quinta-feira, 3 de abril de 2025

UM CAIM MODERNO, ASSASSINO DA VIDA,


 

As Escrituras falam do primeiro assassinato, o de Caim, que por

 inveja matou a seu irmão Abel. O Senhor perguntou a Caim: ”onde

 está o teu irmão Abel”, ao que lhe  respondeu; “não sei, por acaso

 sou guarda de meu irmão”? Deus disse: ”ouço da terra a voz do

 sangue de teu irmão. Agora serás amaldiçoado pela própria terra, que

 engoliu o sangue do teu irmão derramado por ti(Gênesis,4,9-12).

Há toda uma genealogia de Caims ao largo da história que assassinaram, degolaram e exterminaram inteiras nações. Hoje a humanidade está assistindo a ação de um descendente de Caim, Donald Trump. Poucos definiram melhor o propósito do nosso Caim do que o jornalista nacional/internacional brasileiro Jamil Chade cujas palavras repercutiram numa Live na Alemanha. Afirma Jamil Chade: ”Donald Trump já deixou claro:não irá fazer diplomacia. Atuará com a FORÇA, tanto bélica quanto econômica e comercial. Sua construção de uma nova ordem não passa pela PAZ. Mas pela CAPITULAÇÃO do adversário”.

Efetivamente, Trump deu uma reviravolta na ordem existente  mundial “regida por regras”(que interessavam os poderosos),mas que de alguma forma mantinha certo equilíbrio/desequilíbrio no planeta, dominado pelo capital especulativo em mãos de um pequeno grupo de miliardários.

Na disputa entre unipolaridade e multipolaridade (Rússia e China) entrou de cheio em defesa da unipolaridade dos Estados Unidos: querem ser os únicos a dominar o mundo. Para manter o monopólio do poder rompeu com aliados, especialmente europeus, saiu de quase todos os organismos da ONU, talvez o mais danoso, do tratado de Paris de 2015 que previa um esforço coletivo na redução de gazes de efeito estufa para estabilizar a Terra a 1,5ºC acima da era industrial, até  2030. Já ultrapassamos este número e estamos perto de 2ºC ou mais.

Mas o que mostrou seu caráter de Caim da Terra foi ser o único país a votar contra o projeto da ONU contra a fome no mundo. Cortou as ajudas humanitárias, especialmente contra a fome, como a USAIDS. Na África muitas crianças morreram de fome. O supressão do voucher de comida em  Bangladesh causou uma devastação entre a população pobre. Continuou apoiando o genocídio em Gaza, coisa que fizera também o genocida ex-presidente católico Joe Biden. Mais de quinze mil inocentes foram vitimados pelas bombas israelenses. É um crime contra a humanidade que clama aos céus. Trump continua apoiando o genocídio.

Além de impor pesadas tarifas às importações a todos os países, amigos ou “inimigos”, a partir de 3 de abril, internamente nos EUA fechou o Departamento de Educação, onde se forma o  espírito criativo e crítico, cortou verbas para a saúde, para a pesquisa científica e para os subsídios  às universidades. Seus decretos passam por cima das leis e da própria Constituição, o que tem provocado já vários processos judiciais.

O que está fazendo com os imigrantes indocumentados, deportados, acorrentados, aos milhares, com violência a seus países de origem, ou o que é pior à prisão de Guantánamo, famosa por seus maus tratos e torturas, ou às prisões de El Salvador sob o presidente tirano Nayb Bukele, notório violador dos direitos humanos, com torturas e assassinatos nas prisões.

A paz é imposta pela força o que significação violenta pacificação. A diplomacia e o eventual diálogo são apenas um estratagema por impor a sua vontade. Como disse, conforme o país faz o diálogo com o revolver sobre a mesa. Com os fracos fala alto e aos gritos, com os fortes baixo e manso. As únicas potências que respeita, por limitarem  de seus propósitos hegemônicos, são a China e a Rússia.

“Fazer a América grande novamente”(MAGA) ou “a América em primeiro lugar”(entendido “só a América”) jamais será alcançada pelos métodos perversos, violentos e humilhantes que está usando, métodos assumidos por toda a sua administração. Desde quando a história mostrou que métodos violentos criam uma paz duradoura? Só métodos pacíficos geram paz. A paz é fim e ao mesmo tempo meio.

Não é improvável que para derrotar a China que já ultrapassou em muitos aspectos os USA utilize armas nucleares. A fome de poder é insaciável e, no fundo, quando a potência se sente prestes a ser superada, mova uma guerra suicida, o que significaria um desastre incalculável para a biosfera e para a sobrevivência da espécie humana. Ai se consumiria o caráter de Caim de Trump, um anjo mau da morte e dos que o aconselham. Assim se cumpririam as palavras da Escritura: ”Ouço da terra a voz do SANGUE de teus irmãos. Agora serás AMALDIÇOADO pela própria terra, que engoliu o sangue do teus irmãos derramados por ti, Caim (Genesis,4,9-12).

Que o Senhor dos tempos e da história nos  livre de semelhante desgraça, cometida por um Caim moderno, assassino  da vida.

domingo, 23 de março de 2025

TERRA FERIDA.

