segunda-feira, 11 de setembro de 2017

OS SENTIMENTOS MORAIS.


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Os animais não humanos – cachorros, gatos, vacas, elefantes, macacos – são seres sencientes, conhecem e manifestam sentimentos e emoções, experimentam sofrimento e prazer, iguais aos humanos, não são, contudo, seres morais e não apresentam sentimentos morais de culpa, vergonha e indignação. Isso em nada diminui a condição dos animais não humanos e em nada nos faz superiores a eles. Não se trata de superioridade e inferioridade, mas de diferença. Uma diferença que não faz diferença alguma, e em nada é relevante para tratá-los sem consideração, respeito e justiça.

Vamos por partes, aos moldes do Jack, o estripador.

Culpa. A culpa é um sentimento desconfortante e perturbador, resultante da inadequação entre o que deve ser feito e o que se faz, entre um valor internalizado, aceito e reconhecido e a ação praticada em desacordo ao valor. O sentimento de culpa é uma experiência de cisão no “eu”, operada pela não correspondência entre o que consideramos correto e o ato praticado. O sentimento de culpa é o mais genuíno registro moral em nós e sua condição de possibilidade é a condição transcendental de liberdade e consciência.

A condição de seres não programados e não determinados pela biologia e nem mesmo pela sociedade, nos obriga, a nós humanos, a escolher e inventar o que vamos ser, enquanto indivíduos e espécie. As escolhas são sempre pautadas em valores que resultam em normas e, comumente, transformados em costumes e hábitos. Viver segundo valores e normas nos torna humanos, quando esses valores e normas são, reconhecidamente, a favor da preservação da vida de todos e a ampliação da qualidade da vida de todos, inclusive dos animais não humanos.

Se quisermos uma prova de que somos animais morais, essa prova a encontramos na presença do sentimento de culpa, sempre que transgredimos normas ancoradas em valores que se apresentam como obrigatórias. O sentimento de culpa é a sentinela moral que, por primeiro, acusa o perigo da transgressão de valores e normas de conduta, internalizadas e aceitas por cada membro de uma comunidade moral. Quem já não sente culpa, bom sujeito não é. Um humano que já não manifeste sentimento de culpa, quando comete um ato imoral, desliza para uma condição sub-humana que tipificamos como psicopata, um doente, portanto.

A culpa é um sinal de vida moral saudável. Num humano saudável, o sentimento de culpa vem acompanhado da consciência de culpa. A consciência é, contudo, pelo seu caráter racional, ambígua, e pode camuflar, mascarar, criar artimanhas de auto justificação e, até, recalcar o sentimento, dando para si uma justificativa de autoconforto que aplaque tanto o sentimento quanto a consciência. É o caso quando alguém se justifica apelando para o famoso “todos fazem” ou, então, “cumpri ordens” etc.

Mas a consciência também pode levar a sério o sentimento e reconhecer o mal praticado e mudar de ação. A virtude moral é, exatamente, essa atividade de permanente vigilância e conversão do “eu” em acordo com o dever e ao sentimento do bem. O sentimento de culpa e a consciência que reconhece a culpa são os tribunais últimos da moralidade e independem da aprovação ou desaprovação do outro para se manifestarem. Mesmo invisíveis, se humanizados e éticos formos, se cometemos um mal, o sentimento e a consciência de culpa nos alfineta e nos incomoda criando em nós um estado de mal-estar moral.

Assim, daria para dizer que o sentimento de culpa é o mais sincero dos sentimentos morais pois é o reconhecimento, quando da sua presença, da negação de um valor internalizado em que o juiz punidor é interno e, não externo, como no caso da vergonha. Quanto o “outro” entra e nos julga, então, estamos diante de outro sentimento, igualmente importante: a vergonha.



Vergonha: Vergonha moral é o nome que damos ao sentimento que nos acontece, se saudáveis formos, quando alguém nos flagra fazendo algo moralmente errado. A vergonha sempre é diante do outro. Se o sentimento de culpa é um autoflagrante executado pelo punidor interno, o sentimento e a consciência, e independe da presença do outro, a vergonha resulta do flagrante vindo do outro que nos culpa, julga e pune com seu olhar. Sem o olhar do outro, não há sentimento de vergonha.

É por isso que sempre que fazemos algo que não deveria ser feito, olhamos para os lados para nos certificarmos e ver se alguém está nos vendo. O sentimento de vergonha demonstra que os valores morais são compartilhados pelos membros de uma comunidade moral, um sendo vigia do outro no seu cumprimento. Isso é altamente positivo. Se há internalização do valor moral, então a culpa é suficiente, mas se não há internalização, então o que nos salva de nós mesmos é o punidor externo, no caso o olhar do outro.

Quem é flagrado fazendo o mal, experimenta uma diminuição da autoestima, pela natural exposição negativa aos olhos da comunidade moral a que pertence. Importa notar que a formação moral de um indivíduo tem esses dois mecanismos de controle civilizacional: a culpa e a vergonha. Os dois operam em conjunto, mas a vergonha tem um peso menor na formação moral de um indivíduo.

Não basta, para uma autenticidade moral, depender da câmera de vigilância, do guarda e do olhar do outro, pois, se esses mecanismos falharem, então os indivíduos se sentem livres para agir segundo o bel prazer, desde que invisível aos olhos dos outros. O fato é que mesmo invisível aos olhos dos outros, o mal continua sendo mal e só a culpa pode agir de forma genuína e humanizadora.

Indignação: Indignação é o sentimento de revolta diante do mal cometido pelo outro, sobretudo a pessoas e a animais vulneráveis. Indignação é uma espécie de ira santa que nos assalta e nos impulsiona contra alguém que desrespeita as regras consensuadas em vida societária. Indignação é aquele sentimento de cólera e desprezo experimentado diante de injustiças. Quando a indignação é coletiva pode acontecer de mudar rumos da história de um povo, mas pode, também, se mal direcionada, cometer atrocidades, como é o caso dos linchamentos em que o sentimento se sobrepõe a racionalidade.

A indignação é um sentimento e, ao mesmo tempo, uma ação. Só o sentimento não altera em nada o quadro de injustiça presenciada e vivida. Há de tornar-se ação, individual ou coletiva. Se na culpa a relação é do “eu” consigo mesmo e na vergonha a relação é do “eu” diante do olhar do “outro”, na indignação, o sentimento une o “eu” e o “outro” e faz surgir um “nós”.

Percebe-se, então, que a moral lida com uma estrutura de rede de relações em que as autonomias se unem a outras autonomias para a preservação da vida, cujo sentimento é uma poderosa sentinela e a consciência é uma aliada de peso. Tudo isso só acontece nos humanos e a humanidade estará tanto mais protegida e garantida quanto mais manifestos serão os sentimentos morais. Levar a sério os sentimentos e a consciência moral faz do humano um ser confiável e o afasta da barbárie que sempre está à espreita para o engolir.

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