sábado, 5 de setembro de 2020

PROCURAR SOLUÇÕES

Sociedade criativa deve procurar soluções 'fora da caixa' | Blog John  Richard
Cientistas sociais do futuro encontrarão na pandemia farto material de pesquisa. Eles terão o que nós não temos: o benefício da passagem do tempo, que filtrará as potencialidades que o momento atual abre e que se cristalizarão nas escolhas e na ação dos diversos agentes sociais. O privilégio que nos resta é o de mapear as possibilidades, dilemas e ensinamentos que a pandemia nos lega, e que podem nos orientar como cidadãos na procura de um futuro melhor para nossas sociedades.

A pandemia nos apresentou em forma nua e dramática um problema sempre presente na sociedade: a vida social exige conviver com valores contraditórios, que nos obrigam a hierarquizar, dosar e negociar as demandas de cada um. Como responder às exigências de controle da epidemia e salvar vidas, e às da economia, mas também da educação, do equilíbrio psicológico, tudo isso buscando preservar a privacidade frente ao uso de sistemas de vigilância eletrônica?

Alguns governantes, como no caso brasileiro, ignoraram o conhecimento científico, negando a importância da doença e promovendo medicamentos sem comprovação, tudo em nome de “manter a economia funcionando”, baseados em cálculos eleitorais. A reação a esta atitude ignorante e irresponsável não deve nos levar, por outro lado, à suposição de que a ciência pode nos dar respostas unívocas do que deve ser feito.

Procurar soluções exige, em primeiro lugar, a capacidade de utilizar o conhecimento científico disponível, mas se a ciência é o ponto de partida, as respostas são decisões políticas que cabem às autoridades públicas. Devem ser julgadas pela sua capacidade de maximizar o bem comum.

A pandemia levou ao centro do espaço público um personagem geralmente relegado às margens: os especialistas em saúde pública. Que a disciplina preponderante nos meios de comunicação, a economia, tenha perdido espaço para a medicina, representa um importante corretivo para o debate público e para a consciência cívica da população. Essa correção nos lembra que o primeiro objetivo da uma comunidade é preservar a vida, e, portanto, o sistema de saúde deve ter um lugar prioritário na política nacional. Isto sem mencionar a necessidade de reconhecer e prestigiar os funcionários do sistema de saúde, em especial os que trabalham nos hospitais, como se viu em muitos países do mundo. No Brasil, o governo federal nada disse a esse respeito. E a sociedade, exceções à parte, não fez ouvir sua voz de apoio como deveria.

A centralidade que os especialistas da área devem ter em situações de crise de saúde pública é inegável — o que não significa que caiba a eles a decisão última sobre o que deve ser feito. Como em toda disciplina cientifica, além de diferença de opiniões, a saúde pública se orienta por um único critério, e por mais fundamental que ele seja, a vida em sociedade não pode ser reduzida a uma única variável. A melhor escolha, como ensina a teoria dos sistemas, é aquela que se utiliza de múltiplos critérios.

Em vários países, governos formaram comissões multidisciplinares para enfrentar a pandemia, e, quando necessário, assumiram posições divergentes dos especialistas em saúde pública. Recentemente, o Ministro da Educação da França foi perguntando por que se decidiu pela reabertura das escolas, divergindo da opinião dos epidemiologistas, e respondeu que, tomando todas as precauções possíveis, devia levar em conta vários critérios para assegurar o bem público. Não se trata de o político desconhecer ou se colocar acima do conhecimento cientifico, mas de assumir o papel que lhe foi delegado pelo voto, como responsável último pelas decisões e suas consequências, pelos rumos que o país deve tomar.

O conflito entre a liberdade individual e a proteção do bem comum, foi colocado em forma aguda durante a pandemia. O poder público, em nome da preservação da comunidade, pode limitar a liberdade individual, seja de movimento, de expressão, ou impor medidas, como a vacinação obrigatória ou uso de máscaras?

Não é aqui o lugar de entrar nos meandros de um tema complexo. O que nos interessa indicar são algumas lições que podem ser retiradas da experiência recente durante a pandemia.

A liberdade é um valor fundamental numa democracia. Como todo direito, ele exige sua delimitação legal para assegurar que a liberdade não seja utilizada para produzir danos em terceiros. O respeito às regras de quarentena, a utilização de máscaras, o distanciamento social, são medidas necessárias para assegurar o bem-estar público. A questão que se coloca é como assegurar que elas não eliminem a possibilidade de expressar o desacordo e o protesto social.

Situações sociais extremas, como uma pandemia ou uma guerra, esticam ao limite a possibilidade de aplicar normas gerais que asseguram as liberdades individuais. No caso de uma pandemia, a expressão individual de desacordo com políticas públicas, como não usar máscaras ou não manter a distância social, é uma afirmação egoísta, quando não narcisista, que acarreta grave dano à sociedade.

O que me parece questionável, sim, é que se negue o direito a realizar manifestações coletivas de protesto. Certamente que manifestações públicas, em situação de pandemia, apresentam um enorme risco de contágio. Por outro lado, proibi-las não só retira do público um recurso fundamental de participação política como também permite que o Estado, ou grupos políticos, possam se aproveitar da situação.

Não foi circunstancial que a movimentação em torno do presidente Bolsonaro a favor do AI-5 tenha acontecido durante o início da quarentena, aproveitando de que as pessoas estavam isoladas nos seus lares. As manifestações de rua contra o movimento golpista, se é de lamentar que muitos manifestantes não tenham tomado os cuidados suficientes para se proteger do contágio, foi uma declaração dos cidadãos que a defesa da democracia se sobrepunha até às medidas sanitárias.

Um dos paradoxos do caso brasileiro, nesse sentido, é que o grupo que empunhava a bandeira da liberdade para desconhecer as medidas de saúde pública o fazia para manifestar apoio a um “novo AI-5” — isto é, propondo a censura e a destruição da liberdade. Aliás, um fenômeno similar ao que acontece em torno do debate sobre a regulação das fake news. Aqueles que são contra, são os mesmo que utilizam as redes sociais para divulgar mensagens que visam a destruição das instituições democráticas e a promoção do autoritarismo.

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