sábado, 2 de março de 2024

PORQUE EXISTEM POBRES E OPRIMIDOS.


 
A mim sempre me impressionou uma pequena história relatada no livro do Eclesiastes do  Primeiro Testamento (ou o Antigo). O Eclesiastes se assume como sendo o sábio rei  Salomão. Seria o que chamaríamos hoje um acadêmico ou um professor universitário (em hebraico Qohelet), É conhecido pela expressão “vaidade, pura vaidade; tudo é vaidade”(1,2). Algumas traduções modernas traduzem: “ilusão, pura ilusão; tudo é ilusão”.

Todo livro é uma busca incansável pela felicidade mas se confronta com a morte inevitável que torna todas as buscas ilusões, puras ilusões. Nem por isso deixa de ser temente a Deus e ético ao se indignar face às opressões: ”quantas são as lágrimas dos oprimidos sem ninguém que os console quando estão sob o poder dos opressores…feliz é aquele que não chegou a nascer porque não viu a maldade que se comete debaixo do sol”(4,1.3).

 Um pouco da pequena história que reza assim:

Havia uma cidade de poucos habitantes.Um rei poderoso marchou sobre ela, cercou-a e levantou contra ela grandes rampas de ataque. Havia na cidade um homem pobre, porém sábio, que poderia ter salvo a cidade com sua sabedoria. Mas ninguém se lembrou daquele homem pobre. A sabedoria do pobre é desprezada e suas palavras nunca são ouvidas”(9,14-16).

Essa constatação me reporta à teologia latino-americana da libertação. É uma teologia cujo eixo articulador é a opção não excludente pelos pobres e por sua  libertação”. Ela confere centralidade aos pobres como está no evangelho do  Jesus histórico: "felizes os pobres porque de vós é o Reino de Deus”(Lucas 6,20). Mas há algo de inédito na Teologia da Libertação que supera o assistencialismo e o paternalismo tradicionais que faziam caridade para com os pobres  mas os deixavam em sua situação de pobres.

A Teologia da Libertação acrescentou algo singular: reconhecer a força história dos pobres. Eles começaram a se conscientizar de que sua pobreza não é querida por Deus ,nem é natural, mas consequência de forças sociais e políticas que os exploram para se enriquecerem à custa deles, fazendo-os assim pobres. Então não são simplesmente pobres, são oprimidos. Contra toda opressão vale a libertação. Conscientizados deste fato e organizados, constituem-se forças sociais, capazes, junto com outras forças, de mudarem a sociedade para que seja melhor, não tão injusta, opressora e desigual.

Os cristãos se inspiraram na tradição do Êxodo (“ouvi o clamor de meu povo oprimido, desci para libertá-lo:” naquela dos profetas que contra os opressores dos pobres e das viúvas  denunciavam as elites dominantes e os reis (Isaías, Amós, Oséias, Jeremias), fazendo Deus dizer: “quero misericórdia e não sacrifícios; procurai o direito, corrigi o opressor, julgai a causa do órfão e defendei a viúva”(Isaías, 1,17). Mas principalmente na prática do Jesus histórico que claramente estava sempre do lado da vida sofrida, especialmente dos pobres, dos doentes ,dos marginalizados, das mulheres, curando e exercendo uma prática verdadeiramente libertadora dos padecimentos humanos. Anunciava-lhes o projeto de Deus, uma revolução absoluta: um Reino de amor, de paz, de perdão, de compaixão e também de domínio sobre a natureza rebelada.

A Teologia da Libertação deu um voto de confiança nos pobres, considerando-os  protagonistas de sua própria libertação e atores na sociedade como a nossa que cria mais e mais pobres e vergonhosamente os despreza e relega à marginalidade. Ela se funda sobre exploração das pessoas, sobre competição e não sobre a solidariedade e sobre depredação irresponsável da natureza e não sobre o cuidado.

Para mim era a confirmação da verdade da história do Eclesiastes: temos que ouvir os pobres que antes de ler as letras, leem mundo com acerto. Sem a sabedoria deles e dos povos originários não salvaremos nossas sociedades e também não evitaremos as catástrofes de nossa civilização.

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