 


   Uma  das preocupações centrais hoje na geopolítica é como enfrentar o aquecimento global. Tudo indica que entramos numa nova era geológica a era da mudança climática generalizada, causada pelo aquecimento crescente do planeta. Cientistas da área confessam que não temos condições de fazer retroceder este processo. Cabe-nos advertir a chegada dos eventos extremos e minorar seus efeitos danosos.

         No esforço de evitar que o aquecimento ultrapasse 1,5ºC o que já ocorreu, organiza-se um esforço gigantesco de descarbonização do processo produtivo. Ocorre que este esforço não produziu até hoje, não obstante as inúmeras sessões de COP, nenhum resultado significativo. E não vai produzi-lo nunca enquanto não se coloca a verdadeira questão:

Qual é o tipo de relação que as sociedades mundiais (salvaguardados os povos originários que surfam sobre outra onda) estabelecem para com a natureza? É uma relação de sinergia, de cuidado e respeito ou de simples e pura exploração? É esta que domina já há séculos. Aqui reside o verdadeiro problema.

As feridas no corpo da Mãe Terra provocadas pela voracidade produtivista são tratadas com band-aids e esparatrapos. Não se busca a cura da ferida mas apenas seu escamoteamento pela aplicação de band-aids ou medidas meramente paliativas.

         O sistema atual capitalista se fundana relação de exploração do bens e serviços da Terra, no pressuposto inconsciente, de que eles são ilimitados e que por isso podem levar avante um projeto de crescimento ilimitado.  Este se mede pelo nível de riqueza de uma nação, concretizada pelo Produto Interno Bruto(PIB). Ai do país que não apresentar um superavit e um PIB sustentado. Corre o riso de recessão com os efeitos nefastos conhecidos.

         Caso o sistema mudasse a relação para com a natureza no sentido de respeitar seus ritmos, sua capacidade de regeneração e co-evolução no processo geral cosmogênico deveriam mudar os comportamentos, as técnicas, renunciar os níveis de acumulação. E não o fazem. Os mantras do sistema imperante nunca mudaram: acumulação ilimitada, individualista, com forte competição e  exploração ao máximo das riquezas naturais.

         Ocorre que estas riquezas naturais não só são limitadas, mas sua capacidade de suporte (a Sobrecarga da Terra)foi superada, pois já agora o consumo da espécie especialmente o consumismo suntuoso das classes endinheiradas está exigindo mais de uma Terra e meia (1,7).E só temos esta Terra.

         Enquanto não se mudar de paradigma na relação para com a natureza, enquanto não se passar da exploração para a sinergia e cooperação e a busca da justa medida, em vão serão todos os encontros mundiais visando impor limites ao aquecimento global com tudo o ele inclui (falta de água potável, desertificação, migração de populações inteiras, devastação da biodiversidade, conflitos e guerras e outras ameaças à vida).

         A pandemia do Coronavírus foi a oportunidade de repensarmos uma nova relação para com a natureza. Poucos se perguntaram de onde veio o vírus? Veio do desmatamento e destruição do habitat deste de outros vírus. Passada crise, voltamos ao mundo anterior com mais voracidade ainda, sem ter aprendido nada do sinal que a Mãe Terra nos enviou. O mesmo está ocorrendo agora com as grandes enchentes, as queimadas, os tornados, as secas. Todos são sinais que a Terra viva nos envia e que nos cabe decifrar. E não fazemos o devido esforço de decifração que nos exigiria mudanças substanciais. Por isso os eventos extremos continuam e aumentarão pondo em risco milhares de vidas e no limite a nossa própria existência sobre esta planeta.

         Por isso rejeitamos falsas soluções dos band-aids e esparatrapos sobre o corpo da Mãe Terra, aplicados especialmente apor queles que não largam o osso como as grandes corporações de energia fóssil e do carvão,  presentes em todas as COPs e fazendo ingente pressão para que nada se mude realmente.

Eles carregam um aguilhão nos pés do qual não conseguem mais se libertar. Por isso são condenados a continuar com sua lógica de acumulação, pondo em risco o futuro da vida.                       

Mas, nas grandes dizimações do passado a vida sempre sobreviveu.  E esperamos que ainda continue sobre a Terra.

sexta-feira, 14 de março de 2025

GENTILEZA GERA GENTILEZA



 Vivemos tempos de violência e de brutalidade generalizadas nas 

relações pessoais, sociais e internacionais, potencializadas pelas 

novas formas de comunicação digital. Parece que a desumanidade se 

naturalizou se tomarmos como referência os crimes contra a 

humanidade e o verdadeiro genocídio, a céu aberto, como estão 

ocorrendo na Faixa de Gaza no conflito entre o Hamas e o governo de Israel. 

Já quase não aparecem mais nos jornais e nas várias mídias. Não é novidade: a vida pouco conta (Live no matter).

 As atitudes o presidente Donald Trump dos USA  inaugura tempos de brutalização e de arrogância, difundidos por todo o mundo.  Já se disse com razão: ele se comporta como um escoteiro às avessas. O escoteiro se propunha fazer uma boa ação cada dia. Trump faz cada dia uma nova má ação contra o mundo. Não apenas coloca a América “em primeiro lugar” mas a “só a América é que conta”. Parece que o mundo deve se submeter a seus devaneios de poder ilimitado, inclusive de matar todo mundo.

