segunda-feira, 26 de março de 2018

ESCONDE, ESCONDE.

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Conto até seis. Ouço as engrenagens do elevador vindo na nossa direção. O meu filho anuncia que as crianças precisam desobedecer aos pais, do contrário eles não teriam nenhuma função na vida delas. O elevador estaciona, entramos e subimos. Escondo uma secreta aprovação por aquela intuição, mas tremo diante de uma geração que já percebeu a nossa oculta derrota: protestar é preciso em um mundo pautado cada vez mais pela força do poder contra a coragem de existir.

Conto até dez. Um alpinista francês, orgulhoso do código ético que o liga às suas montanhas, enfrenta a encosta nevada para monitorar o território e socorrer os necessitados. Encontra pelo caminho uma família de imigrantes, que escolheu a travessia dos Alpes com todos os seus rigores, a fim de evitar outro rigor, o da lei anti-imigração, que impede os membros de se reunirem com os parentes na França. A mulher está grávida e tem outros filhos pequenos. O alpinista avalia as condições da família e a situação do tempo: ela precisa de um hospital e assim ele faz. Chegando ao local do atendimento, o homem é acusado de favorecer a imigração clandestina e corre o risco de ser condenado a cinco anos de prisão. Como devo explicar ao meu filho, que se ele fosse um alpinista e se ele fosse francês, a coisa mais certa a fazer seria salvar aquela família e violar a lei, honrando assim o código ético das populações dos Alpes e elevando o senso de humanismo que a cultura europeia tanto prega ao mundo? A respiração é curta e preciso suspirar várias vezes, na inútil busca de uma resposta coerente. A Europa escolheu a lei implacável, acima da justiça. Como posso revelar esta constatação sem abalar a confiança que os jovens deveriam nutrir em relação ao futuro? Volto ao primeiro ponto e penso que talvez meu filho já tenha uma resposta. E eu já tenha o meu malogro.

Abro o jornal. Outra família, outra mulher grávida, mesmos Alpes, mesma polícia francesa, que sem receio detém o grupo e o acompanha até a primeira estação italiana na fronteira do país. Que a mulher esteja muito doente, não importa. Que ela possa ter um filho prematuro, não interessa. A lei foi cumprida, sem exceções, mesmo que elas fossem previstas pela própria lei que expulsa e condena. Acolhida em um hospital italiano, a equipe médica constata que ela está em estado terminal devido a um tumor. Fazem uma cesariana para tentar salvar a criança. A mãe não resiste. Conto até mil, com a respiração descompassada e suspirante. Nesse tempo infinito a desgraça humana não recebe resposta. A indiferença já não se esconde. A vergonha tornou-se qualidade rara. É o tempo das vitórias esmagadoras, inclementes. É o tempo longo, como o inverno gélido da alma, que clama por severidade, que exige vingança, que requer punição.

O crime, o abominável crime, para os que cumprem a lei, é que os imigrantes não morreram antes, afogados no Mediterrâneo, ou de sede no deserto, ou de tortura na mão dos traficantes, ou de asfixia dentro de caixas clandestinas nas boleias dos caminhões que atravessam as fronteiras da União. Ousaram atravessar os Alpes, enfrentar a neve com suas pegadas negras. Buscavam um lugar melhor onde permitir que seus filhos pudessem crescer com uma esperança nova: com a velha esperança humanista, com os valores da grande civilização europeia. Encontraram a lei. E nós perdemos a Europa, perdemos o humanismo. A civilização se escondeu. Vou contar mais um pouco, enquanto busco outras respostas que não tenho. Enquanto procuro a coragem de entregar este mundo a meu filho.

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