sexta-feira, 31 de julho de 2020

DELIRIOS SE REVELAM...



Os dilemas e delírios de uma pessoa ansiosa

Não se tem memória de uma crise de tão grandes proporções no país. A epidemia do coronavírus, é claro, contribuiu para tanto, mas não é a responsável única pelo que vivemos. Estamos no meio de um tipo de desequilíbrio que atinge a economia e a ultrapassa, pegando-nos pelos valores (ou ausência deles) no plano da moral. Vem à mente os ecos da observação de Ernst Bloch, segundo o qual os homens têm uma fome que não se sacia com os alimentos. Trata-se de um sentimento que nos leva adiante, vetor do progresso e das nossas realizações... E também das divisões e das lutas fratricidas.

Numa conjuntura em que faltam recursos para a Saúde, a Educação e os projetos habitacionais, espanta que o Ministério da Defesa reivindique, com a aceitação do governo, um aumento de 1,2% do PIB para 2% do PIB. Em épocas de conflito armado se justifica que a população arque com o sacrifício e trabalhe para sustentar os militares. Na paz, não. Muito dinheiro nas mãos de quem tem armas ameaça as pessoas em suas casas, como aconteceu em 1964, quando não havia inimigos externos e os canhões se voltaram contra a cidadania. Devaneios em torno do chavismo e do madurismo alimentam, talvez, semelhantes pretensões. Ninguém consultou o voto popular, entretanto, para conhecer a opinião geral sobre o assunto. Teremos de confiar no Presidente, doente neste instante, para que deixe cair a máscara que de fato não usa?

É bom lembrar que os nossos militares não andam com o prestígio em alta. Envolveram-se na gestão pública sem resultados animadores. Como disse um comentarista político, os ministérios pintaram-se de verde e parecem mais pobres de espírito (e de orçamento) do que antes. Para completar, assistimos, estarrecidos, à homenagem de Trump ao general Davi Almeida Alcoforado que lá aportou para integrar o Comando Sul. Segundo o almirante Craig Faller, em audiência, o Brasil paga para que ele trabalhe para os EUA. O subtexto da cerimônia dá a impressão de que faremos aquilo que a grande nação do Norte prefere delegar a outros. Os povos amazônicos que se cuidem, já que ao mesmo tempo, e por outro lado, somos os campeões predadores da floresta e estamos acabando com ela.

Afirma a sabedoria popular que em casa onde não tem pão todo mundo briga e ninguém tem razão. Caminhando para o abismo, não nos achamos longe de chegar lá. Esperemos que o Congresso Nacional, consciente da real precariedade orçamentária, tome-se de brios e pise no freio das ambições estapafúrdias. Nossa estrutura castrense, sem dúvida, precisa de quarteis aparelhados e limpos. Não precisa esmagar os calos dos desvalidos, a maior parte dos quais mora em condições precárias e mal consegue se alimentar. Se é para apertar cintos e colocar água no feijão, convém um rápido exame nas aposentadorias dos militares. Logo se verificará quem, entre nós, se mostra privilegiado. Deputados e senadores, diferentemente do Palácio do Planalto, não consomem cloroquina nem quando se contaminam com o Convid-19. Não se mostram bobos. Delírios se revelam frequentes em outros endereços...

quinta-feira, 30 de julho de 2020

AS PARÁBOLAS E A REALIDADE DE HOJE.

