quarta-feira, 19 de setembro de 2018

CIO DA TERRA...



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Ouço no rádio, na voz de Milton Nascimento, Pena Branca e Xavantinho, uma das mais belas canções da MPB, "Cio da terra", de Chico Buarque e do próprio Milton.
Não sei quantas versões já foram gravadas, mas, de todas, esta é, para mim, a que melhor traduz o diálogo entre a beleza poética da letra e a sensibilidade rústica e suave da melodia.

A composição é tão intensa que ultrapassou os limites da canção popular e chegou à liturgia. É comum vê-la cantada no ofertório de muitas eucaristias nas quais várias de suas frases musicais me chamam a atenção de maneira especial, tornando-se convite à oração.

"Afagar a terra, conhecer os desejos da terra..."Penso na Terra, planeta, e na terra, que se faz, cotidianamente, caminho para os meus pés (ou rodas).

Cidadão absolutamente urbano, pouco sei dos desejos da terra-chão, já que pouca terra sobrou nesta selva de cimento e asfalto em que se transformaram as cidades do século XXI. Ruas impermeáveis, rios convertidos em fétidos esgotos, tudo serve de calha para enchentes, desmoronamentos e outras catástrofes já incorporadas ao calendário das nossas metrópoles.

As dores do planeta também não me passam despercebidas. As loucuras do tempo levam aos extremos de, ao mesmo tempo, no mesmo país, continente e hemisfério, ver gente morrendo de sede e gente morrendo afogada. Mas, mesmo em meio à estranha contradição dessa aridez inundada, meu coração insiste em buscar e semear ternuras, ainda que através de palavras.

Gosto, por exemplo, da palavra "afagar".
Afagar me lembra gesto de carinho em rosto de criança. É convite a toque suave, terno, sem pressa. A colheita vem no sorriso infantil, fruto abundante, com sabor de pura gratuidade. Nele, fecha-se o ciclo amoroso do cio da terra, propícia estação de fecundar o chão da vida com nossos melhores sonhos.

Jesus talvez estivesse ouvindo Chico e Milton quando contou aos seus discípulos a seguinte parábola, em Lucas 13,1-9...

Certo homem tinha uma figueira em meio à sua plantação de uvas.
Quando foi procurar figos, não encontrou nenhum. Disse, então, ao empregado que tomava conta da plantação: "Olhe, já faz três anos seguidos que venho buscar figos nesta figueira e não encontro nenhum. Corte esta figueira! Por que deixá-la continuar tirando a força da terra sem produzir nada?"

Mas o empregado respondeu:"Patrão, deixe a figueira ficar mais este ano. Eu vou afofar a terra em volta dela e pôr bastante adubo. Se no ano que vem ela der figos, muito bem. Se não der, então mande cortá-la".

Recolhendo "cada bago do trigo..."

Em contraponto com a atitude objetiva, prática, utilitarista, do patrão, Jesus revela o olhar amoroso e misericordioso do empregado. Em outra ocasião, quando Pedro lhe pergunta se devemos perdoar, "até sete vezes", Ele responde: "Não, Pedro, setenta vezes sete...".

O Deus em que creio, revelado por Jesus é paciente, amoroso, cuidadoso. Nada tem de vingativo ou irado. É também um Deus que, diante da liberdade humana, se mostra surpreendentemente impotente. Respeita nossas escolhas até o limite do absurdo. Respeita até nosso direito de não crer nele.
E aí, entramos definitivamente no território do mistério. Um Deus onipotente, onipresente, onisciente, ou seja, que pode tudo, sabe tudo e está em toda parte, se mostra frágil e limitado diante da nossa liberdade.
Às nossas dúvidas, à nossa teimosia rebelde, à nossa aridez estéril, Ele responde sorridente e paciente: "Eu vou afofar mais esta terra e pôr bastante adubo a sua volta".

Hoje, olhando/rezando o chão da minha vida, me pergunto:

- Que pedaço de terra precisa ser "afofado" (afagado) em meu coração?

- O que precisa ser adubado em minha vida?

- Que frutos o Senhor espera colher em mim?

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