sexta-feira, 16 de junho de 2017

MEMÓRIAS DE UM FUMANTE


Poderia ser um bom título de um livro. Um livro de memórias de alguém que, como eu, em tempos pretéritos, por mais de uma década, desfrutou o prazer de colocar um punhadinho de tabaco numa folha de papel meticulosamente recortada, cuidar para que estivesse bem prensado e fechado, apertar suavemente uma ponta e, riscando calmamente um fósforo na caixa, fazer surgir a brilhante chama que, encostada à outra ponta, fazia surgir a suave fumaça que, sorvida lentamente pela boca, chegava aos pulmões e, percorrendo a corrente sanguínea, terminava no cérebro provocando a doce turbidez do vazio que acalma todas as preocupações! Doce sensação! Só a conhece quem já a experimentou...

O cigarro industrial, aquele comprado em maços de 20 unidades, não alterava a sensação de prazer do rito. Tirar o plástico da caixinha, levantar a tampa, rasgar a capa interna apenas num lado, golpear a caixa contra a mão para extrair o tubinho branco recheado, tomar esta unidade por entre dois dedos e, para firmar o conteúdo, golpeá-la ritmadamente, com o filtro para baixo, na ponta da unha, e finalizar a mesma sequência: fósforo, fumaça, boca, pulmão, cérebro, relax...

Mas podia também ser uma memória social. Sou do tempo em que era normal fumar em sala de aula. Na Universidade, na década de 1980, eram raros os estudantes e professores que não fumassem. No frio inverno de Pelotas, fazíamos isso com janelas fechadas! Os incomodados é que deviam retirar-se. Nos ônibus, só não se podia fumar “cachimbo e palheiro”. O resto estava liberado. Nos aviões da velha Varig e de todas as companhias aéreas, a área mais segura, a dos fundos, era reservada para os fumantes. Mas como a fumaça é volátil, todos os navegantes aéreos desfrutavam do subproduto pulmonar dos que ocupavam a área privilegiada.

A televisão, assim como todos os outros meios de comunicação, sobrevivia de comerciais de cigarro. O Gérson ensinava que, fumando, se podia levar vantagem em tudo. Filmes, novelas, programas de auditório, talk-shows e até programas jornalísticos tinham suas estrelas permanentemente com um cigarro na mão e na boca.

Aos mais jovens, tudo isso pode parecer absurdo. Mas é coisa de, no máximo, trinta anos. Hoje, ser fumante é vergonhoso. Quem deseja fumar, tem que buscar um lugar discreto e longe das pessoas. Há poucos dias, num ônibus intermunicipal no qual me deslocava para uma cidade do interior, entrou um senhor fumante. Percebia-se sua condição pelo cheiro da roupa. Quando ele se acomodou no seu banco numerado, os passageiros que estavam com assentos a seu lado, deslocaram-se para longe. Por sorte havia lugar! Imagino que se não houvesse lugares vagos longe do ignóbil ser que ainda usava desfrutar do prazer do tabaco, haveria discussão e ele seria forçado a deixar o ônibus.

Como mudamos tanto em relação ao cigarro em tão pouco tempo? Conhecimento, esclarecimento, preocupação com a saúde, consciência social, legislação, cultura... Muitos fatores, com certeza, pesaram. Mas uma pergunta que vai além de todos estes fatores: por que relutamos, como pessoas e como coletividade, em mudar outros hábitos que tanto incomodam a nossa vida e a vida em sociedade? Alcoolismo, machismo, violência, racismo, especismo, corrupção, capitalismo? Mistérios do ser humano que certamente não serão desvelados pelas suaves, perfumadas e voláteis curvas da fumaça que sobe de um vegetal queimado e inalado. Mas bem que podia...

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