Reflexões sobre a Parábola do Semeador - parte 1
Uma parábola que está na Bíblia, no Evangelho de Marcos, nos coloca em contato com a situação dos sem-terra da atualidade e dos Sem Terra* do primeiro século na Palestina colônia do Império Romano. Ei-la:
"Escutem. Um homem saiu para semear. Enquanto semeava, uma parte caiu à beira do caminho; os passarinhos foram e comeram tudo. Outra parte caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra; brotou logo, porque a terra não era profunda. Porém, quando saiu o sol, os brotos se queimaram e secaram, porque não tinham raiz. Outra parte caiu no meio dos espinhos. Os espinhos cresceram, a sufocaram e ela não deu fruto. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto, brotando e crescendo; rendeu trinta, sessenta e até cem por um. E Jesus dizia: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!" (Marcos 4,3-9).
É o trabalho dos camponeses que está refletido no enredo da parábola do semeador! Trabalho duro, de sol a sol, dificultado por conta da política praticada pelo poder do Império Romano e pelos seus representantes na Palestina. A situação no campo se tornou de extrema penúria. Havia grandes extensões de terra nas mãos de poucos, particularmente romanos ou seus representantes. As aristocracias das cidades de Tiberíades e Jerusalém eram também proprietárias de muita terra, em geral as mais férteis. A produção visava particularmente à exportação.
A parábola do semeador fala de um trabalhador camponês que resiste e não se sujeita a cumprir os papéis subalternos e submissos que o sistema imperial lhe impõe. Seu trabalho se dá no lançar sementes à beira do caminho, na pedra, entre espinhos e, finalmente, em terra boa.
A parábola chama a atenção para as duras condições de trabalho dos camponeses pobres explorados e expropriados e nos convoca a perceber como é grave a realidade que é narrada! Aos camponeses que não baixam a cabeça só resta a beira da estrada, o terreno com pedras ou cheio de espinhos, e isso se sobrar.
A parábola nos leva a refletir sobre a injustiça da situação concreta vivenciada pelo camponês, mas aponta também para outro horizonte: o da alegria da fartura, o da produção abundante. Na verdade, as três primeiras etapas do trabalho do camponês aparecem em um crescente, apontando para a semeadura em terra boa, com o resultado esperado. A persistência do trabalhador terá sua recompensa.
Além disso, deve-se notar que a parábola não declara quem é o destinatário da produção ou se outra pessoa que não o trabalhador camponês se aposse dela. Mas é inevitável pensar sobre isso pois, é sabido que os impostos injustos acabariam por açambarcar [monopolizar] boa parte de sua produção.
No horizonte do texto do evangelho de Marcos 4,3-9, da década de 70 do primeiro século da Era Cristã, o destinatário da produção não pode ser senão o semeador quem trabalha a terra! Essa parábola profética se atreve a propor a utopia da terra libertada: sem donos, sem quem se aposse do trabalho de outros, sem que um plante para outro colher. Utopia narrada poeticamente no livro do profeta Isaías:
"Os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos. Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto" (Isaías 65,21-22a).
No Evangelho de Lucas há duas narrativas de envio de discípulos: Lucas 10,1-12, em que Jesus sugere aos discípulos irem para a missão despojados e desarmados, e Lucas 22,35-38, que trata da hora do combate, da luta, do enfrentamento. Na missão de construção de uma sociedade justa e solidária, ao tomar partido ao lado dos superexplorados e "dar nomes aos bois", explicita-se as divisões e desigualdades sociais existentes na sociedade capitalista.
Os incomodados tendem naturalmente a querer silenciar aqueles/as que os estão incomodando. Nesta hora de perseguições exige-se resistência. Por isso, o evangelho de Lucas propõe aos discípulos para o exercício da missão "pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo" (Lucas 22,36-38). No artigo Seguir Jesus, desafio que exige compromisso, ponderamos:
"Resistir não é violência, é legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas resistir diante das opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus".
Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é "outro caminho" a ser seguido por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
Os quatro evangelhos da Bíblia** relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, indignado, ocupou o templo de Jerusalém, lugar sagrado. O nazareno fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio’ (João 2,16). O templo era espaço sagrado, lugar do culto e de se humanizar. O templo era uma instituição transformada em uma espécie de Banco Central do país + bancos + bolsa de valores.
Atualmente, o território brasileiro com todos seus biomas e com todos os povos são nosso "templo" que está sendo violentado pelos novos ‘vendilhões do templo’, os fascistas e os capitalistas. Feliz quem, possuído por uma ira santa, participa da luta para expulsar os atuais mercadores da vida e que degradam as condições objetivas que a viabilizam.
Há que se semear na própria terra e não em terra alheia ou para que usufrua o patrão. O desafio é ser discípulo(a) crítico e criativo e lutar de forma coletiva para expulsar os atuais "vendilhões do templo", que insistem em usurpar todas as formas de vida existentes em nosso país: o povo, os biomas e toda a biodiversidade que ela congrega. Tudo isso para que a vida, o que há de mais sagrado, e todas as condições para sua existência sejam garantidas.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

FELIZES, PRÓSPEROS E RICOS.

As pessoas mais ricas são as mais felizes? – Palestrante Gisela ...


Expande-se mundo afora uma religião secular que, ao contrário das outras, congrega fiéis sem que eles se deem conta de que são seus adeptos. Sua teologia utiliza também o medo como forma de submissão.

Arrependam-se de seus pecados! Nada de utopia, esperança, outro mundo possível, bradam os seus arautos. Basta entrar em um shopping center para conhecer o Paraíso. Ali não há mendigos, crianças de rua, lixo jogado nas calçadas. Tudo brilha! Os veneráveis objetos de consumo são acolitados por belas sacerdotisas em suas preciosas capelas.

Sejam devotos de quem lhes pode assegurar segurança. Nada de se voltarem a figuras do passado, como Jesus. Agora a fé deve prestar culto aos novos messias que, do alto de seus tronos, prometem um futuro melhor e cujas mãos têm o poder de antecipar o Apocalipse pela indiferença frente à pandemia ou pela aniquilação nuclear.

Creiam no deus Mercado! Em si, ele escapa ao entendimento humano. Manifesta-se, contudo, na Bolsa de Valores, onde se decide a perdição ou a salvação de milhares de fiéis; nos paraísos fiscais, sacrários indevassáveis reservados aos eleitos; nos derivativos, tão abençoados e voláteis como os anjos.

O deus Mercado é infalível. Com a sua mão invisível, regula a produção, a comercialização e o consumo. E combate o Leviatã chamado Estado.

Mas, e a desigualdade social que assola o planeta? Tal objeção herética procede de quem não acolhe os dogmas da nova religião. Deus é bom, mas os homens se deixam seduzir pelas artimanhas do diabo, clamam seus sacerdotes. São tomados pela preguiça, a ociosidade, o desalento. Não trabalham o suficiente para se tornarem empreendedores. Devem, portanto, merecer o castigo da pobreza e do desamparo. Até da pandemia! Vejam aqueles que confiam nos dogmas do mercado! São felizes, prósperos, ricos!

domingo, 26 de julho de 2020

TODOS UNIDOS EM UM GRANDE MUTIRÃO


Mais de 3 mil cadastros são realizados no primeiro dia do “Grande ...

Há consenso que a pandemia da Covid-19 aponta para a necessidade de mudanças. Os esgotamentos de modelos econômicos, político-culturais e até religiosos ameaçam a Casa Comum, sacrificam, de modo criminoso, o meio ambiente. Com a pandemia, percebe-se, com mais clareza, a velocidade impressionante com que esses sacrifícios impactam, frontalmente, todas as pessoas, em cada lugar do planeta. Novas respostas aos muitos desafios contemporâneos são urgentes e, hoje, o que se tem, é a expectativa definida por uma expressão recentemente formulada: a chegada de um “novo normal”. E a recorrência dessa expressão, em muitos discursos, consolida, cada vez mais, um importante entendimento: não haverá retorno ao que se chamava de “normalidade”.

