domingo, 25 de agosto de 2019

PARA UM MELHOR FIM DE SEMANA: A MOÇA NA JANELA.


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Eu passava, ou tentava passar, de carro, pela rua congestionada no acesso ao meu bairro, quando a vi, ali, distraída: uma moça na janela. Coisa rara de se ver na paisagem frenética da cidade; uma moça na janela.

Não que seja raro que elas estejam lá. Raro é que nós, os passantes, tenhamos tempo ou sensibilidade para olharmos as janelas e suas possíveis moças.

Mas ela estava lá, enquanto eu passava. Ou tentava.
O trânsito rugia, logo depois das seis da tarde. Motores e motoristas resfolegando, ameaçando os carros ao redor, engrenagens, olhares e dentes trincados, pés acionando nervosa e inutilmente o acelerador travado pela embreagem, a pressa estéril, a ansiedade frustrada.
Mas havia uma moça na janela.

Eu a vi num relance, nem perto, nem longe. Estava lá, um vulto, uma silhueta. Uma luz frágil às suas costas apenas delineava o perfil feminino adivinhado nos cabelos longos, caídos quase sobre os ombros, a mão esquecida, o olhar perdido, o cotovelo sobre o parapeito...

A moça sonhava na janela, e no seu devaneio me fazia esquecer, por um momento, a loucura à minha volta, a loucura em mim...
Drummond viu uma pedra no meio do caminho e a transformou em poesia. A moça na janela inundou tudo o que sou da mais profunda e silenciosa alegria. E, logo em seguida, de uma delicada e esquecida sensação de saudade...

Tive saudades das ruas da minha infância, onde havia tão poucos carros. Bateu em mim a nostalgia das janelas da minha adolescência, onde havia tão poucas moças, herança dessa família tão masculina. Saudades de outras moças da minha juventude, em outras janelas, vislumbres da paixão que, aos poucos, faria de mim um homem inundado de sentimentos.

Saudades da irmã, da filha que não veio. Saudades, enfim, do feminino em mim...
E assim, num átimo, em meio à saudade, cessou a pressa, calaram-se os motores, silenciaram as buzinas. Meus lábios, até então crispados, angustiados, permitiram-se um suave e terno sorriso de infância.
E em mim sorria o menino que fui, um dia. Um sorriso pascal, mais saboroso que o mais gostoso dos chocolates...

Nem tudo está perdido, pensei. Havia uma moça na janela. E sua presença, ali, anônima e intensa, era quase a garantia de que, mesmo na cidade grande, na loucura do trânsito das seis da tarde, ainda havia tempo e lugar para sonhar e viver poesia.

Mas então, simultaneamente, como se fosse um passo de dança exaustivamente ensaiado, a luz verde do sinal brilhou à minha frente e a moça, girando em câmara lenta, sumiu por trás da cortina que se fechava.

O choque de realidade percorreu meu corpo no compasso das buzinas e dos motores que de novo roncavam, ferozes, à minha volta. No retrovisor adivinhava os lábios crispados dos vizinhos de trânsito, as palavras, como rugidos, exigindo que eu engolisse logo os poucos metros possíveis cedidos pelo engarrafamento.

Mas na retina dos meus afetos, só havia a silhueta suave de uma moça na janela.

Só então me dei conta dos ombros relaxados, das mãos que tocavam suavemente o volante, os pés sem pressa, esquecidos entre o freio e o acelerador, o rosto descontraído, os lábios em teimoso e resistente sorriso.

Segui em frente e eu era outro. Ou, talvez, o verdadeiro eu mesmo. Aquele menino do tempo das saudades que ainda era capaz de contemplar e se reconhecer no vulto anônimo de uma moça na janela.
Tive mais sorte que Drummond, apesar de menos talento. Ele poderia tropeçar de novo, naquela pedra e nem sequer reconhecê-la. Eu posso, nessa crônica, dizer àquela moça que ela me humanizou um pouco mais, que sua presença ali, anônima e gratuita, foi um sopro de vida pascal na loucura de um dia que podia terminar tão somente cinzento, apressado, agônico e triste.

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