É neste contexto desolador que me vem à mente o Profeta Gentileza. Por ocasião do incêndio do Circo Norte-americano em Niterói no dia 17 de novembro de 1961, no qual 500 pessoas foram vitimadas, ele teve como que uma experiência espiritual. Pedro da Trino, esse era seu nome, deveria deixar seu trabalho de caminhoneiro e toda a sua família e dirigir-se ao local do sinistro para consolar as pessoas. Aplainou o lugar transformando-o num jardim florido. Por quatro anos consolou a todos que iam ao local chorar de seus mortos dizendo-lhes: “o corpo está morto mas o espírito deles está em Deus”.

Decorridos  quatro anos, passou a vestir-se com uma bata branca cheia de apliques, com um bastão, um longo estandarte com suas mensagens, encimado por flores para lembrar o jardim do Eden. Percorreu o pais, o nordeste e o norte, pregando suma mensagem: ”Gentileza gera Gentileza”. Por fim fixou-se no Rio percorrendo a cidade com seu evangelho da gentileza, como um Dom Quixote bizarro mas que conquistou a simpatia de muitos, cantado por músicos e artistas, até morrer em 1996 em Mirandópolis, São Paulo. Foram 35 anos de coerente missão profética. Esta figura nos sugere algumas reflexões.

     Como todo profeta, Gentileza denuncia e anuncia. Denuncia este mundo, regido “pelo capeta capital que vende tudo e destrói tudo”. Vê no circo destruido uma metáfora do circo-mundo que também será destruído. Mas anuncia a “gentileza que é o remédio para todos os males”. Deus é “Gentileza porque é Beleza, Perfeição, Bondade, Riqueza, a Natureza, nosso Pai Criador”.

Um refrão sempre volta, especialmente nas 56 pilastras com inscrições na entrada da rodoviária Novo Rio no Caju: “Gentileza gera gentileza, amor”. Na Eco 92 a cúpula dos povos para tratar de desenvolvimento e ecologia, gritava aos chefes de Estado: “Gentileza gera Gentileza”. Convidava a todos a serem gentis e agradecidos. Na verdade, anuncia um antídoto à brutalidade de nosso sistema de relações. É precursor, sob a linguagem popular e religiosa, de um novo paradigma civilizatório urgente em toda a humanidade, baseado não na cobiça do enriquecimento mas no espírito de gentileza e de fineza. Isso nos faz lembrar Blaise Pascal (1623-1662), grande matemático e pensador que nos fragmentos 511,512 de seus Pensées distinguia o “espírito de geometria” do “espírito de fineza”. O primeiro, ”espírito de geometria”(esprit de géomtrie) próprio da modernidade nascente, se concentra no cálculo e no interesse enquanto o segundo, “espírito de fineza”(esprit de finesse) e de sensibilidade humana caracteriza as relações gratuitas e desinteressadas entre as pessoas. Previa que o primeiro iria predominar na história, o que de fato ocorreu.

Hoje temos que resgatar, contra a barbárie, a grosseria e a estupidez dominantes, o valor da gentileza, da sensibilidade para com o outro, do respeito às diferenças e a benquerença geral. Pascal via no espírito de fineza a qualidade do honnête homme” do “homem de bem”. Hoje o “homem de bem” são pessoas que se proclamam “patriotas” mas  se utilizam da mentira, da calúnia e da difusão de desinformação para realizar seu projeto de poder autoritário e velhista. Para esses vale mais que a outros o “evangelho da gentileza”.

Cremos sim, com o Profeta Gentileza que a “gentileza”, como proclamava, “é o remédio para todos os males: Gentileza gera Gentileza" Pois sob a palavra “Gentileza” se esconde o que há de mais fino e nobre no ser humano,a Gentileza tão ausente e tão necessária para os dias maus que vivemos.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

UM FUTURO SUSTENTÁVEL JUNTO A MÃE TERRA.

     


Depende de nós, se queremos mudar ou prosseguir no mesmo caminho. Chegou um momento em que não temos outra alternativa senão crer, confiar e esperar em nós mesmos. Temos que beber de nosso próprio poço. Nele estão os princípios e valores que, ativados nos poderão salvar.     Elenco alguns principais.

Em primeiro lugar  o cuidado. Sabemos pela reflexão antiga (mito do cuidado de Higino) e  pela moderna (Heidegger) que a essência do ser humano reside no cuidado, condição para viver e sobreviver. Se todos os elementos da evolução não tivessem entre si um cuidado sutil, não irromperia o ser humano. Como não possui nenhum órgão especializado, precisa do cuidado para viver e sobrevier. Da mesma forma a natureza se não for cuidada definha.

Em seguida, como os biólogos (Watson/Krick) mostraram o amor pertence ao DNA humano. Amar significa estabelecer uma relação de comunhão, de reciprocidade, com todas as coisas e implica criar um laço afetivo com elas.

Fundamental é o valor a solidariedade. A bioantropologia mostrou que a busca dos alimentos,  consumidos comunitariamente  permitiu o salto da animalidade para a humanidade O que foi verdadeiro outrora,  vale muito mais ainda nos sombrios dias atuais.

Somos também seres de compaixão: podemos nos colocar no lugar do outro, chorar com ele, partilhar suas angústias e nunca deixá-lo só. É uma das virtudes mais ausentes nos dias de hoje.

Ainda somos seres de criação: continuamente estamos inventando coisas para resolver nossos problemas. Hoje mais do que nunca a inovação é urgente se não queremos chegar atrasados na salvaguarda da vida e da natureza.