Para se viver o “novo normal”, muitas lições devem ser aprendidas - não apenas cultivar convicções morais em uma perspectiva conceitual, mas traduzi-las com a adoção de um novo estilo de vida. Sem essa mudança, o mundo continuará a pagar alto preço, agravadas pela fragilidade que toma conta das instâncias governamentais. Nessas instâncias, faltam gestores comprometidos com um sólido humanismo e capazes de aproveitar, mesmo que minimamente, os avanços científicos e tecnológicos da contemporaneidade para promover novos passos civilizatórios. Diversos setores - a exemplo dos contextos acadêmicos, científicos e religiosos - estão desafiados a alcançar nova epistemologia capaz de qualificar a cidadania, possibilitando adequado discernimento ético-moral sobre práticas e sistemas políticos.

Na ausência de adequadas mudanças, permanecem os colapsos agravados nos últimos meses com a pandemia, não somente nos sistemas de saúde, por falta de solidez, mas também na dimensão normativa que rege a sociedade. Há orientações conflituosas, pouco eficazes, vindas de diferentes esferas do poder público. Uma situação que constitui verdadeiro “bate cabeça” entre autoridades: falta diálogo entre instâncias de decisão, o que, consequentemente, inviabiliza a abertura de novos ciclos capazes de superar a atual situação de caos. O momento torna-se ainda mais grave porque valores inegociáveis da democracia, indispensáveis para promover o bem comum, sofrem atentados. Uma realidade triste, que pede o fortalecimento do coro dos lúcidos, capaz de impedir escolhas obscurantistas, antes que seja tarde. O sistema legal precisa avançar neste momento para socorrer a democracia e todos os valores e princípios que não podem desaparecer. Imprescindível também é reconfigurar o tecido cultural e os hábitos, de modo a superar cenários de exclusão social e desigualdades.

Infelizmente, há uma lentidão nos necessários processos de mudanças civilizatórias especialmente urgentes no atual momento. Contribui para essa inércia a insistência perversa que vem de segmentos sociais que não enxergam nada para além da lógica do dinheiro. Esses grupos estão na contramão de um novo humanismo, esperança para superar os desafios estabelecidos pela pandemia e por outros males. A desafiadora tarefa educativa para se cultivar novos hábitos precisa, pois, contar com o serviço e a participação de instituições sérias e credíveis, a serem sempre fortalecidas.
Mudar mentalidades e promover a adoção de hábitos a partir de uma grande mudança cultural não é tarefa fácil. Exige cultivar convicções renovadas que levem à lucidez. A força educativa precisa gerar inspiração para transformar desde situações simples a realidades mais complexas, com incidência na infraestrutura da sociedade. É preciso conquistar o que é essencial para se viver adequadamente e descartar aquilo que ameaça a vida.

As inovações em campos tecnológicos de alta complexidade precisam inspirar um fenômeno similar em situações cotidianas até aqui tratadas com displicência, sem clareza sobre seus impactos no dia a dia. Trata-se de um desafio para a civilização contemporânea, exigindo adequada resposta de cada contexto social. Todos unidos em um mutirão para alcançar, ao mesmo tempo, urgentes correções políticas e uma Lei pedagógica, capaz de promover novos hábitos.

sábado, 25 de julho de 2020

UMA PALAVRA, UM GESTO, UMA FRASE

Pequenos gestos de bondade - Palavras de Inspiração - YouTube

Há situações na vida em que a dor é tão grande que as palavras serão sempre inúteis para consolá-la ou exorcizá-la. Apenas o silêncio denso e presente pode ser uma atitude compassiva e misericordiosa. Calar-se diante da dor dos outros, da dor de todos e também nossa é a única atitude possível.

Esta é a situação que hoje vive o Brasil, assolado e machucado mortalmente pela pandemia do coronavírus que açoita a torto e a direito, entrando pelos corpos de todas as idades e categorias de pessoas e levando embora vidas que são amadas, queridas e vão deixar um vazio e uma falta imensos no coração de tantos.

Diante de tantos mortos, de tanta tragédia o que se pode fazer? Quantas vezes não fizemos essa pergunta a nós mesmos, enquanto diante de nossos olhos desfilavam os caixões, os prantos, os gritos de dor, os enterros em vala comum enfileirados às dezenas, às centenas. O que fazer? Como ajudar? Como consolar todos estes e estas que choram os mortos dos quais nem puderam despedir-se, que se foram sem um último carinho, uma última presença, um último adeus?

Há mães que choram a perda dos filhos inexplicavelmente perdidos e se foram antes delas, vitimados por um vírus que todos dizem que ataca sobretudo os mais velhos. Mas há filhos órfãos de todas as idades, que choram impotentes a perda de seus maiores, de seus ancestrais: pais, mães, avôs e avós. Não conseguiram protegê-los, tiveram que vê-los desaparecer pela porta da UTI de onde nunca mais saíram. Ou então correram desesperados atrás de um respirador e um leito de terapia intensiva que nunca veio e tiveram que vê-los sufocar nas cadeiras ou no chão das emergências.

O que se pode fazer por essas pessoas que têm o coração em carne viva? Como podemos ajudar a amenizar a dor de todos que hoje vivem num país transformado em um gigantesco cemitério? Como chamar a atenção para essa dor anônima e profunda que afoga o Brasil em lágrimas e indignação muda? Como fazer algo que ressoe e pressione sem violência aqueles que desejamos retirar de sua ausência irresponsável, a fim de que assumam seu lugar no combate a essa pandemia?

