segunda-feira, 23 de abril de 2018

UM CRIME QUASE PERFEITO

Resultado de imagem para crime quase perfeito

Prenderam o homem. O que falta agora para terem todo o poder? Falta muito, porque falta convencer a plateia de que o réu é o culpado.

A história recente do Brasil é uma epopeia. Estamos construindo a gesta das personagens pela mídia e pelas redes sociais como os antigos gregos construíam heróis pela boca dos aedos. Das personagens sabemos quase tudo, do crime quase nada. O cenário foi montado? As testemunhas foram fidedignas? O juiz foi imparcial? A reação do público foi catártica?

No teatro, cada elemento tem o seu lugar. E nesse teatro grotesco no qual o Brasil se transformou, os sujeitos também têm o seu espaço definido. O Movimento dos Trabalhadores sem Teto mostrou cenas chocantes esta semana: um apartamento vazio, sem reformas. Portanto, as provas concretas mencionadas na confirmação da condenação de Lula pelo TFR-4 são notas falsas. Vou ser bem didático, visto que não sou advogado e nem juíz: a empresa contratada pela OAS para fazer as reformas inexistentes do triplex forneceu notas fiscais que foram usadas para acusar Lula. As imagens desta semana são claras, portanto a condenação foi baseada em notas frias. Alguém vai denunciar esta empresa por crime fiscal? O testemunho do dono da OAS é gravíssimo, caso se confirme que ele deu falso testemunho para obter um benefício na sua pena. Repito: não sou advogado nem juíz, mas o crime de falso testemunho é mais grave que a declaração de inocência por parte de um réu. Uma das distorções do processo está justamente aí: transformar acusados em testemunhas, sem aplicar o rigor ao falso testemunho, mas usando o princípio do in dubbio pro reo aos colaboradores. Isso fica claro a partir do momento em que a pena de Leo Pinheiro foi sensivelmente reduzida depois que ele denunciou Lula. Em todo esse processo, os procuradores não averiguaram se a descrição das reformas contida nos documentos fiscais correspondia ao trabalho efetivamente executado? Acreditaram apenas no papel e nas reportagens da Globo? Nunca fizeram uma vistoria do apartamento? Quero deixar claro, já que não sou especialista em Direito: do ponto de vista literário, os pontos dessa história não fecham. Visto com os instrumentos da ficção, o roteiro funciona de forma precária e o caso parece mal enredado.

Escritores ruins e diretores medíocres podem desprezar o papel do público, mas os melhores artistas sabem que nenhuma obra se torna universal ou é condenada à irrelevância sem que o público exerça o seu papel. Por isso, o caso do Lula é um crime imperfeito: ignoraram o povo. A cada condenação, a popularidade de Lula aumenta. A cada golpe, o bumerangue lançado retorna afiado ao remetente. O público, de fora, pode ver a cena sob todos os ângulos, acima da inquisição, acima da defesa de inocência, acima da pretensão de imparcialidade. No teatro, o único aspecto que desvela a ficção é a catarse do público, pois ocorre fora da cena, fora do palco, na vida real. A reação do público é controlável, ma non troppo. E esse foi um dos erros desse crime quase perfeito: ignoraram a reação do público para o destino de Lula.

Usaram manifestantes como coro uníssono e raivoso, feito bacantes tropicais, que depois do transe hipnótico e orgiástico caiu no silêncio de um canarinho triste e desolado. Roteiro imperfeito. É neste ponto que coloco o erro principal e trágico dos maus autores da nossa história. Ignoraram que o coro não é um elemento totalmente manipulável. O coro não é fantoche. A estratégia usada neste como em outros golpes foi o de dar papéis diferentes às duas componentes que dão sustentação ao enredo: o coro, que simula a voz do povo da ficção, e o público, que é o próprio povo fora da cena. Tentaram colocar os manifestantes da seleção como representantes da ordem, sem avisá-los de que estavam sendo usados como porta-vozes do que há de mais escravocrata e socialmente atrasado no nosso país. A retirada silenciosa do coro rompeu o esquema triunfal previsto para o epílogo e a tendência é que toda essa energia passe, lentamente, a somar forças entre o público indignado com a má encenação. Já vimos isso no passado: alguém por acaso não lembra que a ditadura contou com o apoio da classe média para a sua instauração e que ao final foi a própria classe média a ir às ruas pedir diretas já?

Na tragédia, como na vida, coro e público têm papéis importantes no desfecho do enredo. Quando coincidem e se sobrepõem, alcançam uma potência que ultrapassa o tempo. Ainda hoje, na Itália, o coro da ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi, “Va pensiero”, é sentido como símbolo do sentimento de liberdade que alimentou o sonho de unificação do país. Quando nós, no Brasil, voltarmos a cantarolar “Água nova brotando e a gente se amando sem parar”, poderemos ter certeza de que foi superado este momento surreal de divisão entre os miseráveis e os medianos oprimidos pelo injusto regime fiscal do Brasil. As duas classes mais atingidas deram-se as mãos e perceberam que não há sentido na guerra entre pobres e menos pobres. É necessária a unidade na luta contra a injustiça e contra o pensamento escravocrata no nosso país, que transforma em perigo comunista qualquer tentativa de melhoria das condições de vida indignas e vergonhosas, às quais as camadas mais pobres da nossa população estão condenadas há quinhentos anos. E se Lula não for o novo Tiradentes dessa história, outro será. Porque a liberdade é um destino, não uma figura de linguagem ou uma metáfora literária. A liberdade é do povo, não dos roteiristas condenados à irrelevância histórica quando as cortinas do palco se fecham.

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