Somos, desde a mais alta ancestralidade, quando emergiu o cérebro límbico há 200 milhões de anos, seres de coração, de afeto e de sensibilidade. No coração sensível reside o enternecimento, a espiritualidade e a ética. Hoje mais do que nunca devemos unir mente e coração, racionalidade e sensibilidade, pois todo o edifício científico se construiu colocando sob suspeita a afetividade. Hoje é pela sensibilidade humanitária que condenamos o perverso genocídio, feito a céu aberto, na Faixa de Gaza de mais de 13 mil crianças inocentes e de mais de 60 mil civis.

Somos, no mais profundo de nossa humanidade, seres espirituais. A espiritualidade pertence à natureza humana, com o mesmo direito de cidadania que a inteligência, a vontade e a libido. Ela deve ser distinguida da religiosidade, embora possam se potenciar. Mas não necessariamente. A espiritualidade natural é mais originária. Ela é fontal. A religiosidade supõe e se alimenta da espiritualidade. A espiritualidade vive do amor incondicional, da solidariedade, da compaixão, do cuidado com os mais frágeis e  com a natureza. Mais ainda, como seres espirituais somos capazes de identificar aquela Energia vigorosa e amorosa que sustenta todas as coisas e o inteiro universo, com qual podemos reverentemente nos abrir. Ou integramos a espiritualidade natural, vivendo como irmãos e irmãs junto com a natureza ou então  nos condenamos a repetirmos o passado com todos os riscos que hoje ameaçam nossa existência.

Uma eco-civilização, fundada sobre tais valores e princípios, pode garantir a sustentabilidade da Casa Comum. Dentro dela se encontram os vários mundos culturais que podem e devem conviver pacificamente. Uma utopia? Sim, mas uma utopia necessária se ainda quisermos ter um futuro sustentável junto com a Mãe Terra.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A ESPERANÇA NOS LANÇOU

 



O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua (Le Savant et le Politique, Paris 1990, p. 194). Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele esta encerrado numa”jaula de ferro que ele mesmo não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe (cf.a pertinente análise de M.Löwy, La jaula de hierro: 

O outro testemunho nos vem de um dos maiores historiadores do século XX, Eric Hobsbawn (1917-2012) em seu conhecido livro-síntese “A Era dos Extremos”(1994). Concluindo suas reflexões pondera:

O futuro não pode ser a continuação do passado...Nosso mundo corre o risco de explosão e implosão...Não sabemos para onde estamos indo. Contudo uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro que vale a pena, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio sobre esta base, vamos fracassar. E o preço do fracasso ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão”(p.562). Não estamos operando nenhuma mudança paradigmática da sociedade. Para onde vamos?

Convenhamos: tais juízos de pessoas altamente responsáveis devem ser ouvidas. Com acerto asseverou Papa Francisco em sua encíclica dirigida a toda a humanidade e não só aos cristãos, Sobre o cuidado  da Casa Comum (2015):”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderemos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo...nosso estilo de vida atual, por ser insustentável, pode desembocar em catástrofes”(n.161). Na encíclica Fratelli tutti (2020) radicaliza sua advertência ao afirmar: ”estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”(n.34). E não há um barco paralelo para o qual pular e nos salvar.

Neste contexto sinistro foram elaborados, entre outros menores, três documentos que procuram, no meio da obscuridade, nos infundir uma luz de esperança: a Carta da Terra (2000), as encíclicas do Papa Francisco Sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a outra Fratelli tutti  (2020).

Carta da Terra, fruto de uma ampla consulta mundial, sobre valores e princípios, capazes de nos garantir a vida no futuro, afirma com esperança:” Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções includentes (Preâmbulo d).E aponta caminhos e meios de salvamento. A encíclica Sobre o cuidado da Casa Comum o Papa nos lembra que somos Terra (n.2), com o imperativo ético de ouvir simultaneamente o grito da Terra e o grito do pobre (n.49); nossa obrigação é  comprometermo-nos na preservação e na regeneração do planeta, pois “tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa que nos une também com terna afeição ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à Mãe Terra”(n,92). Nossa missão é guardar e cuidar desta herança sagrada, hoje ameaçada.

Na encíclica Fratelli tutti confronta dois paradigmas, o do dominus (dono) com o do frater (irmão/irmã). Pelo dominus, o ser humano, se entende fora e acima da natureza, como senhor e dono dela; usando o poder da tecno-ciência tornou mais confortável a vida, mas ao mesmo tempo, levou à atual crise devastadora dos ecossistemas e ao princípio de autodestruição com armas, capazes de liquidar a vida na Terra. A este paradigma o Papa apresenta na encíclica Fratelli tutti,  o da fraternidade universal: com todos os seres da natureza, criados pela Mãe Terra e entre nós seres humanos, irmãos e irmãs junto com  os da natureza e no meio dela, cuidando-a e garantido sua regeneração e perpetuidade em benefício das presentes e futuras gerações. Essa fraternidade universal se constrói de forma sustentável a partir do território (bio- regionalismo), portanto, debaixo para cima, garantindo algo novo e alternativo ao sistema dominante que, a partir de cima, impõe uma dupla injustiça, contra a natureza devastando-a e contra os seres humanos, relegando-os em sua grande maioria na pobreza e na miséria.

