quinta-feira, 1 de março de 2018

SELVAGERIA TURÍSTICA


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Antigamente, o grand tour era uma etapa da formação das elites, em busca de conhecimentos referentes à civilização ocidental. A Itália, e Roma em especial, era uma escala obrigatória nesse processo. Basta pensar que os ideais que inspiraram Simon Bolívar a fazer um juramento solene em prol da libertação da América tinham por referência um episódio específico da história romana: o acordo obtido por Menênio Agripa, que encerrou o conflito da plebe romana contra os patrícios. O protesto, que consistia essencialmente em um exílio voluntário dos plebeus para os arredores da cidade e na recusa em realizar o abastecimento com víveres necessários para o consumo cotidiano de Roma, produziu rapidamente os efeitos desejados. Os plebeus obtiveram dos patrícios o direito a ter dois representantes no Senado, os tribunos.

Hoje, o grand tour transformou-se em mercadoria da indústria turística low cost. A integração da Europa produziu, como efeito positivo, uma integração maior entre os cidadãos europeus à descoberta desse território intercultural comum e acessível a todos os bolsos. Por outro lado, sofre as consequências de uma cultura de massa, que consome monumentos e conhecimentos antes que possam ser digeridos. Quando os meus amigos avisam que passarão por Roma durante três dias – às vezes até menos – eu fico de cabelo em pé: deixem para lá, leiam um livro sobre Roma, certamente saberão mais sobre a cidade em uma publicação séria do que durante um passeio rápido pelos pontos mais conhecidos. Aliás: o Monte Sacro, onde Simon Bolívar jurou libertar a América, fica fora dos roteiros turísticos. Por exemplo.

A plutocracia selvagem, que dispensa a cultura refinada da velha aristocracia e persegue sem escrúpulos o maior lucro no menor tempo possível, também descobriu o grand tour. A União Europeia, vítima da própria governança, forneceu os instrumentos para a operação: deslocaliza-se a produção industrial dentro da própria Europa, segundo a proposta mais vantajosa para o mercado de capital. A Embraco, multinacional brasileira com sede em Santa Catarina, é a última estrela do drama: sem qualquer cálculo histórico e nenhuma preocupação com o impacto social, decidiu fechar as portas de sua fábrica no norte da Itália e transferir-se para a Eslováquia. O governo italiano tentou, como já fez com outras empresas, realizar um acordo para evitar demissões coletivas e a acentuação da crise econômica. Tentou fazer isso, valendo-se dos instrumentos jurídicos disponíveis, com incentivos à manutenção da renda básica e à modernização industrial. Mas os representantes da plutocracia selvagem já tinham feito os seus cálculos e perceberam que na Eslováquia podem produzir com semelhante índice de qualidade e rendimento a um custo mais baixo.

“Gentalha”, definiu o Ministro das Infraestruturas da Itália. Quando a plutocracia abdica de qualquer valor humano, a qualificação que lhe é aplicada é a mesma que injustamente reserva aos seus colaboradores. O boomerang não terá efeito monetário, mas é um enxovalho público, que faz retornar ao interessado a alcunha que lhe convém.

Tudo isso faz pensar, sem nenhuma nostalgia ou edulcoração do passado, que o grand tour hoje é apenas uma prática selvagem predadora, que espelha o padrão de acumulação de capitais e de produção de pobreza em escala global. Essa pauperização possui duas faces: a dos trabalhadores explorados e a das massas com cultura superficial. A dos trabalhadores, que não podem mais se retirar em um exílio voluntário para forçar um acordo favorável, e a das massas, cuja cultura se limita a colocar no currículo uma bagagem instantânea e transitória, pouco mais que uma miragem de conhecimento.

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