terça-feira, 27 de agosto de 2019

O SEXTO SENTIDO.


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"Todo dia ela faz tudo sempre igual...", cantou o Chico, numa interpretação inesquecível, onde dividia palco e voz com o Caetano.
Eu também faço, quase todos os dias, coisas iguais. Não tenho dificuldades com a rotina. Há muito aprendi que uma das sabedorias preciosas da vida é descobrir o extraordinário no ordinário, no comum, no cotidiano. A rotina, aliás, é um espetáculo sutil no palco do cotidiano, uma ilha cercada pelo imprevisível por todos os lados.

E assim, apesar de ilhado naquilo que é sempre o mesmo, não estou condenado a viver na mesmice. Há que aguçar os sentidos. Os seis. Seis?

Pois é. Os sentidos ordinários nós conhecemos e identificamos bem; visão, audição, olfato, tato e paladar. Mas qual seria o tão falado sexto sentido?

Há controvérsias. Há quem diga que é a intuição, o pressentimento, a sensibilidade para perceber o "mais" que se esconde na banalidade das coisas e pessoas com as quais interagimos no cotidiano. Pode ser. Mas tenho por mim e para mim que o sexto sentido é, na verdade, a memória.

A memória humana é um prodígio. Capaz de arquivar experiências das quais sequer chegamos a fazer um registro consciente, não conhece limites de tempo e espaço. Enquanto a memória dos computadores pode ser medida em megas, gigas e bytes, a memória humana pode ser um oceano do qual não visualizamos começo, meio e fim.

Desde a memória intrauterina, há quem creia em memória de vidas
passadas, passando pela memória pessoal, coletiva, até o exercício da esperança, que é a memória do que virá, do que podemos ainda fazer acontecer, a memória é um sentido poderoso. Por ela, podemos "nos deixar afetar" pelos outros sentidos.

Por exemplo: na minha família há uma tradição. Somos três irmãos. No dia do aniversário de cada um, já sabemos; o prato principal, no almoço da casa da minha mãe, é o preferido do aniversariante.
Entra em cena a memória...

Na tela das lembranças, me vejo chegando à casa de Dona Leonida. Da porta da memória, aspiro o perfume do frango ao molho pardo com angu e quiabo. Ouço o burburinho das vozes dos meus irmãos, à minha espera. Sinto o toque dos abraços, dos beijos, do afeto fraterno que nos une. À mesa da saudade saboreio a delícia ancestral da receita que vem de minha mil avó.
aprendi a rezar com os sentidos, inclusive, e especialmente, com a memória. Ela me conecta com sentimentos preciosos como a gratidão, o perdão, a saudade. A memória me revela a beleza do ontem, do hoje, daquilo que se faz sempre.

A memória é o avesso da mesmice. Iluminada pela vida interior, ela permite vislumbrar, nas frestas do cotidiano, centelhas do Sagrado...
Como naquela segunda feira, 2 de maio de 2011. Mais um dia, igual a tantos outros dias. No caminho para o trabalho, cenas e personagens que são meus velhos conhecidos.

Sob o céu azul de aquarela desse outono enlouquecido, senhorinhas diligentes varrem intermináveis passeios.
Um mendigo, tão baldio quanto o canto da marquise sob a qual dormiu, passa por mim, cinzento, olhar vazio, esgarçado, abraçado a um cobertor ensebado, puído e roto, levando consigo e em si todas as suas posses; casa, quarto, banheiro, abrigo, miséria e saudade...

No rádio, Obama anuncia a morte de Osama. Não, não é um jogo de palavras. É o jogo do poder, do ódio, da vingança travestida de justiça.

A tudo contemplo, tudo rezo, no amanhecer de uma segunda-feira como tantas, em que, como todos os dias, sou chamado a fazer tudo quase sempre igual...

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