Isso garante um lugar para a esperança? É o que cremos e esperamos. Mas o fato doloroso é que, como dizia Hegel (1770-1831), aprendemos da história que não aprendemos nada da história, mas aprendemos tudo do sofrimento. Prefiro a sabedoria do africano Santo Agostinho (354-430): a vida nos dá duas lições: uma severa, do sofrimento e outra agraciada, do amor que nos leva fazer atos criativos e inusitados. Provavelmente iremos aprender do sofrimento que virá, mas muito mais do amor que “move o céu e todas as estrelas”(Dante Alignieri) e nossos corações. A esperança não nos defraudará, nos rometeu São Paulo (Rom 5,5).

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

LEMOS POUCO, QUASE NADA,

 


Ler, ver, crer, ser, ter. Verbos monossilábicos da segunda conjugação. Termos estranhos, pois análise sintática e classificação gramatical devem ser temas apenas constantes em manuais antigos e provas de concursos públicos. O aprendizado moderno supõe amplitude, generalidade, contemporaneidade, interdisciplinaridade. Mas parece que querem nadar na superfície de um campo do conhecimento que é bem profundo. Todos boiam, fazendo um trocadilho. O saber consolidado fica longe de tais estratégias.

Lemos pouco. E não é literatura de formação social e política. Não lemos nem livros de autoajuda e religiosos. Ruy Castro fez crônica boa com os números que revelaram a tragédia brasileira, mostrando que menos da metade de nossa população leu algum livro no ano passado e apenas 27% dos brasileiros havia lido um livro inteiro em 2024, ou nos meses que antecederam a pesquisa. É alarmante, não se podendo apenas imputar a baixa leitura à troca pelos dispositivos eletrônicos, pois parte das telas que pipocam pode conter algum livro. Páginas viradas, páginas passadas a limpo, nada disso vivenciamos em profusão. Não lemos, nada somos. Doemos pelo que não sabemos. Mas as fake news de Nikolas Ferreira e comparsas são vistas e aceitas por milhares de pessoas ou de robôs, pode-se escolher. Sem, ao menos, procurar algum contraponto ou explicação para corroborar o que é divulgado. O ruim não é somente o que falta, mas pelo que foi substituído. Da lista inicial de verbos assim classificados, o suposto empreendedorismo individual do capitalismo passivo (aquele que preconiza que mais-valia é bem de produção, já que ninguém leu para saber) reforça o ter ante o ser. O púlpito leva ao crer antes de ver a realidade. Assim, o ler passa a ser inexistente. Em breve, será um verbo defectivo, conjugado apenas no pretérito.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

SOU O 'É" QUE SEMPRE "É".

 







A vida é inteira mas incompleta. É inteira porque dentro dela estão juntos o  real e o potencial. Mas é incompleta porque o potencial ainda não se fez real. Como o potencial  não conhece limites a vida sente um vazio que nunca consegue preenchê-lo totalmente. Por isso nunca se faz completa para sempre. Permanece na ante sala de sua própria realização.

É neste contexto que surge o tempo. O tempo é a tardança do potencial que quer irromper a partir de de dentro e deixar de ser potencial para ser real. Essa tardança poderíamos chamar de tempo. Seria a nossa abertura esperançosa, capaz de acolher o que poderá vir. O potencial realizado nos permite passar  de incompletos para inteiros sem, contudo, fazer-nos plenamente inteiros. O vazio continua. É a nossa condição de finitos habitados por um Infinito. Quem o preencherá?

Não pode ser o  passado porque já não existe e  passou. Não pode ser o futuro  porque ainda não existe, pois  ainda não veio. Só resta o presente.Mas o presente não pode ser apreendido, aprisionado e apropriado. No que tentamos prendê-lo ele já virou passado.

Mas ele pode ser vivido. Quando é intenso nem percebemos que passou. Parece que o tempo não existiu. É o tempo denso e intenso de dois ardentemente apaixonados. É o tempo chamado kairós, diferente do  kronos, sempre igual como o tempo do relógio.

É possível fazer uma representação do presente? Sim, é com a eternidade, porque somente ela é um é. Cada presente tem algo do eterno, porque só ele é. Um dia foi e um dia será. Mas somente ele é  um é. Por isso o “é” do tempo representa a presença possível da eternidade. A nós cabe vivê-lo na maior intensidade possível, pois logo se esvai para o passado.

De todos os modos constatamos que estamos imersos na eternidade do é. Não se trata de uma quantidade congelada do tempo. É uma qualidade nova, que nunca para, sempre vem e passa: provem do futuro e logo passa por nós em direção do  passado. É a pura presença inagarrável do é.

Para nós que estamos no tempo, cabe viver esse “é” como se fosse o primeiro e o último. Desta forma nós participamos, fugazmente da eternidade do é. E nos eternizando, participamos  Daquele que sempre é  sem passado nem futuro.

Esse é  vem sob mil nomes: Tao, Shiva, Alá, Olorum, Javé. Este, Javé, se revelou como “sou Aquele que sou”, melhor dito: “Sou o é que sempre é”.

Quem sabe se um dos sentidos, entre outros, de nosso existir no tempo não  seja participar desse é? E no dizer do místico São João da Cruz, por um momento, “ser Deus, por participação”. E aqui vale o nobre silêncio porque já não cabem mais palavras.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

ANO NOVO NOVA VIDA,

 





Neste ano que se inicia, deixarei meu corpo flutuar em alturas abissais. Acariciarei uma por uma de minhas rugas, desvelarei histórias, apreenderei, na ponta dos dedos, meu perfil interior.

