quinta-feira, 31 de agosto de 2017

INVEJA, O QUE?

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Esses dias me disseram que o problema é a inveja. Então: estava faltando a inveja no pedaço. E motivo tem: a inveja é um mal secreto, quem sente não diz, quem sofre não vê.

De fato, a minha mãe sempre me pede para tomar cuidado com os invejosos, mas como vou enfrentá-los, se eu não sei quem são e onde estão? Todos os que declararam abertamente a sua inveja de mim usavam ironia: quando a gente admite de forma explícita o sentimento, a palavra literal para descrevê-lo não é inveja, é admiração.

A inveja, como a gente sabe, não pode ser expressa com sorriso, tapa nas costas, piscadinha pelo canto do olho, cumplicidade. A inveja é destrutiva e, principalmente, não se externaliza, corrói o sujeito invejoso por dentro.

Portanto, o caso da miss não é inveja, não. É racismo rasteiro.

Eu conheço o tipo de pessoa que faz isso. Aconteceu comigo disse a miss. Na escola, enquanto achavam que eu era branca, aceitavam os doces que eu oferecia na hora da merenda e se diziam invejosos de todo o meu arsenal açucarado (o que também incluía sorrisos). Quando descobriram que eu era negra, passaram a dizer que não queriam mais os doces e que não podiam brincar comigo no recreio. Visto que eu não tinha ficado mais bonita depois de os colegas descobrirem que eu não era bem branca, a conclusão é óbvia: não é inveja, é racismo.

Não é inveja quando perguntam no hospital se você é a empregada da paciente e você explica que é a nora. Não é inveja quando as pessoas recusam-se a dar uma informação porque pressupõem, olhando apenas para a sua cara, que você não precisa e não vai usar realmente o dado solicitado. Não é inveja quando as pessoas indicam o elevador de serviço para você. Não é inveja taxista recusar-se a fazer a corrida porque seu pai é negro. Não é inveja, porque as pessoas não queriam estar no seu lugar. Elas não ficam se corroendo de raiva por não poderem sofrer humilhações sistemáticas, por não serem destratadas continuamente.

Viu, mamãe? As pessoas não me invejam, não. E não invejam a miss. Elas sabem muito bem o mal que o racismo faz, e nunca, nunca mesmo, gostariam de passar por tudo o que a gente passa.

É trabalheira: é um ser, apesar de. A pele pesa. Não basta ser boa professora. É ser boa professora, apesar de tudo. Mas tudo o quê? A cor da pele? Todos os obstáculos enfrentados por causa da cor da pele?

Fique tranquila, mãe. Ninguém me inveja. O problema é outro. É ser um questionamento ambulante à consciência alheia. É servir de legitimador por tabela dos que não acreditam no próprio racismo e usam a gente como exemplo de comportamento tolerante. É quando as pessoas dizem: eu tenho até amigos negros, como posso ser racista?

Não é inveja, eu sei. Porque as pessoas mostram os dentes, afiam as unhas, insultam, dizem palavras feias e acham que isso é necessário para mostrar que alguém de pele mais escura está em um lugar inadequado para ela. É especialmente inadequado se o lugar for ótimo para os outros.

A inveja corrói, o racismo exclui. A inveja se esconde, o racismo se expõe. A inveja é persistente, amarga dia após dia, como erosão, como as dunas, que a gente escava e voltam para o mesmo lugar. O racismo é preguiçoso, sem vergonha e truculento, atropela denunciando o atropelador, não expondo apenas o atropelado.

Ah, se fosse inveja, seria muito mais difícil de explicar. Mas é racismo, todo mundo vê. Só não vê o racista, porque não quer. Porque prefere iludir-se e achar que a gente se ilude junto. Porque acha que esse grande meio de campo em que nos encontramos, com nossas heranças de culturas apagadas, de línguas esquecidas, de pobreza envergonhada, de identidade negada, nesse meio campo as pessoas acham que o nosso papel é fazer média, é fazer de conta que é inveja, que não é racismo, que a gente pega o mesmo ônibus, assiste à mesma novela, nosso destino paralelo de mediocridades e necessidades.

Lamento, mas não vim para fazer média. Tenho dificuldade para dizer: está bem, respeito a sua opinião. Porque racismo, saibam, não é uma opinião, é um crime. E eu não gosto de ser cúmplice

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