sexta-feira, 11 de setembro de 2020

POLÍTICA, SAÚDE E VALORES (I)

Coluna Tarcízio Leite: Inversão de Valores

Cientistas sociais do futuro encontrarão na pandemia farto material de pesquisa. Eles terão o que nós não temos: o benefício da passagem do tempo, que filtrará as potencialidades que o momento atual abre e que se cristalizarão nas escolhas e na ação dos diversos agentes sociais. O privilégio que nos resta é o de mapear as possibilidades, dilemas e ensinamentos que a pandemia nos lega, e que podem nos orientar como cidadãos na procura de um futuro melhor para nossas sociedades.

I.

A pandemia nos apresentou em forma nua e dramática um problema sempre presente na sociedade: a vida social exige conviver com valores contraditórios, que nos obrigam a hierarquizar, dosar e negociar as demandas de cada um. Como responder às exigências de controle da epidemia e salvar vidas, e às da economia, mas também da educação, do equilíbrio psicológico, tudo isso buscando preservar a privacidade frente ao uso de sistemas de vigilância eletrônica?

Alguns governantes, como no caso brasileiro, ignoraram o conhecimento científico, negando a importância da doença e promovendo medicamentos sem comprovação, tudo em nome de “manter a economia funcionando”, baseados em cálculos eleitorais. A reação a esta atitude ignorante e irresponsável não deve nos levar, por outro lado, à suposição de que a ciência pode nos dar respostas unívocas do que deve ser feito.

Procurar soluções exige, em primeiro lugar, a capacidade de utilizar o conhecimento científico disponível, mas se a ciência é o ponto de partida, as respostas são decisões políticas que cabem às autoridades públicas. Devem ser julgadas pela sua capacidade de maximizar o bem comum.

A pandemia levou ao centro do espaço público um personagem geralmente relegado às margens: os especialistas em saúde pública. Que a disciplina preponderante nos meios de comunicação, a economia, tenha perdido espaço para a medicina, representa um importante corretivo para o debate público e para a consciência cívica da população. Essa correção nos lembra que o primeiro objetivo da uma comunidade é preservar a vida, e, portanto, o sistema de saúde deve ter um lugar prioritário na política nacional. Isto sem mencionar a necessidade de reconhecer e prestigiar os funcionários do sistema de saúde, em especial os que trabalham nos hospitais, como se viu em muitos países do mundo. No Brasil, o governo federal nada disse a esse respeito. E a sociedade, exceções à parte, não fez ouvir sua voz de apoio como deveria.

A centralidade que os especialistas da área devem ter em situações de crise de saúde pública é inegável — o que não significa que caiba a eles a decisão última sobre o que deve ser feito. Como em toda disciplina cientifica, além de diferença de opiniões, a saúde pública se orienta por um único critério, e por mais fundamental que ele seja, a vida em sociedade não pode ser reduzida a uma única variável. A melhor escolha, como ensina a teoria dos sistemas, é aquela que se utiliza de múltiplos critérios.

Em vários países, governos formaram comissões multidisciplinares para enfrentar a pandemia, e, quando necessário, assumiram posições divergentes dos especialistas em saúde pública. Recentemente, o Ministro da Educação da França foi perguntando por que se decidiu pela reabertura das escolas, divergindo da opinião dos epidemiologistas, e respondeu que, tomando todas as precauções possíveis, devia levar em conta vários critérios para assegurar o bem público. Não se trata de o político desconhecer ou se colocar acima do conhecimento cientifico, mas de assumir o papel que lhe foi delegado pelo voto, como responsável último pelas decisões e suas consequências, pelos rumos que o país deve tomar. 

CONTINUA AMANHÃ...

               

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