terça-feira, 31 de dezembro de 2024

ANO NOVO NOVA VIDA,

 





Neste ano que se inicia, deixarei meu corpo flutuar em alturas abissais. Acariciarei uma por uma de minhas rugas, desvelarei histórias, apreenderei, na ponta dos dedos, meu perfil interior.

Não recorrerei ao bisturi das falsas impressões. Nem ao espectro da magreza anoréxica. O tempo prosseguirá massageando meus músculos até torná-los flácidos como as delicadezas do espírito.

Suspenderei todas as flexões, exceto as que aprendo na academia dos místicos. Beberei do próprio poço e abrirei o coração para o anjo da faxina atirar pela janela da compaixão iras, invejas e amarguras.

Pisarei sem sapatos o calor da terra viva. Bailarino ambiental, dançarei abraçado a Gaia ao som ardente de canções primevas. Dela receberei o pão, a ela darei a paz.

Acesas as estrelas, contemplarei na penumbra do mistério esse corpo glorioso que nos funde, eu e Gaia, num único sacramento divino. Seu trigo brotará como alimento para todas as bocas, suas uvas farão correr rios inebriantes de saciedade.

Na mesa cósmica, ofertarei as primícias de meus sonhos. De mãos vazias, acolherei o corpo do Senhor no cálice de minhas carências. Dobrarei os joelhos ao mistério da vida e contemplarei o rosto divino na face daqueles que nunca souberam que cosmo e cosmético são gregas palavras, e deitam raízes na mesma beleza.

Proclamarei o silêncio como ato de profunda subversão. Desconectado do mundo, banirei da alma todos os ruídos que me inquietam e, vazio de mim mesmo, serei plenificado por Aquele que me envolve por dentro e por fora, por cima e por baixo.

Suspenderei da mente a profusão de imagens e represarei no olvido o turbilhão de ideias. Privarei de sentido as palavras. Absorvido pelo silêncio, apurarei os ouvidos para escutar a brisa de Elias e os olhos para admirar o que extasiou Simeão.

Não mais farei de meu corpo mero adereço estranho ao espírito. Serei uma só unidade, onda e partícula, verso e reverso, anima e animus.

Recolherei pelas esquinas todos os corpos indesejados para lavá-los no sangue de Cristo, antes que se soltem de seus casulos para alçar o voo das borboletas.

Curarei da cegueira os que se miram no olhar alheio e besuntarei de cremes bíblicos o rosto de todos que se julgam feios, até que neles transpareça o esplendor da semelhança divina.

Arrancarei do chão de ferro os pés congelados da dessolidariedade e farei vir vento forte aos que temem o peso das próprias asas. Ao alçarem o topo do mundo, verão que todos somos um só corpo e um só espírito.

Farei do meu corpo hóstia viva; do sangue, vinho de alegria. Ébrio de efusões e graças, enlaçarei num amplexo cósmico todos os corpos e, no salão dourado da Via Láctea, valsaremos até que a música sideral tenha esgotado a sinfonia escatológica.

Na concretude da fé, anunciarei aos quatro ventos a certeza de ressurreição então, o que é terno tornar-se-á, nos limites da vida, eterno quando a morte nos transvivenciar.

 

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

NATAL

 


Neste Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias pantagruélicas, dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o Menino nascido esperança em um pasto de Belém, e Maria a cantar que os abastados serão despedidos de mãos vazias e os pobres, saciados de bens.

Não quero o Papai Noel do celofane brilhante das cestas de produtos importados e das garrafas nas quais os néscios afogam tristezas rotuladas de alegrias. Quero o Menino palestino em busca de uma terra onde nascer e viver, o Menino judeu arauto da paz aos homens e mulheres de boa vontade, o Menino poupado da estupidez das guerras.

Neste Natal, dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a oração só louvor, a fé comungada com sabor de justiça. Não quero presentes dos ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a romaria pagã aos templos consumistas. Quero o pão na boca da criança faminta, o acolhimento aos refugiados, a paz aos espíritos atribulados, o gozo de contemplar o Invisível.

Neste Natal, não quero troca de produtos entre mãos que não se abrem em solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais íntimo de mim mesmo, a semear ternura em todos os canteiros em que as pedras sufocam as flores. Quero o silêncio indevassável do mistério, o canto harmônico da natureza, a mão que se estende para que o outro se erga, a fraternura de amigos abençoados pela cumplicidade perene.

Neste Natal, não me interessam as oscilações dos índices financeiros, as promessas viciadas dos políticos, os cartões impressos a granel, cheios de colorido e vazios de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o cheiro do café coado pela avó, o som do sino da matriz, o rádio Philco exalando sabonete Eucalol, enquanto a babá me via brincar no quintal.

Não quero as amarguras familiares que se guardam como poeira nas dobras da alma, as invejas que me alienam de mim mesmo, as ambições que me tornam tristes como as galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos dobrados no átrio da igreja, a cabeça curvada ao Transcendente, a perplexidade de José diante da gravidez inusitada de Maria.

