente inovadora. E pensei, enquanto sentia o cheiro dos lençóis e da casa, os odores familiares que nos transmitem segurança, que realmente não sou inovadora em nada. O meu pesadelo era apenas uma reelaboração de O Alienista, de Machado de Assis.

Também lembrei de outro artigo que li esta semana: uma equipe de matemáticos está estudando o Vedas, uma antiga antologia de textos em sânscrito que até hoje não foi plenamente decifrada. Os cientistas acreditam que a lógica do texto está baseada em um sistema de escolha inteligente, capaz de indicar a melhor solução em um evento crítico, que não pode ser resolvido por meio de um sim ou um não. Eles pretendem usar a sintaxe do Vedas para projetar carros inteligentes, em condições de identificar a melhor solução para momentos críticos, por exemplo: bater o carro em um muro ou atingir o pedestre?

Voltei a pensar nos velhos filmes, na vereadora e nos odores. Não posso imaginar um mundo sem o cheiro do mofo. Não posso imaginar um mundo sem o cheiro da história. Não posso imaginar um mundo desprovido de memória. Nem os carros inteligentes e altamente tecnológicos podem abrir mão disso.

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