sábado, 17 de outubro de 2020

DESCOBRIR A VERDADE E CRIAR A BELEZA.

 




A segunda metade do século XX desdobrou-se em duas fases bem distintas. A primeira delas foi o período marcado pela Guerra Fria, pela descolonização e o esforço de desenvolvimento nos países do chamado Terceiro Mundo, e também pela difusão dos princípios e instituições do Estado do bem-estar social nos países avançados. Na segunda fase, ao contrário, assistimos à predominância mundial do capitalismo, à desagregação da União Soviética, com o consequente desvinculamento de seus satélites europeus, e à afirmação dos Estados Unidos como potência hegemônica planetária.

Como definir essa ameaça? Ela se parece com um imperialismo, mas de uma espécie diversa daquela que conhecemos e analisamos no passado.

O imperialismo antigo, com efeito, fundava-se na dominação territorial de outros povos e visava à sua exploração econômica, para a extração de metais e pedras preciosas, à expansão do mercado de consumo das potências imperiais, ou ao estabelecimento de zonas geopolíticas de segurança. O ônus dessa forma de imperialismo era a administração direta dos territórios colonizados.

O novo imperialismo, ao contrário, não se funda na dominação territorial, mas no controle econômico e financeiro de outros países.

Empreguei intencionalmente o termo “controle”, contrapondo-o a “dominação”. A distinção assim proposta é análoga à que se estabeleceu, na análise jurídica da grande sociedade anônima, entre “propriedade” do capital e “controle” da empresa. Os capitalistas contentam-se em ser proprietários de ações, para renda ou especulação no mercado de valores mobiliários. Já os empresários, embora muita vez possuindo uma minoria de ações, ou mesmo não possuindo ação alguma, exercem de fato o poder de governo da empresa e de disposição do patrimônio social.

No novo imperialismo, de modo semelhante, instituem-se dois níveis de poder de governo nos países controlados. Os governantes “de dentro” exercem a administração direta – tal como os conselheiros e diretores da sociedade anônima –, mas devem submeter-se às diretrizes e políticas econômico-financeiras ditadas pelo controlador, que governa o país de fora. Algumas vezes, o controlador chega a interferir na administração direta do país controlado, impondo-lhe os governantes de sua confiança, ou destituindo os que lhe pareçam perigosos aos seus interesses imperiais.

Ao contrário do que sustentam Antonio Negri, o centro de poder do novo imperialismo não dispensa as estruturas políticas do Estado-nação, pela boa razão de que, atualmente, só países soberanos detêm a potência militar: as organizações internacionais com poder de autorizar a guerra ou de dirigi-la, tais como a ONU e a OTAN, dependem inteiramente do concurso de seus países-membros para formar as suas forças militares.

No campo econômico-financeiro, a dominação mundial é também exercida por Estados-nações, seja diretamente seja pelo controle que detêm sobre as organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional.

O velho edifício das Nações Unidas, erigido por iniciativa dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, para manter a paz e corrigir os efeitos mais desastrosos da miséria ,das populações, está sendo agora desmontado pelos mesmos Estados Unidos, porque a ONU tornou-se um claro obstáculo às pretensões norte-americanas de exercer, isoladamente, o poder imperial sobre toda a face da Terra.

A partir de então, os Estados Unidos vêm-se recusando, sistematicamente, a se submeter às normas internacionais de proteção aos direitos humanos, por considerarem que isso implica limitação de sua soberania. Assim foi com os Protocolos de 1977 às Convenções de Genebra de 1949 sobre a proteção das vítimas de conflitos bélicos, com a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres de 1979, com a Convenção sobre o Direito do Mar de 1982, com o Protocolo Adicional de 1988 à Convenção Americana sobre direitos humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, com o Segundo Protocolo de 1989 ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, com a Convenção sobre os direitos da criança de 1989, com a Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992, com a Convenção de Ottawa de 1997, sobre a proibição de uso, armazenagem, produção e transferência de minas antipessoais, tratados, todos esses, já em vigor no plano internacional. Os Estados Unidos recusaram-se também a assinar a Convenção que instituiu um Tribunal Penal Internacional, aprovada em Roma por uma conferência de plenipotenciários, em 17 de julho de 1998.

Os Estados Unidos vão-se tornando assim, decisivamente, um Estado fora da lei no plano internacional. A reorganização do mundo, para evitar a ressurreição do flagelo totalitário, passa pois, hoje, claramente, pela instituição de estruturas políticas e econômicas internacionais de limitação da soberania das grandes potências, a começar pelos Estados Unidos. É esta a magna tarefa das próximas gerações. Do êxito desse formidável empreendimento dependerá, afinal, a preservação da dignidade da pessoa humana, como único ser no mundo capaz de amar, descobrir a verdade e criar a beleza.

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