terça-feira, 21 de maio de 2024

NÃO É CATÁSTROFE É CRIME.

 



Especialistas, acadêmicos e cientistas convergem no diagnóstico de que falhas da Prefeitura na manutenção do sistema de proteção contra enchentes causaram a inundação de Porto Alegre, que poderia ter sido evitada.

Não precisaríamos estar passando por isso. Decididamente não precisaríamos sofrer com tamanha devastação, perda e dor.

Não aconteceu uma catástrofe. Mas catastróficas foram as consequências do evento climático severo. Que poderiam não ter sido catastróficas – ou, pelo menos, não teriam sido de magnitude catastrófica –, se a Prefeitura não tivesse sido negligente, incompetente e irresponsável.

As falhas, todas evitáveis e preveníveis, ocorreram no contexto de um processo contínuo de sucateamento, abandono e desmonte das estruturas e da inteligência técnica das áreas de engenharia, planejamento, gestão hídrica, ambiental e urbanística da cidade.

Este debilitamento da capacidade pública do Município, que é metódica e intencional, integra o ideário do bloco de poder que desde 2005, há 20 anos, se reveza na Prefeitura com sucessivas gestões conservadoras que transformaram a capital gaúcha num laboratório de experimentos ultraliberais radicais.

As oligarquias locais eliminaram barreiras sócio-ambientais modernas e normas urbanas civilizadas para deixar livre o caminho da penetração agressiva sobretudo do capital financeiro e imobiliário no território da cidade, desfigurando a paisagem, degradando as condições ambientais e desprotegendo a população.

A Prefeitura não foi pega desprevenida neste evento climático severo. Desde pelo menos desde 2022, quando da ocorrência de ciclones extratropicais, se sabia que o Rio Grande do Sul é um epicentro mundial de fenômenos climáticos severos.

Depois, em setembro e novembro de 2023, quando o nível do Guaíba atingiu respectivamente 3,18m e 3,46m, houve inundação restrita em algumas áreas da cidade, e então as falhas de manutenção do sistema ficaram patentes.

Não se tratavam de problemas complexos. Menos ainda problemas insanáveis ou onerosos, mas de questões comezinhas, como a falta de borracha de vedação e de parafuso de pressão para fechar e vedar eficientemente as comportas.

Apesar desses sinais todos, o governo do prefeito Sebastião Melo negligenciou, não investiu um único centavo no sistema de proteção contra enchentes e não providenciou sequer o conserto das comportas, das tampas de esgoto e das bombas de água defeituosas.

A Prefeitura tem responsabilidades indiscutíveis pelo descalabro da cidade.

Se o sistema não tivesse falhado como falhou, por falta de manutenção, a única área da cidade que ficaria inundada seria o bairro Sarandi, na região norte, uma vez que o volume do Rio Gravataí fez o Guaíba ultrapassar a cota de 6 metros, que é o limite de nível que o sistema de proteção de enchentes protege.

No entanto, todas demais áreas, como o centro histórico, a Cidade Baixa, o Menino Deus, a zona sul, o 4º Distrito, o aeroporto e outras partes do território não teriam sido inundadas.

Além de responsável pelos efeitos catastróficos do evento climático, a Prefeitura também é responsável pelo atraso inaceitável do fim da inundação da cidade, que poderia terminar em dois ou três dias, se fossem empregadas as soluções técnicas recomendadas por especialistas ao prefeito e sua equipe inepta.

As recomendações são exequíveis e estão ao alcance imediato: mergulhadores para vedar as comportas e impermeabilizar as áreas de infiltração, fechamento hermético de tampas de dutos forçados e energização das casas de bombas que devolvem a água invasora para o Guaíba.

Mesmo com a existência dessa alternativa para acelerar o escoamento das águas, o governo municipal continua irredutível no erro, na incompetência e no negacionismo, sujeitando a cidade a ficar semanas alagada, quando poderia acabar a inundação imediatamente.

Na tarde desta 6ª feira, 17/5, a Prefeitura derrubou portões do Muro da Mauá para permitir que a água retida na parte interna da cidade, em cota superior à do Guaíba, pudesse escoar para o Lago.

Detalhe: a Prefeitura não abriu portões, mas derrubou portões do Muro. Significa a destruição de uma barreira física estrutural de contenção de enchentes. Ou seja, mais uma irresponsabilidade absurda da Prefeitura.

E se nos próximos dias o nível do Guaíba voltar a subir consideravelmente, possibilidade mostrada em modelos meteorológicos, isso significa que as águas encontrarão os portões abertos para inundarem a cidade indefesa?

Sebastião Melo faz parte do problema, ele é responsável por sujeitar a população a sofrer consequências catastróficas do evento climático severo. Não merecíamos passar por isso.

Porto Alegre não foi atingida por uma fatalidade inevitável, como sugere a mídia associada à exploração imobiliária inescrupulosa da cidade. Tampouco foi vítima de alguma maldade da natureza ou castigo divino.

A catástrofe poderia ter sido evitada; foi consequência das escolhas ruinosas do governo Melo.

O que aconteceu e continua acontecendo é um crime, e os culpados precisam ser afastados de funções públicas e responsabilizados nas esferas administrativa, cível e criminal. Arruinaram uma linda cidade.

Porto Alegre precisa urgentemente de uma governança competente e responsável para superar a situação de emergência climática, humana e existencial.

*jeferson Miola/Viomundo


terça-feira, 7 de maio de 2024

MONOCULTURA DAS MENTES

 


Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global mas não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de Viena/Chicago  se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já em 1944 chamou de “A grande transformação”: passar de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847 por Marx em “A miséria da filosofia”.

Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se a ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA(There is no Alternative): “Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos demais. Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o menos possível.

Um segundo ponto é a estratégia perversa de elaborada pelo sistema dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e confirmada por Freud é a de ser ilimitada.Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo:Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores viciados no consumo.

Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade. É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo de vida geral  da humanidade que daí emergiu.

A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa monocultura gera nos estudantes consciências ingênuas que esse é o mundo bom e desejável. Não se dão conta de que são cooptados pelo sistema imperante e feitos seus reprodutores.

Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a “Pedagogia do Oprimido”, “Educação como prática da Liberdade” e concluindo com a  educação com amor e esperança. Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as coisas por si mudem) mas criar as condições para que a esperança alcance seus objetivos transformadores.

Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece, não quer dizer mudar o que acontece. Temos que passar a uma prática alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade diferente, igualitária, não consumista mas solidária com um  modo de produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra, criando o Todo, a  humanidade e a natureza incluídas na grande Casa Comum, a Mãe Terra.