Não recorrerei ao bisturi das falsas impressões. Nem ao espectro da magreza anoréxica. O tempo prosseguirá massageando meus músculos até torná-los flácidos como as delicadezas do espírito.

Suspenderei todas as flexões, exceto as que aprendo na academia dos místicos. Beberei do próprio poço e abrirei o coração para o anjo da faxina atirar pela janela da compaixão iras, invejas e amarguras.

Pisarei sem sapatos o calor da terra viva. Bailarino ambiental, dançarei abraçado a Gaia ao som ardente de canções primevas. Dela receberei o pão, a ela darei a paz.

Acesas as estrelas, contemplarei na penumbra do mistério esse corpo glorioso que nos funde, eu e Gaia, num único sacramento divino. Seu trigo brotará como alimento para todas as bocas, suas uvas farão correr rios inebriantes de saciedade.

Na mesa cósmica, ofertarei as primícias de meus sonhos. De mãos vazias, acolherei o corpo do Senhor no cálice de minhas carências. Dobrarei os joelhos ao mistério da vida e contemplarei o rosto divino na face daqueles que nunca souberam que cosmo e cosmético são gregas palavras, e deitam raízes na mesma beleza.

Proclamarei o silêncio como ato de profunda subversão. Desconectado do mundo, banirei da alma todos os ruídos que me inquietam e, vazio de mim mesmo, serei plenificado por Aquele que me envolve por dentro e por fora, por cima e por baixo.

Suspenderei da mente a profusão de imagens e represarei no olvido o turbilhão de ideias. Privarei de sentido as palavras. Absorvido pelo silêncio, apurarei os ouvidos para escutar a brisa de Elias e os olhos para admirar o que extasiou Simeão.

Não mais farei de meu corpo mero adereço estranho ao espírito. Serei uma só unidade, onda e partícula, verso e reverso, anima e animus.

Recolherei pelas esquinas todos os corpos indesejados para lavá-los no sangue de Cristo, antes que se soltem de seus casulos para alçar o voo das borboletas.

Curarei da cegueira os que se miram no olhar alheio e besuntarei de cremes bíblicos o rosto de todos que se julgam feios, até que neles transpareça o esplendor da semelhança divina.

Arrancarei do chão de ferro os pés congelados da dessolidariedade e farei vir vento forte aos que temem o peso das próprias asas. Ao alçarem o topo do mundo, verão que todos somos um só corpo e um só espírito.

Farei do meu corpo hóstia viva; do sangue, vinho de alegria. Ébrio de efusões e graças, enlaçarei num amplexo cósmico todos os corpos e, no salão dourado da Via Láctea, valsaremos até que a música sideral tenha esgotado a sinfonia escatológica.

Na concretude da fé, anunciarei aos quatro ventos a certeza de ressurreição então, o que é terno tornar-se-á, nos limites da vida, eterno quando a morte nos transvivenciar.

 

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

NATAL

 


Neste Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias pantagruélicas, dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o Menino nascido esperança em um pasto de Belém, e Maria a cantar que os abastados serão despedidos de mãos vazias e os pobres, saciados de bens.

Não quero o Papai Noel do celofane brilhante das cestas de produtos importados e das garrafas nas quais os néscios afogam tristezas rotuladas de alegrias. Quero o Menino palestino em busca de uma terra onde nascer e viver, o Menino judeu arauto da paz aos homens e mulheres de boa vontade, o Menino poupado da estupidez das guerras.

Neste Natal, dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a oração só louvor, a fé comungada com sabor de justiça. Não quero presentes dos ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a romaria pagã aos templos consumistas. Quero o pão na boca da criança faminta, o acolhimento aos refugiados, a paz aos espíritos atribulados, o gozo de contemplar o Invisível.

Neste Natal, não quero troca de produtos entre mãos que não se abrem em solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais íntimo de mim mesmo, a semear ternura em todos os canteiros em que as pedras sufocam as flores. Quero o silêncio indevassável do mistério, o canto harmônico da natureza, a mão que se estende para que o outro se erga, a fraternura de amigos abençoados pela cumplicidade perene.

Neste Natal, não me interessam as oscilações dos índices financeiros, as promessas viciadas dos políticos, os cartões impressos a granel, cheios de colorido e vazios de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o cheiro do café coado pela avó, o som do sino da matriz, o rádio Philco exalando sabonete Eucalol, enquanto a babá me via brincar no quintal.

Não quero as amarguras familiares que se guardam como poeira nas dobras da alma, as invejas que me alienam de mim mesmo, as ambições que me tornam tristes como as galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos dobrados no átrio da igreja, a cabeça curvada ao Transcendente, a perplexidade de José diante da gravidez inusitada de Maria.

Neste Natal, não irei às ruas febris dos mercadores de bens finitos, não disfarçarei em algodão a neve que se amontoa em meus dessentimentos, nem prenderei falsas sinetas no frontispício de minha indiferença. Quero o segredar dos anjos, a alegria desdentada de um pobre reconhecido em seu direito, a euforia imaculada de um bebê acolhido em braços amados. Não viajarei para longe de mim mesmo. Mergulharei no mais profundo de mim, lá onde as palavras se calam e a voz de Deus se faz ouvir como apelo e desafio.

