quarta-feira, 5 de setembro de 2018

ENTRE O SENTIR E CONSENTIR

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Converso com uma amiga que passou recentemente pela experiência traumática de ficar sob a mira de revólveres dos ladrões que invadiram seu apartamento em plena luz do dia, depois de a renderem no elevador.
Foram quarenta minutos de terror, ameaças e agressões, a ela e seus dois filhos. Os bandidos, enfim, foram embora, levando o que encontraram e deixando um rastro de dor, medo, raiva, impotência e angústia.
A casa, a vida, a alma, de pernas para o ar...
É muito difícil avaliar a dor do outro, sua extensão, até onde alcançam suas raízes. Sei, por experiência própria, que a dor é uma ferida que, quando aberta, faz sangrar outras feridas antigas, que pareciam adormecidas, esquecidas, superadas, mas que voltam à tona, empurradas pela força brutal do desamparo, da quase solidão.
Junto com a dor, emergem em muitos de nós uma ira primitiva, um profundo, denso e intenso desejo de vingança.
E é em cima desse sentimento que os ‘datenas’ da vida fazem a festa, garantindo ibope, transformando nosso medo e nossa ira em grana para si e para as empresas que nos vendem arame farpado para as mãos, cercas eletrificadas para os olhos, guaritas, muros e alarmes para o coração.
Luto contra esse sentimento, sabendo que a diferença entre eu e o ser primitivo que habita em mim, é a distância entre o sentir e o consentir.
Não consigo evitar sentimentos. Ninguém consegue. Eles vêm, empurrados pelos instintos que nos habitam desde nosso ancestral das cavernas. Mas os milhões de anos de evolução, todo o processo civilizatório que nos precedeu nos dá a possibilidade de, diante do sentir, exercitar ou não o consentir. E esse exercício é diário.
Nas grandes metrópoles, é difícil atravessar as horas estressadas e as ruas congestionadas de um dia sem sentir raiva. Afinal, nelas encontramos os idiotas do trânsito, os mal-humorados do trabalho, os grosseiros e agressivos do dia-a-dia.
Próximo à minha casa passa, toda noite, um sujeito que transformou seu Fiat Strada num trio elétrico. Eu e meus vizinhos, num raio de dez quarteirões, somos obrigados a ouvir o som de bate-estaca ecoando pelas ruas, no embalo do funk da hora. Minha vontade é de... não posso dizer aqui...
Pra relaxar, a TV. Na tela o noticiário político... o nó da indignação aperta meu pescoço enquanto apalpo, no bolso, minha arma carregada... o título de leitor....
Respiro fundo, busco a serenidade possível, e corro para o mais profundo de mim mesmo, ao encontro do ser humano civilizado, de afetos ordenados, que tento ser no dia a dia.
Sei que não é fácil, mas já aprendi a duras penas que ceder aos instintos também não ajuda em nada. Mas o medo é desafiador...
Minha amiga assaltada, por exemplo: uma pessoa de convívio agradável no trabalho, dedicada, organizada e, de repente, num susto, a gente se vê, perplexo, diante de um ser humano completamente desequilibrado, sem chão, sem consolo possível. Minha reação é querer ajudar, sem saber bem como, achar palavras ou gestos que acalmem a dor, mas o que dizer, o que fazer, que conselhos dar...?
A gente é tão impotente...
O jeito, então, é recorrer, nesses momentos, àquelas poucas e preciosas certezas que insistem em brilhar, em meio à escuridão dos dias. Podem ser chavões, frases e palavras feitas, clichês que quase resvalam para o pieguismo, mas, aprendi com a vida, as palavras ganham vida quando colocamos nelas nossa vida, nossos mais profundos sentimentos.
E o que disse à minha amiga, divido e compartilho com vocês...
Aprendi com a Espiritualidade: em momentos de raiva, dor, sofrimento intenso, desolação, não tomar atitudes radicais. O mesmo vale para a euforia. Ou seja, quando a vida está nos extremos é preciso buscar a serenidade possível nos gestos, nas palavras, nas decisões.
Lembrar-se que, como diz o poema, só anoitece até meia-noite. Daí em diante é madrugada, expectativa do dia que, com certeza, vai chegar. Em meio à ainda penumbra, não tomar atitudes radicais.

Pode acreditar... vai passar...

Um dia, ainda, folheando um livro chamado Poemas de Periferia, encontrei um poema de Geraldo Eustáquio de Carvalho que, em mim, se fez celebração;

RECOMEÇO

Às vezes bate uma ideia de desistir
Então a gente para, põe o sonho de lado,
E fica por aí, pensando e sofrendo.

Mas não é por muito tempo não
Qualquer coisa da estrada
Passarinho, flor, montanha, nuvem
O menino que nos acenou sorrindo
Esperança a toa que seja
Vira roteiro de viagem.

Precisa ver os olhos brilhando com que partimos
Mochila nas costas, cantando o sol e a sede
Prazer e cansaço de quem caminha
Sempre em frente
Em direção a algo mais além de nós mesmos
De nossos desejos, medos e frustrações.

Porque é para lá que estamos indo
(é só pra lá que sabemos ir)
Passos de uma caminhada que nenhum de nós
Sabe quando começou, nem quando vai terminar

Entre o sentir e o consentir, a vida me ensinou que só posso ser radical numa coisa: no amar e no ser amado...

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