A resposta, ou pelo menos um começo dela, talvez possa ser encontrado no livro do profeta Jeremias que, em pleno exílio, proclama o sofrimento do povo. E o simboliza com a dor de uma mãe que não quer ser consolada. "Ouve-se uma voz em Ramá, pranto e amargo choro; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque os seus filhos já não existem".



Raquel – Reivindica o direito do gemido e do pranto solitário. Somente ela conhece a dor que a prostra. O melhor a dar-lhe é o silêncio. Silêncio orante, presente, solidário. Inspirado por essa dor sem consolo, o profeta põe diante de seus ouvintes a dor de Raquel, digna e solitária. Como a de tantas e tantos que não puderam enterrar seus mortos na pandemia que vivemos.

Inspirados por essa dor e por essa necessidade imperiosa de um silêncio que conscientize, denuncie e regenere, a Comunidade da Trindade, em Salvador, Bahia, lançou a campanha Silêncio pela dor. Convida a todos, brasileiros ou estrangeiros, a aderir e expor nas redes sociais sua solidariedade a essa dor coletiva e gigante com uma palavra, um gesto, uma imagem, uma frase.

Subir hoje a hashtag #Silênciopelador é o nosso modo de chorar e con-doer-nos com a dor da pátria mãe que vê seus filhos irem embora sem nada poder fazer para salvá-los. E que assiste igualmente outros filhos seus obstaculizando os caminhos que a ciência oferece para que haja menos mortes, menos luto e menos dor em nosso território.

Nosso silêncio pela dor deve preparar o futuro que Deus guardou para o Brasil que hoje geme sob o luto. A dor não será a última palavra. O profeta Jeremias garante: "Assim diz o Senhor: "Contenha o seu choro e as suas lágrimas, pois o seu sofrimento será recompensado", declara o Senhor.

Calemo-nos, então, pela dor. E convidemos outros, tantos quantos pudermos, a fazer o mesmo. Nosso silêncio será mais eloquente do que mil palavras que até agora se mostraram inúteis. Que nosso silêncio ecoe por todo lado, trazendo de volta a solidariedade, a união e a compaixão. #Silênciopelador

sexta-feira, 24 de julho de 2020

COMO FICA A NOSSA HISTÓRIA


Será que você conhece a nossa história?


Dependemos muito do testemunho de amigos para contar a nossa própria história, inclusive acrescendo detalhes, pequenos, grandes, engraçados, sórdidos, esquecidos, ou muitas vezes até nos ajudando a exagerá-los. Dependemos da memória das outras pessoas para relembrarmos muitos dos fatos que vivemos. E a cada dia, com tantas perdas, morremos um pouco junto.

De novo mais uma semana triste. Penso que isso está ocorrendo nessa pandemia com cada um, cada pessoa ligada a cada uma dessas quase 80 mil pessoas mortas até agora no país; 600 mil em todo o mundo. Mundo onde praticamente 14 milhões de atingidos nem sabem bem se, quando se salvam, terão sequelas ou quais serão. Cada dia é uma informação nova, não lembro de em meses algo estar sendo tão pesquisado, escarafunchado, e ao mesmo tempo confuso, como esse coronavírus. Nem no caso do HIV que, aliás, continua décadas depois sem cura efetiva, embora os remédios tenham avançado mesmo que muito lentamente.

Cada morte leva um pedaço da gente, e ainda nos surpreende. Como assim, morreu? Descobrimos aí que decididamente não somos imortais.

Mas aí que está: enquanto estamos vivos por aí, temos nossas histórias vistas, testemunhadas, podemos dar até referência, telefone, e-mail, formas de contatos para quem de nós acaso duvide. "Pergunte então ao fulano se não acredita!" – provocamos.

Quando morremos, os registros, a mim parece, são feitos sempre de forma muito mais pobre e reduzida. Isso levando em conta, claro, que tem muita gente que imediatamente vira herói ou anjo, mesmo tendo sido uma pessoa terrível, má (quem pode ser tão sincero?); ou, por outro lado, se o coitado passou a vida na batalha pelo reconhecimento, esse se dá somente nessa hora, como legado moral a seus familiares. E ponto.

,Não falo de biografia que isso é mais sério, coisa para livros, mas dos causos, das aventuras, das desventuras, até das brigas, porque não? De tudo aquilo que a gente imediatamente recorda ao sentir a morte de alguém com quem de alguma forma se relacionou. E quanto mais se vive, mais destas passagens temos lembranças, e ultimamente com mais facilidade, o registro de fotos.

Escrevo tudo isso porque tenho me sentido "esburacado" com esse momento que leva tantas pessoas com as quais convivi, alguns até muito mais de 40 anos. Estranho admitir que hoje praticamente já não tenho mais por perto quem possa recordar, por exemplo, de histórias de minha infância e adolescência – tenho de fazer isso por conta própria.

E creio que talvez seja importante alertar aos mais jovens sobre essas coisas que se tornam tão sensíveis e visíveis quando o tempo vai passando. Talvez, em tempos tão digitais, tão instantâneos, seja bom guardar com mais cuidado cada momento, até para poder contar mais adiante com orgulho. E, muito importante: dar em vida o reconhecimento, o amor e o carinho devidos.

Admitindo: a cada morte – esse assunto difícil – quem fica, fica mais pobre de suas próprias memórias.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

FALANDO DE AMOR.

