sábado, 12 de setembro de 2020

POLÍTICA, SAÚDE E VALORES (II)

Coluna Tarcízio Leite: Inversão de Valores

II.

O conflito entre a liberdade individual e a proteção do bem comum, foi colocado em forma aguda durante a pandemia. O poder público, em nome da preservação da comunidade, pode limitar a liberdade individual, seja de movimento, de expressão, ou impor medidas, como a vacinação obrigatória ou uso de máscaras?

Não é aqui o lugar de entrar nos meandros de um tema complexo. O que nos interessa indicar são algumas lições que podem ser retiradas da experiência recente durante a pandemia.

A liberdade é um valor fundamental numa democracia. Como todo direito, ele exige sua delimitação legal para assegurar que a liberdade não seja utilizada para produzir danos em terceiros. O respeito às regras de quarentena, a utilização de máscaras, o distanciamento social, são medidas necessárias para assegurar o bem-estar público. A questão que se coloca é como assegurar que elas não eliminem a possibilidade de expressar o desacordo e o protesto social.

Situações sociais extremas, como uma pandemia ou uma guerra, esticam ao limite a possibilidade de aplicar normas gerais que asseguram as liberdades individuais. No caso de uma pandemia, a expressão individual de desacordo com políticas públicas, como não usar máscaras ou não manter a distância social, é uma afirmação egoísta, quando não narcisista, que acarreta grave dano à sociedade.

O que me parece questionável, sim, é que se negue o direito a realizar manifestações coletivas de protesto. Certamente que manifestações públicas, em situação de pandemia, apresentam um enorme risco de contágio. Por outro lado, proibi-las não só retira do público um recurso fundamental de participação política como também permite que o Estado, ou grupos políticos, possam se aproveitar da situação.

Não foi circunstancial que a movimentação em torno do presidente Bolsonaro a favor do AI-5 tenha acontecido durante o início da quarentena, aproveitando de que as pessoas estavam isoladas nos seus lares. As manifestações de rua contra o movimento golpista, se é de lamentar que muitos manifestantes não tenham tomado os cuidados suficientes para se proteger do contágio, foi uma declaração dos cidadãos que a defesa da democracia se sobrepunha até às medidas sanitárias.

Um dos paradoxos do caso brasileiro, nesse sentido, é que o grupo que empunhava a bandeira da liberdade para desconhecer as medidas de saúde pública o fazia para manifestar apoio a um “novo AI-5” — isto é, propondo a censura e a destruição da liberdade. Aliás, um fenômeno similar ao que acontece em torno do debate sobre a regulação das fake news. Aqueles que são contra, são os mesmo que utilizam as redes sociais para divulgar mensagens que visam a destruição das instituições democráticas e a promoção do autoritarismo.
CONTINUA AMANHÃ...

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