terça-feira, 7 de novembro de 2017

O AMANTE GANHA DUAS VEZES

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A primeira vitória do amante sabe-se onde acontece: no quarto. Como no célebre conto de Lima Barreto: Numa, deputado medíocre, formado por apostila, casa-se com uma moça culta e de família abastada. São os dois requisitos necessários para garantir a sua ascensão social e, mais tarde, política. Mal sabe ele que a mulher tem um amante, e não um amante qualquer, mas o seu principal rival no parlamento.

A pior vitória, para Numa, ocorre, porém, na vida pública. Ele sabe que o sucesso nos discursos parlamentares depende da sua musa, a esposa. É ela quem redige, até altas horas, os discursos do marido. Quando, uma noite, Numa decide levar um chá para a amada redatora, descobre que ela possui um ajudante: o seu desafeto político. Cala-se e, procurando não ser visto, volta para a cama.

Humilhado, Numa obtém no dia seguinte outro sucesso parlamentar, bem sabendo que isso representa a sua derrota pessoal. O amante vence pelo desconhecimento alheio. Numa é ignorante, não tem domínio da sua vida, resumida à superficialidade das apostilas.

Lima Barreto escrevia este conto há um século, talvez sem imaginar que hoje somos um batalhão de pequenos Numas. Publicamente, vangloriamo-nos do conhecimento acessível a todos, ignorando que, nesta era de complexidades, conhecer é praticar a arte da busca da agulha no palheiro.

Tudo está disponível, nada está conectado. Depois de achar a agulha, a tarefa do Numa moderno é alinhavar os pontos, dar sentido aos fragmentos, explicitar relações. Cada vez que dizemos "esta é a minha opinião", um amante sente um júbilo. E não importa que os Numas sejam milhões. A ignorância de massa não torna menos humilhante a percepção de ser fantoche e papagaio, fiel servidor da seita "copia e cola". A inércia e a resignação são provas da supremacia do amante.

Machado de Assis também foi obcecado pelo tema de traição. O melhor resultado talvez esteja no Casmurro, corroído pela dúvida até o último dia da sua vida. Ah, se pelo menos tivessem uma dúvida todos os Numas que cruzam o nosso caminho: já seria uma esperança.

Mas também é preciso dizer, por justiça: pobres Numas. Nem todos foram condenados à ignorância por iniciativa própria. A muitos é negada a possibilidade de construir o conhecimento e de ir às fontes. Há professores que por piedade facilitam a difícil tarefa do aprender, como há docentes que para manterem a sua reputação evitam compartilhar o seu conhecimento. Fazem um desserviço em ambos os casos.

Aprender é uma tarefa árdua, não pode ser delegada às musas, ou aos seus amantes. Facilitar, resumir, sintetizar é oferecer um atalho ilusório. Buscar soluções simplistas é enganar-se. A única receita para não ser mais um Numa nas estatísticas continua ser ler, ler muito, estudar e reflectir. Aprender um método de análise. Organizar as ideias.

Os descrentes podem refugiar-se bucolicamente na internet, oásis onde se materializa a miragem de que todo conhecimento está a um clique dos dedos. Esquecem que o esforço acontece no palco do cérebro. Pensam como Numas e não como Casmurros. E não sabem que há um amante à espreita. Sempre.

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