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Falando de Amor... (@adsvdinha) | Twitter

Todos os caminhos religiosos e espirituais conferem centralidade ao amor. Nem precisamos referir-nos a Jesus para quem o amor é tudo ou ao texto de incomparável beleza e verdade de São Paulo na primeira Carta aos Coríntios, no capítulo 13:”o amor nunca acabará..no presente permanecem estas três: a fé, a esperança e o amor, porém a mais excelente é o amor.

“Grande coisa é o amor. É um bem verdadeiramente inestimável que por si só torna suave o que é penoso e suporta sereno toda a adversidade. Porque leva a carga sem sentir o peso, torna o amargo doce e saboroso…O amor deseja ser livre e isento de amarras que lhe impedem amar com inteireza. Nada mais doce do que o amor, nada mais forte, nada mais sublime, nada mais profundo, nada mais delicioso, nada mais perfeito ou melhor no céu e na terra…Quem ama, voa, corre, vive alegre, sente-se libertado de todas as amarras. Dá tudo para todos e possui tudo em todas as coisas, porque para além de todas as coisas, descansa no Sumo Bem do qual se derivam e procedem todos os bens. Não olha para as dádivas, mas eleva-se acima de todos os bens até Àquele que os concede. O amor muitas vezes não conhece limites pois seu fogo interior supera toda a medida.De tudo é capaz e realiza coisas que quem não ama não compreende, quem não ama se enfraquece e acaba caindo. O amor vigia sempre e até dorme sem dormir…Só quem ama compreende o amor”.

Em momentos dolorosos em que vivemos e sofremos, precisamos resgatar o mais importante e que verdadeiramente nos humaniza: o simples amor. Quase todos nos sentimos carentes dele. Mas sem ele nada de grande, de memorável e de heroico foi construído na história. É o amor que faz com que tantos médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras e todos os que trabalham contra o Covid-19, sacrifiquem suas vidas para salvar vidas, sendo que muitos deles por isso são vitimados. Eles nos confirmam a excelência do amor incondicional.

Testemunhos das ciências da vida, da arte e da poesia corroboram com o que proclamam as religiões.

Comoventes são as palavras do genial pintor Vincent van Goog, em carta ao seu irmão Théo:”É preciso amar para trabalhar e para se tornar um artista, um artista que procura colocar sentimento em sua obra: é preciso primeiro sentir-se a si próprio e viver com seu coração..É o amor que qualifica nosso sentimento de dever e define claramente nosso papel… o amor é a mais poderosa de todas as forças”(,

Consideremos o que testemunham os estudos sobre o processo cosmogênico e da nova biologia. Mais e mais fica claro que o amor é um dado objetivo da realidade global e cósmica, um evento bem-aventurado do próprio ser das coisas, nas quais nós estamos incluídos.

“O amor pertence à essência de nossa humanidade. O amor, esse impulso que nos faz ter cuidado com o outro foi o que permitiu a nossa sobrevivência e sucesso no planeta. É esse impulso, creio, que salvaguardará nosso futuro…Tão fundamental é o amor à natureza humana que estou certo de que a capacidade de amar está inscrita em nosso DNA; um São Paulo secular diria que o amor é a maior dádiva de nossos genes à humanidade”,

Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela mostraram a presença cósmica do amor. Os seres, mesmo os mais originários como os topquarks, dizem eles, se relacionam e interagem entre eles espontaneamente, por pura gratuidade e alegria de conviver. Tal relação não responde a uma necessidade de sobrevivência. Ela se instaura por um impulso de criar laços novos, pela afinidade que emerge espontaneamente e que produz o deleite. É o advento do amor.

Desta forma, a força do amor atravessa todos os estágios da evolução e enlaça todos os seres dando-lhes irradiação e beleza.

O amor universal realiza o que a mística sempre intuiu acerca da gratuidade da beleza:“a rosa não tem por quê. Ela floresce por florescer. Ela não cuida dela mesma nem se preocupa se a admiram ou não”. Assim o amor, como a flor, ama por amar e floresce como fruto de uma relação livre, como entre duas pessoas enamoradas e apaixonadas.

Pelo fato de sermos humanos e autoconscientes, podemos fazer do amor um projeto pessoal e civilizatório: vive-lo conscientemente, criar condições para que a amorização aconteça entre os seres humanos e com todos os demais seres da natureza,até com alguma estrela do universo.

O amor é urgente no Brasil e no mundo. Com realismo nos deixou Paulo Freire, tão caluniado pelos propulsores do ódio e da ignorância, esta missão: forjar uma sociedade onde não seja tão difícil o amor. Educar, dizia ele, é um ato de amor.

Digamo-lo com todas as palavras: o sistema mundial capitalista e neoliberal não ama as pessoas. Ele ama o dinheiro e os bens materiais; ele ama a força de trabalho do operário, seus músculos, seu saber, sua produção e sua capacidade de consumir. Mas ele não ama gratuitamente as pessoas como pessoas, portadoras de dignidade e de valor .O que nos está salvando neste momento de intrusão do Covid-19 são exatamente os valores que o capitalismo nega.

Pregar o amor e dizer: “amemo-nos uns aos outros como nós mesmos nos amamos”, é revolucionário. É ser anti-cultura dominante e contra o ódio imperante.

