segunda-feira, 20 de março de 2017

QUEM ESTÁ FALTANDO NA DISCUSSÃO DA "CARNE É FRACA"?

A operação da Polícia Federal (PF), Carne é Fraca, refere-se não ao documentário brasileiro A Carne é Fraca*, que trata da condição dos animais na criação, manejo e abate, mas a uma passagem bíblica que diz: “ vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26, 41). De certo, há muitas tentações nos agentes econômicos e políticos que justificam essa referência bíblica, sobretudo quando a tentação é formar uma rede de corrupção, envolvendo frigoríferos, fiscais e partidos políticos para liberar carnes impróprias para o consumo e produtos sem verificação e inspeção adequada. A carne é fraca sempre que o interesse particular se sobrepõe ao interesse público...

Muito já se disse e se escreveu sobre essa operação e há, no mínimo, o consenso em torno do prejuízo econômico, para alguns, chegando a dizer que há uma verdadeira irresponsabilidade da PF, que o país terá que arcar. Toda uma cadeia produtiva será prejudicada e a imagem do setor, no mercado interno e externo, substancialmente, arranhada. Há legitimidade nos argumentos do setor e nas críticas feitas à operação e sua espetacularização midiática. De fato, o prejuízo econômico será sentido na economia já enfraquecida. Afinal, esse setor do agronegócio (carnes, laticínios e ovos), cujo frigoríferos são apenas a ponta final, representa 23% do PIB brasileiro, empregando 7 milhões de pessoas e responsável por 7% do mercado mundial de carnes. Do ponto de vista econômico os números são respeitáveis e há quem afirme, com ou sem legitimidade, que há interesses internacionais na sombra dessa operação.

Contudo, no mínimo, três outros dramas são absolutamente ausentes no debate. O drama dos trabalhadores do setor, o drama da natureza e sua biodiversidade e o drama dos animais que sofrem violência e morte.

O drama dos trabalhadores está olimpicamente ausente no debate. Fala-se em preservar as marcas, a indústria nacional, o agronegócio, o setor etc. Mas e o trabalhador e seus dramas que, não raramente, é obrigado a trabalho escravo em fazendas de gado? E o que dizer dos trabalhadores que perdem parte do corpo nos frigoríficos? E os índios que são mortos na disputa de terras pelos produtores que, direta ou diretamente, abastecem o setor? A lista de dramas para os trabalhadores anônimos não pode ser desprezada.

O drama da natureza. Não é dito, mas 70% da terra agriculturável do Brasil é para criar animais, ou para grãos que os alimentam (soja e milho, sobretudo). Somente 30% da terra propícia para o cultivo no Brasil é para agricultura de tudo o que não é carnes, ovos, leite e seus derivados. O mundo de variedades de vegetais (feijão, arroz, trigo, frutas, hortaliças, cebola, alho etc.) para a mesa que, verdadeiramente alimentam o mundo, apesar do uso de agrotóxicos, é muito mais racional do que a dieta animalizada que é responsável pelo desmatamento, pelas monoculturas e pela perda da biodiversidade. Há relatórios suficientemente amplos e confiáveis dando conta de que não haverá sustentabilidade ecológica se insistirmos na dieta animalizada. A Campanha da Fraternidade de 2017, sobre os biomas, também faz, mesmo que muito indiretamente, alertas quanto à destruição dos biomas por conta da monocultura e a criação de animais. Já não há desculpas.

Mas, o ausente total são os animais. São 7 bilhões de animais, anualmente, sacrificados no altar do mercado brasileiro, sem rito algum. Na lógica do mercado, e inclusive na lógica do debate em torno da operação da PF, mesmo daqueles intelectuais que se dizem progressistas, os animais não têm interesses a serem levados em consideração. Para o mercado e defensores do setor do agronegócio, os animais são coisas para serem confinados, presos, insensibilizados, mortos, esquartejados, comercializados e consumidos, sem piedade, sem compaixão, sem sentimentalismo típico dos protetores dos direitos dos animais. Mas são mesmo “coisas”, ou são alguém?

Não dá para entender o tanto de indignação da parte dos consumidores, por saberem que os frigoríferos maqueiam a podridão da carne com produtos químicos, alguns suspeitos de provocar câncer. Toda carne para o consumo é uma carne podre. Ninguém come carne viva! E se comemos a carne morta, então toda ela está podre, em decomposição. Carne não podre é carne de animal com coração pulsando e com cérebro funcionando normalmente. Se quisermos carne viva, então deixemos o animal viver. É preciso perder a inocência e deixar de viver de ilusões.

Quem faz a história são os fortes e vencedores. Mas quem a julga, são os fracos, os excluídos e os mortos inocentemente. Mesmo que esses mortos sejam os animais não humanos. Se acharmos que não há problema em matar os animais, então estamos a um passo de acharmos que também não há problema em permitir violências múltiplas contra os humanos indefesos como são as minorias excluídas. A violência contra os humanos não tarda em se manifestar em violência contra os animais e a violência contra os animais indefesos não tarda em se manifestar contra os humanos. Tudo está conectado diz, com razão, o Papa Francisco que tanto tem dito e escrito sobre o cuidado da casa comum. E ele está certo!



* A Carne É Fraca é um documentário produzido pelo Instituto Nina Rosa.

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