sexta-feira, 22 de junho de 2018

NÓS SOMOS OS BONS

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A cena do escalpo pertence ao imaginário de todas as vítimas do cinema com pipoca, repleto de cenas de violências e, não raramente, de falsificações da história. Quem não lembra de um índio americano arrancando o couro cabeludo de um colonizador, durante uma cena na qual a faca brilha e talvez a câmara foque algumas gotas de sangue? Quem não foi contagiado pela sensação de que escalpo corresponde à barbárie, e barbárie corresponde a sociedades primitivas, distantes dos padrões de civilização que gostaríamos de vivenciar?

Pois estava com isso na cabeça, justamente porque não conseguia falar da desumanidade que atingiu o coração do Mar Mediterrâneo, este cemitério que já abriga mais de trinta mil almas nos seus abismos. Pensei na cena do escalpo porque a gente não imagina que pessoas pertencentes a uma civilização milenar possam cometer gestos tão bárbaros. Quando nos mostram as decapitações cometidas por terroristas fanáticos, nós reforçamos o nosso preconceito contra os muçulmanos e nos dissociamos imediatamente: eles, os bárbaros; nós, os bons. Nós temos medo de perder o emprego, nós temos medo de não entender a língua do outro, nós não gostamos da comida deles, não queremos ouvir as suas orações e não apreciamos a sua música: é mais cômodo pensar que decapitam as pessoas, que são bárbaros, todos bárbaros; e nós somos bons.

A nossa comida é boa, os nossos processos são higiênicos, a nossa pele é mais saudável, a nossa língua é mais poética, a nossa sociedade é mais organizada, a nossa política é mais democrática, as nossas crianças são mais educadas. Até o nosso medo é melhor: é justificado, porque eles são bárbaros.

No início do século XVIII, nos Estados Unidos, uma resolução na Nova Inglaterra estabeleceu um prêmio em esterlinas pelos escalpos dos indígenas americanos. O escalpo era uma prova de morte e era mais leve do que a cabeça decapitada. A primeira resolução oferecia quarenta esterlinas por escalpo. Anos mais tarde, uma segunda resolução elevou o prêmio a cem esterlinas. Em Massachussets, o prêmio pago pelos escalpos era de cem esterlinas para meninos com mais de doze anos e homens, cinquenta esterlinas para os escalpos de mulheres e crianças. Não tenho memória de nenhum filme mostrando bárbaros colonizadores retirando o escalpo de pessoas pertencentes aos povos nativos dos Estados Unidos. A ética cinematográfica parece corroborar ainda a tese da guerra justa: os bons reagem para se defenderem.

No início do século XXI, passados mais de trezentos anos, estamos neste ponto do horror: crianças dentro de jaulas, no país que ataca povos em nome dos direitos humanos e da democracia, mas se recusa a salvar povos dentro das suas fronteiras. Estamos neste ponto: portos fechados no Mediterrâneo, com governos do Mediterrâneo que sistematicamente expulsam migrantes e criticam, em pleno surto de amnésia, os vizinhos que fazem o mesmo. É que nós somos bons, mas não quando o problema é nosso: neste caso, voltamos ao ponto anterior, a guerra justa, a reação motivada, os náufragos que não pertencem a ninguém, o escalpo seletivamente esquecido na tela do cinema, a morte perdida no mar de notícias.

No início do século XXI, países do Mediterrâneo abrem um porto de um lado e erguem um muro do outro. Países sem fronteiras com o Mediterrâneo não querem sequer ouvir falar de migrantes e, antes de tudo, constroem uma barreira. Passados trezentos anos, já juntamos trinta mil cabeças no abismo do mar que une os povos da civilização ocidental. O abismo cobre tudo, especialmente a memória. Não há escalpos materiais a horrorizar as notícias dos nossos jornais. Passados trezentos anos, estamos lobotomizados, incapazes de interpretar as ondas do mar que cobrem os cadáveres, inaptos para perceber o que há de simbólico: a decapitação da vida e, quando não da existência, a morte da dignidade.

No início do século XXI, estamos parados há trezentos anos: naquele ponto em que as cabeças são levadas a prêmio e a culpa não é nossa. Porque hoje as resoluções são diferentes, e não somos nós que invadimos, são os outros. E não matamos com as nossas mãos: que culpa temos, se eles não sabem nadar? E se são perseguidos, os governos não são nossos. E se são impedidos de entrar, é porque não têm visto. E se desprezamos qualquer sentido ético da nossa conduta é porque tecnicizamos as leis. Regulamentamos fluxos e não o desenvolvimento das pessoas. Somos promotores de escalpos. Somos o aplauso, somos a vergonha, somos a impotência, somos os eleitores, somos os agentes da lei. Somos a desumanização. O coração do Mediterrâneo. O berço da civilização ocidental.

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