Há de se fazer do amor aquilo que o grande florentino, Dante Alignieri, escreveu no final de cada cântico da Divina Comédia: “o amor que move o céu e todas as estrelas”; e eu acrescentaria, amor que move nossas vidas, amor que é o nome sacrossanto do Ser que faz ser tudo o que é e que é a Energia sagrada que faz pulsar de amor os nossos corações.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A RESPEITO DO TRABALHADOR E DO TRABALHO


Direitos e deveres do trabalhador - Direitos Brasil


A compreensão da vida e do ser humano a partir de qualificada perspectiva antropológica deve iluminar a compreensão do verdadeiro sentido do trabalho e da genuína atribuição do trabalhador. Esse entendimento deve passar longe da ganância alimentada pela idolatria do dinheiro, com suas forças perversas, e da lógica da indiferença, que caracteriza a chamada economia de mercado. Compreender o correto sentido do trabalho e do trabalhador exige enxergar para além dos números. Quando somente as estatísticas e os balanços são considerados, há o risco de se ignorar: não à economia de exclusão, não à nova idolatria do dinheiro, não ao dinheiro que governa em vez de servir e não à desigualdade social que gera violência.

Sem adequada leitura da realidade, deixando-se envolver somente pelo valor do dinheiro, a sociedade continuará a sofrer com a exclusão social e com a corrupção endêmica. O ideal é o exercício da cidadania a partir do respeito incondicional à vida, reconhecendo a sua sacralidade, em todas as suas etapas, da fecundação ao declínio, com a morte natural. E nesse caminho, deve-se retomar o dever sagrado do ser humano, que vem dos primórdios: cultivar a terra, promover o desenvolvimento integral e sustentável.

A narração bíblica da criação do homem e da mulher, à imagem e semelhança de Deus, traz importantes lições sobre a verdadeira missão do ser humano. Deus, o criador, atribui ao homem e à mulher a responsabilidade de proteger e se dedicar ao mundo - o mundo de Deus - sob o horizonte insubstituível do amor. Assim, todos devem viver como irmãos e irmãs uns dos outros. Eis a base para a igualdade social, para a compreensão de que as diferenças, quando bem articuladas, são riquezas, capazes de se desdobrar em desenvolvimento integral e sustentável. E o trabalho integra, nesse contexto, a condição originária do ser humano. Jamais pode ser considerado punição ou maldição.

O sentido do trabalho passa a ser desvirtuado quando a humanidade sucumbe-se à tentação de alcançar domínio absoluto sobre todas as coisas, sem respeitar a vontade do Criador. Consequentemente, idolatrias de todo tipo são alimentadas, especialmente a que supervaloriza o dinheiro. A partir desse momento, começa a exploração das pessoas - uma perversidade, completo desrespeito à sagrada dignidade da vida. Abre-se também o caminho que leva ao tratamento predatório do meio ambiente, sob o véu de um falso desenvolvimento. E a ganância sem limites submete todos ao caos, inclusive os que detêm a riqueza e o poder.

É preciso retomar o significado do trabalho, inspirando-se nos ensinamentos de Jesus, operário por excelência, em amorosa obediência ao desígnio de seu Pai. Trabalha em favor de cada pessoa e, ao mesmo tempo, ensina que não se pode aceitar a escravização. Ao refletir sobre a Palavra de Deus, particularmente as narrativas sobre a vida de Jesus, compreende-se o valor do trabalho e do descanso. O repouso, essencial para recuperar a inteireza física, emocional e espiritual, é dom precioso que permite enxergar o sentido do próprio trabalho. E trabalhar é poder experimentar a alegria de contribuir, com dons e aptidões, na construção de um tempo novo, pautado na justiça e na paz, colaborando com a obra do Criador.

Percebe-se, assim, que o trabalho deve ser caminho para cada pessoa exercer a sua vocação e se realizar. É preciso, pois, compreender-se como servidor - estar a serviço da vida de todos. Vale superar o comportamento mesquinho de apenas buscar o atendimento a interesses meramente particulares e experimentar a alegria de ver, na felicidade e realização do outro, que é irmão, o fruto do próprio trabalho. Em uma sociedade em que milhões sofrem sem trabalho, claro desrespeito à dignidade humana, permanece diante de todos, o desafio: para além de números e interesses financeiros, conquistar a fecunda e qualificada compreensão a respeito do trabalho e do trabalhador.

terça-feira, 21 de julho de 2020

RELIGIOSOS APELAM À POLÍTICA E POLÍTICOS À RELIGIÃO.


Religião e Política: Riscos para a Democracia - Revista Senso

O que está acontecendo? A religião se politiza e a política deixa de ser o espaço do secular? No século XXI, o critério de juízo político se desloca, pouco a pouco, da justiça social à moral. Tanto no Brasil como na Argentina – só para tomar dois exemplos latino-americanos –, bispos apelam à política e funcionários públicos à religião. Sem falar do Papa, que canoniza sacerdotes assassinados pelo sistema e martirizados pela fé.

Enquanto isso, quem fala de injustiça social é acusado de corrupção e quem reivindica igualdade, de ideologia. O totalitarismo é percebido como democracia. Agnósticos defendem o pobre e cristãos o rico. A ganância obscena é exibida como êxito nas capas de revistas, e a pobreza é invisibilizada. O marginalizado prefere o corte orçamentário corretivo à riqueza distribuída; o crente, a apostasia à misericórdia; e o desempregado, a migração em caravana à revolução, o sindicalismo e os partidos políticos.

Uma das consequências da Revolução Industrial foi a secularização do político. A luta deixou de ser guerra por verdades religiosas entre as elites e passou a ser luta partidária por direitos sociais para os trabalhadores. O campo social se dividiu em dois. Deixou de ser uma guerra horizontal entre deuses para ser uma luta vertical entre os de cima e os de baixo. Hoje, os trabalhadores – empregados e desempregados – voltam a estar desorganizados e isso os torna vulneráveis a falsas crenças. A fé política deixa de ser depositada nas instituições republicanas e democráticas. Deposita-se em um além teológico-terrenal, como no caso dos migrantes hondurenhos, ou dos eleitores brasileiros seguidores de uma falsa Teologia da Prosperidade.

