quarta-feira, 31 de julho de 2019

PACIÊNCIA LEITOR AMIGO.




O causo a seguir me foi contado como verdadeiro, ou melhor, baseado num fato real, ou seja, provavelmente não aconteceu. Mas a história é boa e resolvi vender o peixe pelo preço que comprei. Tá bom, floreei um pouco, inventei uns detalhes, dei uma demão nas palavras e repasso a você, pacientíssimo leitor, pela módica quantia de uma lida de banheiro.
O digníssimo sabe; "lida de banheiro" é o tempo que se gasta na leitura de um texto na medida exata necessária à, com perdão da palavra, obragem dos subprodutos da digestão. Dito isso, vamos ao causo.
Severino e Antônio trabalhavam, fazia tempo, numa construtora onde começaram juntos. Severino chegou a mestre de obras, Antônio não passou de servente de pedreiro. Talvez por isso, Severino deu de pegar no pé de Antônio. No trabalho e fora dele.
Eram reprimendas públicas, humilhantes, desqualificando Antônio diante dos companheiros de trabalho. Como eram vizinhos também de moradia, as rusgas continuavam no boteco onde iam tomar as pingas do fim de semana, na padaria, até na igreja.
Severino tinha um prazer sádico e cruel em espezinhar o pobre do Antônio.
A coisa piorou quando, durante uma obra, Antônio prendeu a mão na carretilha por onde subia a lata de massa e quebrou três dedos. Severino desancou o pobre. Chamou de burro, incompetente, irresponsável e outros adjetivos não publicáveis. Antônio ouviu a tudo, calado, gemendo sua dor e sua humilhação.
No pronto-socorro os dedos foram colocados no lugar à moda SUS, a mão gessada e expedido o devido atestado de afastamento do serviço por trinta dias, o que motivou nova onda de fúria e impropérios de Severino, quando Antônio lhe levou o documento.
Trinta dias se passaram, Antônio voltou ao médico, enfrentou fila, o gesso foi tirado assim, sem raio-X nem nada, e retornou ao trabalho.
Severino fez pouco caso, ameaçou veladamente, mas readmitiu Antônio, já que mão de obra na construção civil não está sobrando por aí.
Mas... graças ao serviço meia-bomba do médico sem-família (e sem mãe, segundo Antônio), o dedo indicador ficou torto, tortinho da silva, assim, parecendo um gancho, quase um anzol.
Severino quando viu aquilo, deu uma gargalhada estrondosa e não perdoou. Logo só chamava Antônio pelo apelido de Capitão Gancho.
Antônio encolhia a mão, escondia, tanto quanto possível, o dedo torto, mas era, todos os dias, alvo de piadas e motivos de risadas de Severino e seus puxa-sacos. Isso durou um ano e meio, que foi o tempo da obra.
Enfim, trabalho finalizado, era praxe da empresa, no primeiro sábado depois de terminado o serviço, fazer a "festa da cumeeira", queimando uma carne e liberando pinga e cerveja pra peãozada.
Todos estavam lá. Severino, depois de beber umas e muitas, elegeu Antônio como alvo da sua feroz ironia. Era Capitão Gancho prá lá, Capitão Gancho pra cá, ridicularizando o pobre coitado que foi se enchendo de ira, ao mesmo tempo em que se enchia de pinga, até que tudo derramou.
Severino, a certa altura, gritou: "ô Capitão Gancho, me empresta esse dedo torto pra abrir as latas de cerveja!".
As gargalhadas ainda soavam quando Antônio, cego de raiva, pegou uma marretinha que estava sobre uma pilha de tijolos e, ato contínuo, atirou-a na direção de Severino, atingindo-o em cheio, bem na testa.
O susto, o silêncio, o corre-corre para o pronto-socorro. Tarde demais. Severino já chegou morto.
Antônio foi preso, denunciado por homicídio qualificado por motivo torpe e, meses depois, foi a julgamento.
Sem dinheiro, sem recursos, a vida em frangalhos, foi-lhe designado um defensor público para representá-lo, rapaz novo, advogado recém-formado, mas que teve o cuidado de conversar com Antônio, ler com atenção todo o processo, ouvir seus colegas de trabalho, visitar sua família, enfim, saber a história que estava por trás daquele caso que, para muitos, seria, apenas, mais um caso.
No dia do julgamento, o juiz abriu a sessão, o promotor apresentou a acusação e o advogado iniciou assim a sua fala:
"Meritíssimo senhor juiz, excelentíssimo senhor promotor, nobilíssimo corpo de jurados, digníssimos presentes; ao longo desse julgamento vou demonstrar ao meritíssimo senhor juiz, ao excelentíssimo senhor promotor, ao nobilíssimo corpo de jurados e aos digníssimos presentes que o meu cliente cometeu o crime movido por violenta emoção, o que lhe turvou o raciocínio, impedindo-o de ter controle sobre seus atos,como o excelentíssimo senhor promotor, o nobilíssimo corpo de jurados e os digníssimos presentes poderão constatar nas provas dos autos".

O promotor fez nova intervenção, ressaltando a banalidade do crime.

Ao que respondeu o advogado: "Meritíssimo senhor juiz, excelentíssimo senhor promotor, nobilíssimo corpo de jurados, digníssimos presentes, muitas vezes, o que é banalidade para uns pode ser insuportável para outros".
Um murmúrio de incômodo, impaciência e mal-estar percorreu a sala do tribunal.
O promotor insistiu: "tirar uma vida por causa de uma brincadeira? Não é um crime hediondo? Matar alguém por razões tão banais?".
O advogado: "Meritíssimo senhor juiz, excelentíssimo senhor promotor, nobilíssimo corpo de jurados, digníssimos presentes, não é banalidade ser perseguido e humilhado, todos os dias, dentro e fora do trabalho, como vou demonstrar através das respeitabilíssimas testemunhas que irei apresentar ao meritíssimo senhor juiz, ao excelentíssimo senhor promotor, ao nobilíssimo corpo de jurados e aos digníssimos presentes...".
O juiz, exasperado, interrompeu-o: senhor advogado, peço que seja objetivo na sua fala. Não é necessário ficar repetindo tantos adjetivos para dirigir-se ao tribunal. Na verdade, está apenas excedendo nosso precioso tempo e irritando todos os presentes...".
"Vejam bem, meritíssimo senhor juiz, excelentíssimo senhor promotor, nobilíssimo corpo de jurados, digníssimos presentes. Em poucos minutos, durante os quais só lhes dirigi palavras respeitosas e dignas, consegui irritar a todos. O meu cliente, por mais de um ano, foi perseguido pela vítima com todo tipo de agressões verbais sintetizadas no apelido de Capitão Gancho. Era ou não era pra perder a estribeira?".
Antônio foi absolvido por unanimidade.

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