terça-feira, 30 de maio de 2017

A MORTE É MAIS TRISTE NO VERÃO.

Roma é uma cidade marcada por uma relação especial com a morte. Começando pelos monumentos: as catacumbas, os mausoléus, ou os mausoléus construídos sobre catacumbas, símbolos da morte elevados ao quadrado. Mas os monumentos também são memória. Volta e meia entro em uma igreja e encontro esculpido no mármore (para que não se apague): "Recorda que deves morrer". Recordar a morte, passar por ela e recordar a morte dos outros, projetando nela a nossa própria finitude, a cada sítio arqueológico ou local de culto. Mas não só nesses lugares.

Passando pela via dei Fori Imperiali, a grande avenida que liga a Praça Veneza ao Coliseu, os turistas podem admirar, maravilhados, o Foro Imperial de um lado e o Foro de Trajano do outro. Poucos observam uma bicicleta pintada de branco, junto de um poste, diante da estátua de Nerva, um dos imperadores da Roma antiga, que, com as esculturas dos demais imperadores, materializa os grandes momentos da antiguidade como um livro a céu aberto.

A bicicleta era de Eva, uma imigrante vinda da República Tcheca, uma estrangeira como tantos nesta cidade, que vivem e adotam Roma como sua. Eva foi atropelada quando retornava do trabalho em outubro de 2009. Os ciclistas romanos transformaram a sua bicicleta em símbolo das vítimas do trânsito. Conservam a pintura, enfeitam a bicicleta com fitas coloridas, fazem disso um hino cotidiano à vida de Eva. A morte para recordar a vida que houve.

Roma está cheia de locais que recordam os que já se foram. Não são necessárias placas ou explicações, quem mora aqui sabe do que se trata. Ontem mesmo voltava para casa depois de um dia quente, ensolarado, e me deparei com um maço de flores frescas em um poste perto da minha casa. Trata-se de uma pessoa morta naquele lugar, anos atrás. E apesar dos anos, do sol, do calor, as flores estão ali, frescas. Porque alguém não deixa que as flores sequem e que a memória se apague. Em momentos como esse, percebemos que a morte está sempre por perto, triste como no primeiro dia. Imbatível diante das estações do ano. Mas isso também nos recorda que vale a pena viver e que vale a pena confiar: um dia as flores frescas estarão lá para nós, depostas por um anônimo, depois de tantos meses, de tantos anos, lembrando aos que estarão no nosso lugar que a vida continua. E pode ter a graça de uma flor, um gesto tão simples e tão profundo.

Roma é tudo isso. Uma cidade cheia de problemas, uma cidade em que os conflitos com os imigrantes podem aparecer atrás do próximo muro ou dentro de quatro paredes. Mas também é uma cidade que acolhe e recorda sem distinção os que nela viveram. E por isso, e não só por isso, é uma cidade única, melancólica com o seu perfil cor de ocre e as suas ruínas, uma cidade com flores frescas em pleno verão, que a deixam ainda mais triste na sua lindeza histórica.

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