Para aqueles que, dentro e fora da Igreja Católica, questionam o compromisso social dos pastores com cheiro de ovelha, é chave fazer a distinção entre religião e teologia para ressaltar a pertinência desta última no campo do político, e não assim o da religião. O cristianismo justamente nasce como crítica às religiões de Estado, conforme destacou o cardeal Joseph Ratzinger em seu conhecido debate com Paolo Flores D’Arcais, no ano 2000.

A teologia é discurso sobre Deus, mas também pensamento crítico ou profético, para usar uma categoria apropriada, sobre a obra de Deus - ou seja, o mundo e o homem -. Como destacou Gustavo Gutiérrez, uma parte da teologia latino-americana tenta despertar os povos da libertação em lugar de nos adormecer na escravidão. Contudo, essa libertação tem, em última instância, um fim transcendente. Por isso, a tomada de posição de seus pastores no campo do político sempre é conjuntural e não partidarista.

Buscando descolar a teologia da religião de Estado - enquanto funcional aos fins do poder político -, o discernimento social da Igreja, desde sua primeira encíclica Rerum Novarum, traduz a moral religiosa em justiça social. O fundamento evangélico é que sem esta última não há paz verdadeira, a não ser augusta. Por conseguinte, tanto o Papa Francisco como os pastores católicos que fazem eco às demandas populares pela paz, pão, terra, teto e trabalho atuam em concordância com os documentos sociais pontifícios e episcopais.

Laudato Si’ é uma encíclica social com tanta validez teológica como o restante das encíclicas. Criticar o Papa Francisco se apoiando em definições do magistério social pontifício anterior é desconhecer a reflexão teológica social como processo histórico e pensamento situado. Que isto fique bem claro para que não se envolva a opinião pública em retóricas pseudo-doutas que mascaram discursos partidaristas e ideológicos com uma enxurrada de citações pseudo-jurídicas. A atitude crítica dos pastores católicos, hoje e sempre, é o resultado de um discernimento, a partir de suas crenças evangélicas, sobre a realidade concreta, mas em termos políticos, não religiosos. É evangelho situado e não moral manualística.

Quando o religioso começa a deslocar o político, colocando em risco o Estado de Direito, a volta ao teológico como razão na fé é algo a se levar em conta. Diante da crise dos partidos políticos, não se deveria deixar o campo da fé nas mãos de principiantes.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

VAMOS EXERCITAR A LIBERDADE.


Não sejamos escravos do querer dos outros. Um viva à nossa ...

Talvez uma das palavras mais importantes nos dias que vivemos seja liberdade. Todos a usam, todos a desejam, todos pensam vivê-la. E, no entanto, é talvez uma das palavras que mais se presta a equívocos.

Estamos no tempo de Quarentena. Tempo de conversão, de voltar às raízes da opção fundamental. Tempo de apalpar de novo com paixão o sentido da vida escolhido e, às vezes, desgastado, esquecido, negligenciado. Tempo de, mais que nada, exercitar a liberdade e torná-la opção vital e vivida, superando a cada passo ambiguidades e distorções.
O ímpeto de um desejo de consumo estimulado por um raio de oferta sempre maior torna então a autogratificação, a satisfação, impossíveis. Decidir começa a se tornar algo extremamente difícil e quase impossível porque significa renunciar a outras possibilidades para escolher uma; ou escolher uma para ser colocada acima das outras. Vivemos escravizados sob uma “tirania de possibilidades” que nos acossa constantemente, multiplicando as ofertas diante de nós, sem deixar-nos espaço de liberdade para escolher, dizer que sim ou que não.

Muitas vezes queremos dizer sim sem dizer não, deixando todas as opções em aberto. Isso acontece no ato de consumir bens perecíveis ou voláteis, mas também nas escolhas afetivas e nas opções de vida. Em um momento diz-se sim ao casamento, ou à entrada em um estado de vida, ou a uma profissão, a uma vocação. Ou à maternidade ou à paternidade. Mas deixa-se interiormente a porta aberta para outras opções que virão mais tarde. Todos os relacionamentos, empregos, casas, carreiras, vocações, parecem ter datas de validade e prazos de vencimento.

Não é à toa que a etimologia das palavras “decidir” e “ decisão” fala de corte, separação. Toda escolha que implica uma decisão tem que apreciar uma pluralidade de possibilidades e caminhos e “cindir”, cortar as restantes para permanecer com uma. Há que separar cortando, ainda que a duros golpes para que haja realmente escolha e decisão. Talvez seja preciso cortar na carne. Pois que seja, se assim o pede a fidelidade a uma liberdade que abre sempre mais para um horizonte sempre mais amplo.

Às vezes acreditamos que decidimos bem, mas devido a uma série de correntes que se movem dentro de nós e nos arrastam, nossos caminhos podem ser desviados para portos que não havíamos escolhido. E aqui estão em jogo não apenas as grandes opções, mas a qualidade de nossas vidas cotidianas, que podem inadvertidamente ser desvalorizadas pela dinâmica da cultura que se instalou em nós.

