sexta-feira, 25 de agosto de 2017

COMO ESCREVER UM ROTEIRO

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Ninguém perguntou, mas vou explicar. Vou explicar como se escreve um roteiro. Precisamos de um herói ou de um anti-herói. Precisamos de um adversário declarado. Precisamos descobrir uma traição. Precisamos de um povo a ser salvo. Precisamos de uma reviravolta que surpreenda o público. Precisamos de um arrependimento. Mas para transformar o roteiro em seriado, precisamos que os atores repitam os seus papéis e cometam os mesmos erros repetidamente, sob uma forma nova.

Pensem no Batman, por exemplo. Um ladrão rouba seus pais à saída do teatro e acaba matando os dois. Batman, apenas uma criança, presencia o assassinato e fica traumatizado. Adulto, promete combater o crime a qualquer custo. É um herói vingativo e solitário, auxiliado por um mordomo que exerce o papel de tutor e psicólogo, mas as pessoas gostam dele, porque ele combate o crime, não importa por qual motivo.

Batman apresenta o nosso lado obscuro como se fosse algo positivo.

Pensem no Indiana Jones, por exemplo. A gente no princípio nem entende porque ele precisa recuperar o Santo Graal, lutando contra nazistas que viam no objeto um elemento místico capaz de assegurar o comando do mundo a Hitler. Parece altruísmo, mas não é. Indiana Jones precisa superar o conflito com seu pai, o grande arqueólogo que ofusca o filho. No final das contas, a sua batalha é crescer pessoalmente, mas as pessoas acham que ele está combatendo o nazismo.

Na verdade, Indiana Jones é a figura de Hitler no espelho. O positivo do negativo.

Pensem em Bond, James Bond. O roteiro é sempre o mesmo: o mundo está ameaçado por um bandido incontrolável que pode jogar uma bomba, uma arma química ou biológica, e acabar com o seriado. Infelizmente isso nunca acontece e o filme sempre termina com o herói andarilho ao lado de uma moça bonita, brindando com champanhe, enquanto aguarda a nova aventura.

Bond ensina que padecimento não tem fim e que felicidade é uma bolha de vinho que desmancha na boca em segundos.

Pensem agora que o Brasil está cheio de pequenos batman, indiana jones, james bond e outros heróis. E que a gente entrega uma procuração em branco para eles agirem. Pensem que eles combatem o crime como justiceiros, como esquadrão da morte ou como apologistas da tortura. E a gente aplaude e até promete voto para eles. Pensem que outros prometem salvar o país e que muitas vezes no silêncio das suas noites solitárias a grande batalha é vencer a necessidade de aprovação. Alguns escrevem até cartas por se sentirem um simples elemento decorativo. Pensem nos que estão temporariamente sumidos. Imagino esses políticos em um filme como “Viva a liberdade”, de Roberto Andò. Só que alguns não tem irmãos gêmeos, eles têm irmãs.

Pensem, por fim, em um país em ruínas, ameaçado por mercado escravagista e por uma elite insaciável. Pensem nos seus capangas. Pensem no poder hipnótico dos bandidos. Pensem no bond tropical que a cada episódio precisa reaparecer para retirar a massa do estado de transe. É terrível. É um seriado péssimo.

Na realidade, escrevi este artigo para dizer que detesto os heróis, como dizia Brecht. Detesto os heróis da vida real. Eles são um sinal vivente da nossa impotência e do nosso talento para repetir os mesmos erros. Somos hábeis em roteiros de péssima qualidade. Vestimos a camiseta e depois de encerrada a festa colocamos o pijama, como se o assunto não fosse com a gente. Conseguimos fazer pior: diante do erro trágico, conseguimos a proeza de agir com resignação. Um bom roteiro exige que no momento grave o sujeito sinta um horror interior e que aquilo que parecia normal e inelutável seja visto como algo estranho, inaceitável, que requer uma reação. Eu esperaria do nosso roteiro real que alguns pedissem desculpas publicamente, ou que cortassem os pulsos, ou os cabelos. As unhas, pelo menos. Mas não, nenhum sinal. Apenas um silêncio ensurdecedor.

Pensando nos roteiros ruins da nossa vida, nos erros que repetimos, na nossa letargia diante das tragédias, no papel que nos recusamos a representar, lembrei de um perdedor excelente, o Darcy Ribeiro. Porque perder também é uma arte: é preciso merecer cada momento de uma derrota, lutando pela vitória. Darcy Ribeiro perdeu todas as suas batalhas, mas nos deixou essas palavras monumentais:

“Fracassei em tudo o que tentei na vida.

Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.

Tentei salvar os índios, não consegui.

Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.

Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.

Mas os fracassos são minhas vitórias.

Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

Darcy Ribeiro nos deixou há vinte anos. Ele fez da sua vida um roteiro grandioso.

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