quinta-feira, 21 de novembro de 2024

ATÉ QUANDO?

 



Por que chegamos à atual situação ameaçadora que pode pôr em risco o futuro da vida humana e da natureza?

Há várias interpretações da situação funesta da atualidade. Não tenho a pretensão de ter uma resposta suficiente. Mas levanto uma hipótese, fruto de toda uma vida de estudo e de reflexão. Estimo que a nossa situação remonta lá atrás, há dois milhões de anos,quando surgiu o homo habilis, o ser humano que inventou instrumentos de intervenção nos ciclos da natureza. Até aí sua relação era de interação, sintonizando-se com os ritmos naturais e tomando o que sua mão alcançava. Agora, com o homo habilis ou faber começa a intervenção na natureza: a caça de animais e a derrubada de matas para um cultivo rudimentar.Depois de milhares de anos, levou avante a intervenção até chegar há 10-12 mil anos, no neolítico, com a agressão da natureza. Interferiu-se no curso dos rios, inaugurando a agricultura de irrigação e o manejo de inteiras regiões que implicava  mudanças nas relações com a natureza e já depredando-a.  Por fim, a partir da era do industrialismo e do modo moderno e contemporâneo de produção pela técnica, pela automação, pela robótica e pela inteligência artificial levou a um processo de destruição da natureza. Projetamos uma nova era geológica, a do antropoceno e seus derivados, o necroceno e o piroceno. Aí comparece o ser humano como o Satã da Terra.Transformou o jardim do Éden num matadouro,como denunciou o biólogo E.Wilson.Não se comportou como o anjo cuidador de todo o criado.

Esse processo histórico-social ganhou sua justificação teórica pelos pais fundadores da modernidade com Galileo Galilei, Descartes, Newton, Francis Bacon e outros. Para eles, o ser humano é “mestre e dono” da natureza. Não se sentia parte dela, mas estava fora e acima dela. A Terra até então tida como Magna Mater que tudo nos dá, passou a ser considerada como uma coisa inerte (res extensa), sem propósito, no máximo, um baú de recursos entregues ao uso e ao bel prazer do ser humano. O eixo orientador deste modo de ver o mundo  é a vontade de poder, como dominação do outro, dos povos, de suas terras (colonização), da classe operária, da natureza, da vida até o mínimo gene, da matéria até o pequeníssimo topquark. A serviço da dominação foi criada a ciência, não apenas como justo conhecimento teórico de como as coisas se estruturam mas como instrumento de dominação e de novos inventos.Ela foi logo apropriada pela vontade de poder,convertendo-a numa operação técnica para a transformação do mundo circundante. Com ela se moveu uma verdadeira guerra contra a Terra, sem chance de vencê-la, arrancando tudo dela em função do sonho de um crescimento ilimitado de bens materiais. Atacou-se a Terra em todos os níveis, tendo como consequência a devastação de praticamente os principais biomas, sem medir os efeitos colaterais. É o império da razão instrumental-analítica e tecnocrática. Não podemos deixar de apreciar os imensos benefícios que trouxe para a vida humana. Mas ao mesmo tempo criou o princípio de autodestruição com armas letais que podem liquidar toda a vida. A razão ficou irracional e enlouquecida.

Hoje chegamos ao ponto-limite de a Terra  se mostrar gravemente enferma. Como é um Super-Organismo vivo, Gaia, reage mando-nos eventos extremos: secas severas e nevascas rigorosas, uma vasta gama de vírus e bactérias, algumas letais, além de tufões, tornados, enchentes e terremotos.  Não estamos indo ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele. A ciência chegou atrasada, apenas pode alertar para a chegada de desastres e minorar seus efeitos danosos. Efetivamente, esta mudança climática ameaça perigosamente a vida de crianças e de idosos e põe sob grave risco o futuro do sistema-vida.

Acresce um dado nada desprezível. O despotismo da razão – o racionalismo – recalcou o que há demais humano em nós: nossa capacidade de sentir, de amar, de cuidar, de viver a dimensão dos valores como a amizade, a empatia, a compaixão, em fim, o mundo das excelências. Tudo isso era visto como empecilho para o olhar objetivo das ciências. Separou-se mente e coração, a razão intelectual e a razão sensível. Tal ruptura ocasionou profunda distorção dos comportamentos, ocasionando insensibilidade face ao drama dos milhões e milhões de pobres e miseráveis e a falta de cuidado para com a natureza e suas “bondades” como dizem os povos andinos.

Se quiséssemos resumir numa pequena fórmula a crise civilizacional diria: ela perdeu a justa medida, valor, presente em todas as tradições éticas da humanidade. Tudo é des-medido, o assalto à natureza, o uso da violência nas relações pessoais e sociais, as guerras sem qualquer medida de contenção, o predomínio des-medido da competição ao preço da cooperação, o consumo des-medido ao lado da fome canina de milhões, sem qualquer senso de solidariedade e de humanidade.

A seguir este projeto de civilização,calcado sobre o poder-dominação e somente sobre a razão instrumental e sem coração hoje mundializado, iremos fatalmente ao encontro de uma tragédia ecológico-social  a ponto de fazer o planeta Terra inabitável para nós e para os organismos vivos. Seria o nosso fim depois de milhões de anos sobre esse belo e ridente planeta. Não soubemos cuidá-lo para ser a Casa Comum de todos os humanos, a natureza incluída.