Como diz K. Gergen, “nossa pessoa, nosso “eu” saturado de informações, de propostas de consumo, de possibilidades diferentes de organizar a vida, de relações reais ou virtuais, de ofertas de todos os estilos, vai se convertendo em um “eu “colonizado. Quando se nos apresenta uma situação nova, já temos uma infinidade de respostas possíveis arquivadas dentro de nós”. E o resultado é que não conseguimos exercitar plenamente a nossa liberdade.

A Pandemia deseja chamar-nos a isso, facilitar-nos esse tempo qualitativo de exercício da liberdade. Enquanto caminhamos em direção ao fim da quarentena, somos chamados a olhar nossos hábitos, nossas escolhas, nossas decisões. E a revê-las em um exercício de honestidade, iluminado pela fé e pelo amor.

Que esse tempo nos faça mais livres. E mais dispostos a exercitar essa liberdade. Boa quarentena para todos e todas.

ESCOLHER UM OU OUTRO


Um ou outro - Yvonne A. Pereira ::

O presidente Bolsonaro vive sua pior hora: menosprezou a pandemia, fez pouco das mortes ("todo mundo morre", "não sou coveiro", "e daí?"), achou que lotando o Ministério da Saúde de pessoas alheias aos problemas da área provaria que hidroxicloroquina curaria qualquer moléstia, desafiou os outros poderes e teve de engoli-los, posou de Super-Homem quando era Clark Kent. Enfrenta problemas que atingem gente próxima e ameaçam seus filhos. Sua política ambiental tende a gerar represálias internacionais. Levou pancada até do Facebook e do Twitter. O partido que quer organizar não anda. Vai mal na pesquisa, longe dos dias em que quase ganhou no primeiro turno.

Mas estamos em 2020 e a eleição presidencial, a única coisa que parece interessá-lo, é em 2022. Um dia a pandemia se acaba. O noticiário mostrará um imenso crescimento econômico, com grande ampliação do número de empregos (tudo verdadeiro: saindo do fundo do poço, cada metro vale muito, embora estejamos ainda longe da altura de onde caímos). E, principalmente, o governo terá percebido a força eleitoral do atendimento direto aos mais pobres, com algo semelhante ao coronavoucher. Não devemos esquecer que o ministro Paulo Guedes é discípulo das ideias de Milton Friedman, o criador do Imposto de Renda Negativo. Algo do tipo "quem tem, paga; quem não tem, recebe". Bolsa Família é bagatela perto disso.

Se conseguir deixar de provocar crises diárias, Bolsonaro pode crescer.

Mas...

O presidente tem um jeito bem pessoal de enfrentar problemas: ele os nega. O Covid é "uma gripezinha", o desmatamento-recorde na Amazônia é prova de que nunca se desmatou tão pouco. E, se os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) confirmam o recorde, demite seus chefes. No ano passado, demitiu o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, e nomeou o interino que está lá até hoje; agora, demitiu a coordenadora dos programas de alerta sobre desmatamento, Lúbia Vinhas. O vice-presidente Mourão admite o desmatamento e promete reduzi-lo. Mourão, com Paulo Guedes, Roberto Campos Neto e Tereza Cristina, tenta acalmar investidores brasileiros e europeus, garantindo que as exportações saem de terras legais, sem "grilos". Guedes levou essa garantia à reunião da OCDE, que reúne boa parte dos países que importam alimentos do Brasil e pensam em boicote.

... há crises no horizonte

É provável que o duelo entre o Ministério da Defesa e o ministro Gilmar Mendes, do STF, esfrie: a turma do deixa-disso já entrou em ação, o ministro já representou à Procuradoria-Geral da República, e talvez, após mostrar que aceitou o desafio, não faça pressão para que a coisa ande. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, tem ótimas relações com o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que trabalhou com ele no Supremo. As outras crises, referentes a inquéritos sobre notícias falsas e dinheiro ilegal para gerá-las, têm mais potencial de gerar problemas.

Sugestão de Mourão

O vice Mourão, em entrevista, disse que a criação de um imposto sobre transações financeiras terá de ser discutida. Esse tipo de imposto já causou a derrubada de um secretário da Receita, Marcos Cintra, por ordem direta do presidente Bolsonaro. A ideia terá dificuldades para passar no Congresso, mas é defendida também pelo superministro da Economia, Paulo Guedes.

Boa notícia

O Instituto Butantan, de São Paulo, iniciou ontem o recrutamento de nove mil voluntários, todos profissionais de saúde, para a última fase de testes da vacina contra o coronavírus desenvolvida pelos chineses do Sinovac Biotech e o próprio Butantan. Os testes ocorrerão em vários estados brasileiros. O link para seleção dos voluntários é www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/vacina

Lava Jato no Centrão

A Operação Lava Jato de São Paulo promoveu busca e apreensão em imóveis ligados ao deputado federal Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, dirigente do Partido Solidariedade e integrante do Centrão, bloco de parlamentares que apoia Bolsonaro. De acordo com nota da Polícia Federal, diversas operações financeiras do parlamentar indicam a possibilidade de lavagem de dinheiro. Há pouco mais de um mês, Paulinho foi condenado no STF a dez anos de prisão, por crime de lavagem de dinheiro e associação criminosa. Ainda há possibilidade de recurso, no próprio Supremo.

Um ou outro

Comenta-se que o primeiro-ministro de Singapura, Lee Kwan Yew, disse que tinha dois caminhos possíveis como dirigente da nação: corromper-se, enriquecer a família e nada deixar à população, ou transformar o país numa potência econômica em que todos seriam mais prósperos. Escolheu a segunda opção. Muitos políticos brasileiros, como Lee Kwan Yew tinha já escolhido esse lugar, acharam que não havia saída exceto escolher o outro.