sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O OLHO DE DEUS.


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Certas cenas ficam marcadas na lembrança de forma definitiva. Por razões nem sempre explicáveis (dizem que Freud explicaria...), palavras, gestos, pessoas, acontecimentos ocupam um espaço nos labirintos da memória e ficam lá, inesquecíveis.

Uma cena salta do passado e vem à tela da mente com a limpidez de uma fotografia. Eu devia ter uns cinco, seis anos. Fui com minha mãe visitar um primo. Na escola, onde era interno em Novo Hamburgo. Naquele tempo, mais de 60 anos atrás, era uma viagem! Lá fomos nós.

Ao chegar, já fiquei impressionado com a beleza do edifício que, ao meu olhar infantil, parecia um castelo. Os grandes espaços gramados convidavam a brincadeiras. Conduzido pela mão, cheguei a uma sala ampla, com uma poltrona, cadeiras de palhinha e uma pequena mesa de centro, onde havia uma Bíblia aberta. Um velho padre nos recebeu com um sorriso afável, pediu que aguardássemos ali enquanto anunciava a visita.

Mamãe sentou-se numa das cadeiras e eu, curioso como toda criança, fiquei explorando aquele território cheio de novidades.

Na página aberta da Bíblia uma ilustração colorida da arca de Noé. Olhei fascinado para a longa fila de animais que subiam por uma rampa, dois a dois, em direção ao interior da Arca. Leões, girafas e até elefantes. Fiquei imaginando a confusão que o velho Noé teria que organizar.

Logo minha atenção desviou-se para outra coisa; um quadro na parede. Era diferente, tinha algo de hipnótico. O quadro, em si, era bem simples. A tela azulada, com tons esbranquiçados imitando nuvens. Um grande triângulo no centro e, dentro dele, um imenso olho.

Fiquei paralisado. O olho olhava para mim! Lentamente fui me movendo para um dos cantos da sala. O olho me acompanhou. Atravessei para o outro lado. Eu olhando pro olho, o olho olhando pra mim...

Recuei e busquei abrigo no colo da minha mãe. Ela percebeu o meu medo e me abraçou, afagando minha cabeça. Só então percebi que debaixo do olho, na base do triângulo, havia uma frase escrita. Eu ainda não sabia ler.

-Mãe, o que está escrito ali, naquele quadro do olho grande?
-Aquele é o olho de Deus, meu filho. Ali diz assim; DEUS ME VÊ E ME JULGARÁ!
A frase ressoou nos meus medos infantis: DEUS ME VÊ E ME JULGARÁ... me enrosquei mais ainda no colo seguro de minha mãe. Ela, é claro, como toda boa mãe, aproveitou para me dar ali, na hora, uma lição de catecismo.
- Deus vê tudo, meu filho. Anota tudo num livro grande que tem seu nome no alto de uma página. De um lado ele escreve as suas boas ações. De outro anota cada pecado. No final da sua vida ele soma tudo de bom que você fez, diminui dos pecados e aí descobre se você vai para o Céu ou para o Inferno.
-E o "Pulgatório", mãe?
- Não é pulgatório, meu filho, é Purgatório. Pois é, se a sua conta de pecados não for grande demais pra você ir direto pro inferno e suas boas ações não forem suficientes pra garantir de uma vez o Céu, você pode passar uma temporada no Purgatório.
-E o que a gente faz lá?
-Reza, pede a Deus pra lavar os pecados depressa pra gente ir pro Céu.
-No purgatório tem água?
-É modo de dizer, meu filho.
-E no Céu, o que é que a gente faz? A gente vira anjo?
-É, vira...
-Então, no Céu eu vou ter cabelo louro encaracolado, asas de verdade e vou tocar harpa? Mas eu não sei tocar harpa!
Minha mãe começava a achar que não tinha sido boa idéia aquela lição.
-Olha, meu filho, que bonito ali na Bíblia, Noé e os bichos na Arca.

- Mãe, a senhora me falou, lembra, que todos os homens e animais que não estavam na arca do Noé morreram no... como é que chama mesmo?
-Dilúvio. Pois é, morreu todo mundo...
-E os peixes?

Mamãe deu o suspiro profundo e foi até a porta pra ver se o primo estava chegando. Eu, que já estava ficando à vontade, me vi, de novo, olhando para o olho que olhava para mim com uma expressão ainda mais severa. Sentei na poltrona e fiquei ali, encolhido, calado, pensando que Deus não tinha sido muito justo ao matar todo mundo afogado e proteger os peixes que sabiam nadar. Aliás os peixes nem ficaram sabendo que aquilo era dilúvio. Para eles, agora, tinha era mais espaço pra passear e brincar.

Um frio me passou pela espinha quando lembrei que Deus VIA TUDO, até pensamento, e que agorinha mesmo devia estar anotando no livro que tinha o meu nome mais um pecado: falta de respeito!
A chegada do primo me salvou, pelo menos por enquanto. Ele nos levou a passear pela escola. Visitamos uma imensa biblioteca, atravessamos corredores enormes e fomos a uma capela muito bonita.

No altar, de cada lado havia um anjo segurando um castiçal. Fiquei observando o rosto deles, tentando descobrir se pareciam com alguém que eu conhecia.

Na despedida o primo me deu um abraço e um santinho. Na gravura, um homem segurava um menino no colo. O menino chorava, parecia estar fazendo birra.

- É são José com o menino Jesus. Ele devia parecer com você.
Olhei encantado para o santinho. A expressão de São José, tão paciente. E o menino Jesus fazendo birra!? Então não era pecado!
Minha mãe tomou-me pela mão e lá fomos nós, na viagem de volta. No caminho, o balanço do ônibus, o contato aconchegante de minha mãe, ao meu lado, dormi e sonhei.

O menino Jesus corria comigo pelo gramado do colégio. Ríamos e dávamos cambalhotas. São José, sentado sob uma árvore, conversava tranquilamente com minha mãe. Eu e o Menino Jesus chegamos na sala de visitas. Na parede, o olho olhava pra nós.

O menino Jesus me segurou pela mão, olhou pro quadro, fez uma careta, deu uma gargalhada e saímos correndo inventando novas brincadeiras...

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