Neste Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e nozes, panetones e carnes gordas. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a entornar vinho em cálices alados, e convidarei à festa os famintos de bem-aventuranças. Não rezarei pela bíblia dos que professam o medo, nem acenderei velas aos guardiões do Inferno. Não serei o alpinista de cobiças desmedidas, nem o coveiro de utopias libertárias. Desfraldarei sobre o telhado a bandeira de sonhos inconfessos e semearei estrelas no jardim de meus encantos, lá onde cultivo essa doce paixão que me faz sofrer de saudades do que é terno.

Neste Natal, não aceitarei os brindes de mãos que não se tocam, nem irei às ceias dos que se devoram. Não comerei do bolo que empanturra corações e mentes, nem deixarei que a aurora do Menino me surpreenda empanzinado de sono.

Sairei na noite feliz guiado pela estrela dos magos, dançarei aleluias entre as sendas da Via Láctea e, pela manhã, injetarei poesia em cada raio de sol para que todos acordem inebriados como se fossem borboletas livres do casulo

 

 

 


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

UTOPIA.

 


Quero apresentar a utopia radical de Robert Müller, por 40 anos alto funcionário da ONU e primeiro reitor Universidade da Paz fundada pela ONU em Costa Rica. Ela nos remete à utopia bíblica do “novo céu e da nova Terra”. Projetou um Novo Gênesis (cf. O nascimento de uma civilização global, Aquarius, São Paulo 1993 p,170-171):

“E Deus viu que todas as nações da Terra, negras e brancas, pobres e ricas, do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, de todos os credos, enviavam seus emissários a um grande edifício de cristal às margens do rio do Sol Nascente, na ilha de Manhattan, para juntos estudarem, juntos pensarem e juntos cuidarem do mundo e de todos os seus povos. E Deus disse:" Isso é bom". E esse foi o primeiro dia da Nova Era da Terra.

       E Deus viu que os soldados da paz separavam os combatentes de nações em guerra, que as diferenças eram resolvidas pela negociação e pela razão e não pelas armas, e que os líderes das nações encontravam-se, trocavam ideias e uniam seus corações, suas mentes, suas almas e suas forças para o benefício de toda a humanidade.  E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o segundo dia do Planeta da Paz.

E Deus viu que os seres humanos amavam a totalidade da Criação, as estrelas e o sol, o dia e a noite, o ar e os oceanos, a terra e as águas, os peixes e as aves, as flores e as plantas e todos os seus irmãos e irmãs humanos. E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o terceiro dia do Planeta da Felicidade.

E Deus viu que os seres humanos eliminavam a fome, a doença, a ignorância e o sofrimento em todo o globo, proporcionando a cada pessoa humana uma vida decente, consciente e feliz, reduzindo a avidez, a força e a riqueza de uns poucos. E Deus disse:" Isto é bom." E esse foi o quarto dia do Planeta da Justiça.

E Deus viu que os seres humanos viviam em harmonia com seu planeta e em paz com os outros, gerenciando seus recursos com sabedoria, evitando o desperdício, refreando os excessos, substituindo o ódio pelo amor, a avidez pelo contentamento, a arrogância pela humildade, a divisão pela cooperação e a suspeita pela compreensão. E Deus disse:" Isso é bom."E esse foi o quinto dia do Planeta de Ouro.

E Deus viu que as nações destruíam  suas armas, suas bombas, seus mísseis, seus navios e aviões de guerra, desativando suas bases e desmobilizando seus exércitos, mantendo apenas policiais da paz para proteger os bons dos maus e os normais dos insanos.  E Deus disse:" Isso é bom". E esse foi o sexto dia do Planeta da Razão.

E Deus viu que os seres humanos restauravam Deus e a pessoa humana como o Alfa e o Ômega, reduzindo instituições, crenças, políticas, governos e todas as entidades humanas a simples servidores de Deus e dos povos. E Deus os viu adotar como lei suprema:" Amarás ao Deus do Universo com todo o teu coração, com toda  tua alma, com toda atua mente e com todas as tuas forças. Amarás teu belo e miraculoso planeta e o tratarás com infinito cuidado. Amarás teus irmãos e irmãs humanos como amas a ti mesmo. Não há mandamentos maiores que estes. E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o sétimo dia do Planeta de Deus".

       Não estou seguro de que este sonho de Robert Muller seja, por ora, viável com o tipo de seres humanos que nos tornamos. Mas reinventando o ser humano – esse é o nosso desafio caso queiramos sobreviver – este sonho poderá tornar-se realidade. Pois, nunca nos cansamos de sonhar de que um dia poderemos vivenciar essa promissora utopia viável: A minha pátria é a Terra.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

ATÉ QUANDO?

 



Por que chegamos à atual situação ameaçadora que pode pôr em risco o futuro da vida humana e da natureza?