Neste Natal, não irei às ruas febris dos mercadores de bens finitos, não disfarçarei em algodão a neve que se amontoa em meus dessentimentos, nem prenderei falsas sinetas no frontispício de minha indiferença. Quero o segredar dos anjos, a alegria desdentada de um pobre reconhecido em seu direito, a euforia imaculada de um bebê acolhido em braços amados. Não viajarei para longe de mim mesmo. Mergulharei no mais profundo de mim, lá onde as palavras se calam e a voz de Deus se faz ouvir como apelo e desafio.

Neste Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e nozes, panetones e carnes gordas. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a entornar vinho em cálices alados, e convidarei à festa os famintos de bem-aventuranças. Não rezarei pela bíblia dos que professam o medo, nem acenderei velas aos guardiões do Inferno. Não serei o alpinista de cobiças desmedidas, nem o coveiro de utopias libertárias. Desfraldarei sobre o telhado a bandeira de sonhos inconfessos e semearei estrelas no jardim de meus encantos, lá onde cultivo essa doce paixão que me faz sofrer de saudades do que é terno.

Neste Natal, não aceitarei os brindes de mãos que não se tocam, nem irei às ceias dos que se devoram. Não comerei do bolo que empanturra corações e mentes, nem deixarei que a aurora do Menino me surpreenda empanzinado de sono.

Sairei na noite feliz guiado pela estrela dos magos, dançarei aleluias entre as sendas da Via Láctea e, pela manhã, injetarei poesia em cada raio de sol para que todos acordem inebriados como se fossem borboletas livres do casulo

 

 

 


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

UTOPIA.

 


Quero apresentar a utopia radical de Robert Müller, por 40 anos alto funcionário da ONU e primeiro reitor Universidade da Paz fundada pela ONU em Costa Rica. Ela nos remete à utopia bíblica do “novo céu e da nova Terra”. Projetou um Novo Gênesis (cf. O nascimento de uma civilização global, Aquarius, São Paulo 1993 p,170-171):

“E Deus viu que todas as nações da Terra, negras e brancas, pobres e ricas, do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, de todos os credos, enviavam seus emissários a um grande edifício de cristal às margens do rio do Sol Nascente, na ilha de Manhattan, para juntos estudarem, juntos pensarem e juntos cuidarem do mundo e de todos os seus povos. E Deus disse:" Isso é bom". E esse foi o primeiro dia da Nova Era da Terra.

       E Deus viu que os soldados da paz separavam os combatentes de nações em guerra, que as diferenças eram resolvidas pela negociação e pela razão e não pelas armas, e que os líderes das nações encontravam-se, trocavam ideias e uniam seus corações, suas mentes, suas almas e suas forças para o benefício de toda a humanidade.  E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o segundo dia do Planeta da Paz.

E Deus viu que os seres humanos amavam a totalidade da Criação, as estrelas e o sol, o dia e a noite, o ar e os oceanos, a terra e as águas, os peixes e as aves, as flores e as plantas e todos os seus irmãos e irmãs humanos. E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o terceiro dia do Planeta da Felicidade.

E Deus viu que os seres humanos eliminavam a fome, a doença, a ignorância e o sofrimento em todo o globo, proporcionando a cada pessoa humana uma vida decente, consciente e feliz, reduzindo a avidez, a força e a riqueza de uns poucos. E Deus disse:" Isto é bom." E esse foi o quarto dia do Planeta da Justiça.

E Deus viu que os seres humanos viviam em harmonia com seu planeta e em paz com os outros, gerenciando seus recursos com sabedoria, evitando o desperdício, refreando os excessos, substituindo o ódio pelo amor, a avidez pelo contentamento, a arrogância pela humildade, a divisão pela cooperação e a suspeita pela compreensão. E Deus disse:" Isso é bom."E esse foi o quinto dia do Planeta de Ouro.

E Deus viu que as nações destruíam  suas armas, suas bombas, seus mísseis, seus navios e aviões de guerra, desativando suas bases e desmobilizando seus exércitos, mantendo apenas policiais da paz para proteger os bons dos maus e os normais dos insanos.  E Deus disse:" Isso é bom". E esse foi o sexto dia do Planeta da Razão.

E Deus viu que os seres humanos restauravam Deus e a pessoa humana como o Alfa e o Ômega, reduzindo instituições, crenças, políticas, governos e todas as entidades humanas a simples servidores de Deus e dos povos. E Deus os viu adotar como lei suprema:" Amarás ao Deus do Universo com todo o teu coração, com toda  tua alma, com toda atua mente e com todas as tuas forças. Amarás teu belo e miraculoso planeta e o tratarás com infinito cuidado. Amarás teus irmãos e irmãs humanos como amas a ti mesmo. Não há mandamentos maiores que estes. E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o sétimo dia do Planeta de Deus".

       Não estou seguro de que este sonho de Robert Muller seja, por ora, viável com o tipo de seres humanos que nos tornamos. Mas reinventando o ser humano – esse é o nosso desafio caso queiramos sobreviver – este sonho poderá tornar-se realidade. Pois, nunca nos cansamos de sonhar de que um dia poderemos vivenciar essa promissora utopia viável: A minha pátria é a Terra.