Mas como o processo da gênese do cosmos e da Terra não é linear, mas dá saltos para cima e para frente, pode ocorrer o inesperado. Face a um grande impacto ou catástrofe, pode torna viável uma transformação fundamental. Levaria a mudar a consciência coletiva da humanidade. Como disse o poeta alemão Hölderin (+1843):”Ai onde mora o perigo,cresce também o que o salva”. Esse salvamento significaria a mudança necessária de paradigma civilizatório e assim garantindo  o nosso futuro. Isso poderia representar a utopia possível e viável para a atual situação. Oxalá!

terça-feira, 5 de novembro de 2024

UTOPIAS

 


Hoje vivemos tempos distópicos, carentes de inspirações utópicas. As grandes utopias do passado não cumpriram suas promessas: do iluminismo, dar instrução a todo mundo; do capitalismo, todos podem se tornar ricos; do socialismo, igualdade entre todos; do comunismo,uma sociedade sem classes; da pós-modernidade, não há narrativas universais, cada um escolhe a sua. O fato é que nenhuma sociedade, isso os antropólogos e sociólogos nos garantem, vive sem ter uma utopia, quer dizer, uma ideia forte, um sonho inspirador que dê sentido à vida das pessoas,  à sociedade e à história.

Bem dizia o escritor irlandês Oscar Wilde:”Um mapa do mundo que não inclua a utopia não é digno de ser espiado, pois ignora o único território em que a humanidade sempre atraca, partindo em seguida, para uma terra ainda melhor”.

Mas o sonho utópico nunca morre, pois é da essência do ser humano, o princípio esprança (Ernst Bloch) de estar sempre a caminho. É completo mas imperfeito, pois busca sempre melhorar sua humanidade. Tem muito de verdade a utopia de Pierre Teilhard de Chardin ainda nos idos de 1930, a irrupção lá na frente, da noosfera na qual coração e mente da humanidade chegariam a uma feliz convergência. Também a utopia que circula nas bases:”a alma não tem fronteira, nenhuma vida é estrangeira”. Ou aquela que até a TV fez circular:”minha pátria é a Terra”, utopia verdadeira.Quero apresentar a utopia radical de Robert Müller, por 40 anos alto funcionário da ONU e primeiro reitor Universidade da Paz fundada pela ONU em Costa Rica.Ela nos remete à utopia bíblica do “novo céu e da nova Terra”. Projetou um Novo Gênesis (cf. O nascimento de uma civilização global, Aquarius, São Paulo 1993 p,170-171):

“E Deus viu que todas as nações da Terra, negras e brancas, pobres e ricas, do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, de todos os credos, enviavam seus emissários a um grande edifício de cristal às margens do rio do Sol Nascente, na ilha de Manhattan, para juntos estudarem, juntos pensarem e juntos cuidarem do mundo e de todos os seus povos.E Deus disse:" Isso é bom". E esse foi o primeiro dia da Nova Era da Terra.

       E Deus viu que os soldados da paz separavam os combatentes de nações em guerra, que as diferenças eram resolvidas pela negociação e pela razão e não pelas armas, e que os líderes das nações encontravam-se, trocavam ideias e uniam seus corações, suas mentes, suas almas e suas forças para o benefício de toda a humanidade.  E Deus disse:" Isso é bom."E esse foi o segundo dia do Planeta da Paz.

E Deus viu que os seres humanos amavam a totalidade da Criação, as estrelas e o sol, o dia e a noite, o ar e os oceanos, a terra e as águas, os peixes e as aves, as flores e as plantas e todos os seus irmãos e irmãs humanos.E Deus disse:"Isso é bom."E esse foi o terceiro dia do Planeta da Felicidade.

E Deus viu que os seres humanos eliminavam a fome, a doença, a ignorância e o sofrimento em todo o globo, proporcionando a cada pessoa humana uma vida decente, consciente e feliz, reduzindo a avidez, a força e a riqueza de uns poucos. E Deus disse:"Isto é bom."E esse foi o quarto dia do Planeta da Justiça.

E Deus viu que os seres humanos viviam em harmonia com seu planeta e em paz com os outros, gerenciando seus recursos com sabedoria, evitando o desperdício, refreando os excessos, substituindo o ódio pelo amor, a avidez pelo contentamento, a arrogância pela humildade, a divisão pela cooperação e a suspeita pela compreensão. E Deus disse:" Isso é bom."E esse foi o quinto dia do Planeta de Ouro.

E Deus viu que as nações destruíam  suas armas, suas bombas, seus mísseis, seus navios e aviões de guerra, desativando suas bases e desmobilizando seus exércitos, mantendo apenas policiais da paz para proteger os bons dos maus e os normais dos insanos.  E Deus disse:" Isso é bom". E esse foi o sexto dia do Planeta da Razão.

E Deus viu que os seres humanos restauravam Deus e a pessoa humana como o Alfa e o Ômega, reduzindo instituições, crenças, políticas, governos e todas as entidades humanas a simples servidores de Deus e dos povos. E Deus os viu adotar como lei suprema:"Amarás ao Deus do Universo com todo o teu coração, com toda  tua alma, com toda atua mente e com todas as tuas forças. Amarás teu belo e miraculoso planeta e o tratarás com infinito cuidado. Amarás teus irmãos e irmãs humanos como amas a ti mesmo. Não há mandamentos maiores que estes. E Deus disse:" Isso é bom." E esse foi o sétimo dia do Planeta de Deus".

       Não estou seguro de que este sonho de Robert Muller seja, por ora, viável com o tipo de seres humanos que nos tornamos. Mas reinventando o ser humano – esse é o nosso desafio caso queiramos sobreviver – este sonho poderá tornar-se realidade. Pois, nunca nos cansamos de sonhar de que um dia poderemos vivenciar essa promissora utopia viável: A minha pátria é a Terra.