Há várias interpretações da situação funesta da atualidade. Não tenho a pretensão de ter uma resposta suficiente. Mas levanto uma hipótese, fruto de toda uma vida de estudo e de reflexão. Estimo que a nossa situação remonta lá atrás, há dois milhões de anos,quando surgiu o homo habilis, o ser humano que inventou instrumentos de intervenção nos ciclos da natureza. Até aí sua relação era de interação, sintonizando-se com os ritmos naturais e tomando o que sua mão alcançava. Agora, com o homo habilis ou faber começa a intervenção na natureza: a caça de animais e a derrubada de matas para um cultivo rudimentar.Depois de milhares de anos, levou avante a intervenção até chegar há 10-12 mil anos, no neolítico, com a agressão da natureza. Interferiu-se no curso dos rios, inaugurando a agricultura de irrigação e o manejo de inteiras regiões que implicava  mudanças nas relações com a natureza e já depredando-a.  Por fim, a partir da era do industrialismo e do modo moderno e contemporâneo de produção pela técnica, pela automação, pela robótica e pela inteligência artificial levou a um processo de destruição da natureza. Projetamos uma nova era geológica, a do antropoceno e seus derivados, o necroceno e o piroceno. Aí comparece o ser humano como o Satã da Terra.Transformou o jardim do Éden num matadouro,como denunciou o biólogo E.Wilson.Não se comportou como o anjo cuidador de todo o criado.

Esse processo histórico-social ganhou sua justificação teórica pelos pais fundadores da modernidade com Galileo Galilei, Descartes, Newton, Francis Bacon e outros. Para eles, o ser humano é “mestre e dono” da natureza. Não se sentia parte dela, mas estava fora e acima dela. A Terra até então tida como Magna Mater que tudo nos dá, passou a ser considerada como uma coisa inerte (res extensa), sem propósito, no máximo, um baú de recursos entregues ao uso e ao bel prazer do ser humano. O eixo orientador deste modo de ver o mundo  é a vontade de poder, como dominação do outro, dos povos, de suas terras (colonização), da classe operária, da natureza, da vida até o mínimo gene, da matéria até o pequeníssimo topquark. A serviço da dominação foi criada a ciência, não apenas como justo conhecimento teórico de como as coisas se estruturam mas como instrumento de dominação e de novos inventos.Ela foi logo apropriada pela vontade de poder,convertendo-a numa operação técnica para a transformação do mundo circundante. Com ela se moveu uma verdadeira guerra contra a Terra, sem chance de vencê-la, arrancando tudo dela em função do sonho de um crescimento ilimitado de bens materiais. Atacou-se a Terra em todos os níveis, tendo como consequência a devastação de praticamente os principais biomas, sem medir os efeitos colaterais. É o império da razão instrumental-analítica e tecnocrática. Não podemos deixar de apreciar os imensos benefícios que trouxe para a vida humana. Mas ao mesmo tempo criou o princípio de autodestruição com armas letais que podem liquidar toda a vida. A razão ficou irracional e enlouquecida.

Hoje chegamos ao ponto-limite de a Terra  se mostrar gravemente enferma. Como é um Super-Organismo vivo, Gaia, reage mando-nos eventos extremos: secas severas e nevascas rigorosas, uma vasta gama de vírus e bactérias, algumas letais, além de tufões, tornados, enchentes e terremotos.  Não estamos indo ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele. A ciência chegou atrasada, apenas pode alertar para a chegada de desastres e minorar seus efeitos danosos. Efetivamente, esta mudança climática ameaça perigosamente a vida de crianças e de idosos e põe sob grave risco o futuro do sistema-vida.

Acresce um dado nada desprezível. O despotismo da razão – o racionalismo – recalcou o que há demais humano em nós: nossa capacidade de sentir, de amar, de cuidar, de viver a dimensão dos valores como a amizade, a empatia, a compaixão, em fim, o mundo das excelências. Tudo isso era visto como empecilho para o olhar objetivo das ciências. Separou-se mente e coração, a razão intelectual e a razão sensível. Tal ruptura ocasionou profunda distorção dos comportamentos, ocasionando insensibilidade face ao drama dos milhões e milhões de pobres e miseráveis e a falta de cuidado para com a natureza e suas “bondades” como dizem os povos andinos.

Se quiséssemos resumir numa pequena fórmula a crise civilizacional diria: ela perdeu a justa medida, valor, presente em todas as tradições éticas da humanidade. Tudo é des-medido, o assalto à natureza, o uso da violência nas relações pessoais e sociais, as guerras sem qualquer medida de contenção, o predomínio des-medido da competição ao preço da cooperação, o consumo des-medido ao lado da fome canina de milhões, sem qualquer senso de solidariedade e de humanidade.

A seguir este projeto de civilização,calcado sobre o poder-dominação e somente sobre a razão instrumental e sem coração hoje mundializado, iremos fatalmente ao encontro de uma tragédia ecológico-social  a ponto de fazer o planeta Terra inabitável para nós e para os organismos vivos. Seria o nosso fim depois de milhões de anos sobre esse belo e ridente planeta. Não soubemos cuidá-lo para ser a Casa Comum de todos os humanos, a natureza incluída.

Mas como o processo da gênese do cosmos e da Terra não é linear, mas dá saltos para cima e para frente, pode ocorrer o inesperado. Face a um grande impacto ou catástrofe, pode torna viável uma transformação fundamental. Levaria a mudar a consciência coletiva da humanidade. Como disse o poeta alemão Hölderin (+1843):”Ai onde mora o perigo,cresce também o que o salva”. Esse salvamento significaria a mudança necessária de paradigma civilizatório e assim garantindo  o nosso futuro. Isso poderia representar a utopia possível e viável para a atual situação. Oxalá!